Em defesa do olhar branco nos Tropicolonialismos ...
... e antes que as pedras comecem a cair sobre mim, devo alertar-vo: um pouco de ambiguidade em temas polarizadores, como o colonialismo ou a forma como abordamos o passado, nunca fez mal a ninguém. Porque – colocando as coisas desta maneira – o olhar [“gaze”] aqui presente é de um branco, e igualmente oriundo de um branco, mas nem por isso resolve ser uma apologia a essa mesma colonização do olhar e da sua História. Até porque, à época, a inconsciência da dimensão temporal fazia o colonialismo ser entendido apenas na sua função de mercado, discutivelmente os primórdios e a expansão do capitalismo global. A sub-humanização provém de outra vertente, talvez hoje ampliada pelas lentes modernas.
Talvez por esse prisma – o de um protagonista branco e de uma realizadora branca, ainda que nascida em Moçambique [Margarida Cardoso] –, "Banzo" tenha escapado dos principais festivais de cinema, segundo a própria (numa entrevista a ser publicada brevemente). A imperatividade de outras “vozes” (frequentemente tratada de forma cínica nestas festividades cinematográficas) terá relegado um dos filmes mais importantes da nossa cinematografia recente para uma estreia mundial no IndieLisboa. Mas isso são outros tostões.
“Banzo”, termo que designa uma tristeza profunda e quase patológica atribuída como causa de morte a milhões de escravos arrancados das suas terras, alude aqui ao vazio cultural de São Tomé – uma ilha preenchida por pessoas vindas de diferentes partes do continente africano, sem nada de genuinamente originário. O filme estrutura-se na sua subtileza e atmosferas evocativas de tormentos profundos – tormentos que os visuais, por si só, não seriam capazes de transmitir. Daí termos um dos maiores ensaios sensoriais do cinema português, sem se recorrer ao experimentalismo, à transgressão imagética nem nada do que valha.
Aliás, o filme inicia-se sob toques melvillianos (o escritor, não o cineasta), no inicio do século XX, com Carloto Cotta, aqui um “turista” acidental, no papel de Afonso, um médico que, depois de uma passagem pelo Congo, é chamado à ilha são-tomense para investigar uma enchente de mortes súbitas num carregamento “fresco” de escravos de uma plantação (ponto importante: a escravatura estava praticamente abolida em todas as partes do Mundo, portanto, tecnicamente neste contexto histórico, escravos não seriam designados como tais). À chegada ao porto, é recebido por Ismael (Rúben Simões, “Vadio”), cuja brancura das suas vestes – e a gradual perda das mesmas ao longo da narrativa – condiz com a selvajaria que o irá contaminar. Num gesto aparentemente insignificante para fins narrativos, a personagem de Cotta Involuntariamente deixa cair um punhado de moedas belgas com a efígie de Leopoldo II que causam um tremor de horror nos africanos ao redor. Não há qualquer dispositivo explicativo nesta determinada cena, nem sobre tais reações ou sobre o rosto estampado naquelas moedas. É aqui que reside um ponto a favor de Margarida Cardoso: o de nunca tratar o espectador como parvo ou submetê-lo à condescendência. Três vivas, avancemos.
Depois de ultrapassado o “Moby Dick”, a estadia naquela engenho aproxima-se de uma experiência conradiana: um cenário de espectros e incompreensões, de desumanidade e indiferença, de homens bons guiados por doutrinas e homens vis conduzidos pela ambição, todos fundidos numa selva onde espíritos e sofrimento resultam em paisagem. O abstracto reina como um paganismo cultivado num silêncio caótico. Há loucura nos homens e nas mulheres. Há uma liberdade – libertina e, paradoxalmente, pertinente – nos negros livres, como Alphonse (Hoji Fortuna), o fotógrafo cuja perspetiva não dominará o filme, mas funcionará como uma passagem de testemunho sobre o visto e apenas o visto. Nas suas fotografias, surge um efeito de humanização sobre o desumanizado, embora os “sub-humanos” – os escravos – percam as suas propriedades individuais: descaracterizados, uniformizados. Tornam-se carcaças vazias e espancadas, uma imagem esquemática que evoca as fotografias coloniais provenientes de relatórios, listas de encargos museológicos ou propaganda. A distância entre o olhar e o objeto captado é evidente, mesmo com a personagem de Alphonse apresentada como uma espécie de mediador entre dois mundos antípodas.
Como a artista plástica Sasha Huber, perante um repertório de imagens humanamente descaracterizadas, Alphonse parece embarcar numa jornada para devolver dignidade – quase "primoleaviana" – a esses corpos desapropriados da sua carne. Distorcer a imagem de um colonialismo, talvez, para que este não se repita, a artista, por sua vez, pela modernidade que acarreta, incute um revanchismo aos traumas memorialistas que aquelas fotos emanam.
Sasha Huber - Tailoring Freedom
Em “Banzo”, fora da lente de Alphonse, a personagem de Cotta é, também ele, um corpo desapegado das suas propriedades. Um “avatar” através do qual um espectador ocidentalizado pode testemunhar essa subversão do que é ser humano com algum conforto (e por sua uma injecção caridosa de “culpa”, sem ser devidamente intrusiva ou de apelos a “superioridades virtuosas”). Neste caso, de forma subtil, o “banzo” – a tal patologia do melancolismo – parte do pressuposto de que estes indivíduos estão conscientes da sua própria mortalidade, cedendo ao seu estatuto diminuidor, são subtilmente exibidos como humanos, porque só eles, os únicos animais a pisar esta Terra, são capazes de reconhecer e aceitar a morte com graças de Deus ou como reprovação ao Diabo.
“Banzo”, sem pernoitar em propagandismos ou tendências oportunistas, fala-nos de períodos negros na distância do debate. Já agora, havia-vos dito que estamos perante um grande filme?