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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Em Almería, caçando "Leones", vi o meu reflexo ...

Hugo Gomes, 13.03.25

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A cinefilia, ainda que por vezes (erradamente) associada a um certo snobismo ou hermetismo, não é, na sua definição mais pura, senão “amor ao cinema”, e há um traço comum em todas as suas vertentes: o sacrifício pessoal, quase obsessivo, pelo objeto amado. “A Almería de Leone” é, em todos os aspetos, fruto dessa devoção. Paulo César Fajardo, que por entre ensaios etnográficos e das invasões napoleónicas, é conhecido no meio por ser um dos anfitriões do podcast V.H.S. - o mais antigo do género em Portugal - partiu numa viagem familiar pelos cenários, alguns ainda intactos, outros modificados e muitos já desintegrados no tempo, da Almería, mais concretamente do Deserto de Tabernas, em busca de um claro fantasma.

Esse fantasma que o persegue desde os seus verdes anos e que se dá pelo nome Sergio Leone. O próprio Fajardo confirma que, ao longo desta digressão por saloons imaginários e pontes destroçadas, não detinha qualquer intenção de construir um filme, e sim, o de apenas alimentar o desejo intenso de pisar o solo que manufaturou os seus sonhos. E fê-lo, carregado de frames dos seus westerns spaghetti, esse subgénero exploitation e, até certo ponto, “baratucho”, que Leone alimentou e fundamentalizou. Sobrepôs as imagens naturais da paisagem às dos filmes, numa espécie de reverência (e referência) visual. As férias de família acabaram por formar uma ‘coisa’ que supostamente estenderia o universo VHS, talvez para cair no mar digital do YouTube, até que alguém - ou vários - solicitaram o grande ecrã. Assim, “A Almería de Leone” embebeu-se da graça da tela e da sala de projeção (chegando a contar com uma antestreia na Cinemateca de Lisboa). O filme evidencia um lado amador, mas aqui essa condição funciona como faca de dois gumes: “amador” lê-se “aquele que ama”, e Fajardo, indiscutivelmente, ama Leone acima de todos os signos. Isso torna-se evidente na narração, que o próprio conduz ao longo do percurso, ora polvilhada de curiosidades, ora preenchida com uma cronologia exaustiva de entrevistas, segmentos, trivia e sofisticações trazidas pelo cineasta (sempre no acompanhamento da banda-sonora de João Francisco), por outro lado, fica demasiado preso aos adjetivos absolutistas … talvez seja a paixão a falar mais alto, o bom, o mau, e o seu vilão como tal.

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Paulo César Fajardo no Cine Clube de Arouca, após a apresentação do filme / Fonte.: Roda Viva - Jornal fo Concelho de Arouca

Com a “Trilogia dos Dólares” (1964 - 1966) no coração e espaço, especial sublinha-se, reservado para “C'era una volta il West” (1968), há um mini-ensaio particularmente belo aqui cativado: quando Jill, personificada por Claudia Cardinale, sai da estação de comboios, uma grua eleva a câmara, revelando a cidade pré-fabricada no deserto num travelling vertical. Fajardo mimetiza esse movimento com um drone, enquanto a música de Morricone nunca descose da transição - momento único de belo coito cinéfilo. Segue-se a vibração quase pueril perante a grandiosidade de “Giù la testa” (“Duck, You Sucker”, 1971) e, por fim, o lamento por “Once Upon a Time in America” (1984), o filme no qual Leone trabalhou durante 12 anos, apenas para ser retalhado pelo estúdio numa versão reduzida, pronta a servir a um público apressado. Pouco tempo depois, o seu maestro morre. Fajardo visita o seu túmulo numa espécie de epílogo meta, a conclusão natural desta sua peregrinação “religiosa”. 

O que deixa para trás é um objeto de amor, com alguma pretensão de ser um ensaio sobre o autor, mas sem nunca se desprender da sua declaração romântica. O Cinema, neste caso Leone, é vingado, segundo a sua perspetiva, clarificado como padroeiro. Quando há amor, há Cinema, e, por sua vez, Cinefilia. Esse desígnio, ou maldição, como alguns preferem chamar-lhe.