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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Entre selvagens e domesticados, um conto de "crianças perdidas"

Hugo Gomes, 09.12.22

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Numa das imagens mais celebradas do filme, um grupo de misfits posicionam, um a um, num palco de purpurinas, fitando o seu olhar numa câmara invisível / visível a fim de quebrar a quarta barreira, resultando numa troca de impressões para com o espectador, existente do outro lado da tela, que os atenta observa. Como um aquário, após o retrato completado, somos expostos à diversidade, representatividade, e mais que isso de apreço, empatia, ou apenas solicitação da mesma, que todo aquele palanque nos transmite. 

“Lobo e Cão”, a nova longa-metragem de Cláudia Varejão, poderia resumir a esta mesma sequência movida a música e a faixas multicolores, um "inventário" da ilha de São Miguel, que nele oculta um punho contra o binarismo, a “prisão” que os nossos personagens / indivíduos vivem entre o estatuto de atores e não-atores. No seu centro, há um contorcionismo em romper a imposição documental e inserir estes “marginalizados” (assim se sentem numa comunidade ultra-regida pela religiosidade e o conservadorismo), numa intriga ramificada em subenredos para que possam apelidar de ficção. Ora, aí reside a grande fraqueza do filme, pelo facto de ser tratado ou tratar da sua “ficcionalidade”, nunca desenvolve apropriadamente qualquer um desses seus “ramos”, com isto perde-se em incentivos que culminarão a becos sem fins, prestando contas à colaboração (à comunidade acima de tudo) do que maioritariamente visando a saúde da sua narrativa. 

Por outras palavras, somos como um açor, pairando ali e acolá, tendo a figura da Ana (Ana Cabral, um achado) como peça central nesta teia de relações - entre as quais, possivelmente a mais relevante, a de Luís (Ruben Pimenta), o seu melhor amigo que lida com a sua descoberta identitária e sexual de forma naturalíssima, isto, servindo de afronta à reacionária comunidade que vive. Para além deste contacto, Ana também se aventura no seu próprio e causado turbilhão de sentimentos, acontecendo no preciso momento em que a “visita” de Cloé (Cristiana Branquinho), uma amiga residida no Canadá, a desperta para um determinismo nunca antes cedido através de um subtil choque cultural. 

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Lobo e Cão”, é desta forma, um coming-to-age, interagindo na comunidade queer da ilha, tentando com isso homenageá-la, dignificá-la e a acima disso, sublinhá-la num contexto ainda envelhecido, confrontando com uma população ainda preconceituosa e obscurantista. Varejão filma o biótopo destas personagens, não julgando-as criminosamente, mas revelando-as como servos de um milenar peso da Igreja e das suas impostas tradição (procissões e peregrinações são estampados em “Lobo e Cão” como um gesto quase pagão, retirando-lhe a aura divina que outros poderiam cometer com as suas câmaras). 

Uma obra de relevância sociológica e até mesmo antropológica, e possivelmente cultural (só o futuro dirá), porém, fora do tema e temáticas, demonstra vitalidade, força nutrida nas suas figuras e no realismo capsulado (e devemos também salientar que é um retrato sem condescendências). Porém, fraqueja, ocasionalmente, em emanar credibilidade nas suas tramas. Infelizmente, uma das sequências que viria a ser desperdiçada pela decisão dos “não-atores” (ou falta de direção), é o do bullying na procissão, perdendo a sua ferocidade perante a incapacidade dos seus “protagonistas”.

Mas hein … temos Ana Cabral, e que a garra de lobo se mantenha com ela por muito tempo.