Edgar Ferreira e o "Coro" da Gulbenkian: "Este filme é meu, mas não deixa de ser nosso."
Depois da Orquestra da Gulbenkian, 60 anos em 60 minutos, regressamos à Fundação e ao realizador Edgar Ferreira, agora noutra vertente artística, ou melhor, noutra joia da coroa gulbenkiana: o Coro. Desta vez, sem a ditadura do tempo, seguimos as vozes consolidadas deste coletivo que brilha nos palcos e faz da sonoridade a sua mais mestra linguagem. Aqui, em “Coro” o tempo é uma força contestada, enquanto se parte individualmente pelos indivíduos, das suas resistências quotidianas em pertencerem a algo maior do que eles próprios. Serem peça imprescindível de uma partitura, de uma melodia, de uma música com História esmagadora nos seus ombros. Serem essa criatura coral, de mil e uma cabeças, ainda mais de vozes, em um harmónico e volátil uníssono.
Novamente, 60 anos—com Edgar Ferreira a transformar essa efeméride num documentário coral e de coralidades. Música, maestro! As cordas vocais já estão aquecidas.
"Coro" encontra-se nas salas de cinema.
Já tínhamos conversado anteriormente sobre este projeto, mas agora que vi o filme, gostava de perguntar sobre a abordagem que escolheu. No seu documentário anterior, havia uma lógica mais formal e uma rigidez temporal, enquanto aqui a abordagem parece mais humanizada. Não se trata apenas da cronologia do coro, mas também da resiliência destas pessoas [coristas] em conciliar a sua paixão com a vida pessoal. Como pensou na abordagem para este filme?
Agora que estabeleceu essa relação entre os dois filmes, vejo que este começa exatamente onde o outro terminou, em termos emocionais. O documentário anterior, sobre a orquestra, tinha uma história que precisava de ser bem contada. Já no "Coro", senti menos essa ansiedade de narrar uma história específica e interessei-me mais pela particularidade, menos conhecida, de que estes músicos têm outras vidas, e, ao terem-nas, como é que isso se manifesta na sua criação artística coletiva?
Exatamente! O filme não se limita a documentar a história do coro de forma enciclopédica, ele mergulha nestas vivências e permite-nos ver o coro a partir do olhar dos coralistas, e não o contrário. Gostava de saber como selecionou as pessoas que entrevistou. Como foi o processo de decidir quem faria parte do documentário?
Posso dizer que foi um desafio. Defini que o documentário teria um olhar de dentro para fora. Tudo o que aprendemos sobre o Coro Gulbenkian ao longo dos 86 minutos vem diretamente dos coralistas. São eles que dão voz ao documentário. Para contar a história, precisava de encontrar as pessoas certas para representar os diferentes aspetos que queria abordar: a história do coro, as audições, a voz, o canto, a interpretação, o esforço diário...
A terapeuta da fala, Mariana Moldão, aparece quando falamos sobre o trabalho vocal. A Sara, atriz, reflete sobre a interpretação. O José Bruto da Costa, musicólogo, contextualiza historicamente o Coro Gulbenkian. Todos eles trouxeram algo muito particular para o documentário. Depois, há participantes que representam um coletivo maior. O Jaime, por exemplo, é atleta, e há muitos atletas no coro, portanto ele representa essa presença. O mesmo acontece com as mães, há muitas dentro do coro e uma delas representa essa realidade. O processo foi bastante orgânico. O coro tem entre 70 e 100 elementos e, para os conhecer melhor, fizemos questionários com perguntas focadas na perspetiva que queríamos para o documentário – uma abordagem mais pessoal e profissional, fora do coro.
Com base nesses questionários, realizámos entrevistas e, ao longo do tempo, desenvolvemos relações de proximidade. Como o filme é filmado de forma muito próxima – em ensaios, estamos praticamente em cima das pessoas –, era essencial criar um ambiente de confiança. Para evitar desconforto, foi preciso estabelecer uma relação de cumplicidade, algo que aconteceu naturalmente. O documentário não é apenas sobre receber histórias, mas também sobre partilhá-las.
Este foi um filme feito em conjunto. Os muitos meios só foram acessíveis graças aos coralistas: filmámos no Hospital de Cascais porque o Luís Miguel fez a ponte com a administração para que pudéssemos filmar a cena na piscina, o Jaime ajudou-nos a encontrar um local adequado, etc. Houve uma colaboração genuína de todos.
Edgar Ferreira
Digamos, usando o trocadilho óbvio, este é um filme coral.
Sim, e isso reflete-se também na sua construção. Em determinado momento do documentário, alguém diz que, quando trabalhamos artisticamente em conjunto, tudo corre melhor e penso que isso se aplica ao próprio filme. O processo de realização espelha o funcionamento do Coro Gulbenkian: aproximação, contacto, trabalho coletivo. A meta do coro é que todos cheguem à mesma frequência – e a construção do documentário seguiu a mesma lógica.
Gostava de falar sobre esse lado coletivo, pois há dois momentos em que parece querer sair da estrutura do filme coral. Um deles é a inserção de um certo toque de cinéma vérité, quando a narrativa constantemente pontua presença de alguém nos bastidores, organizando cassetes e nomeando ficheiros de concertos, como fosse a própria a pesquisa a ser feita diante dos nossos olhos para este filme. Sente que esse momento reflete a sua presença dentro do filme?
Na verdade, essa pessoa não sou eu. É um ator [risos].
Mas há ali uma representação sua, do realizador.
É mais a representação de um investigador do que do realizador. Não sei se me revejo naquela personagem, mas a sua função era introduzir as imagens de arquivo de uma forma que fizesse sentido na narrativa. Ao longo do filme, estamos sempre à espera de ver o coro atuar, mas só o vemos através de imagens de arquivo. Nunca vemos a atuação filmada diretamente para o documentário.
E a inserção dessa personagem, de certa forma, representa um alter ego seu - o papel do investigador dentro do filme?
Sim, mas mais como um investigador do que como realizador. No final do filme, há um momento em que essa personagem desliga a luz da cabine, momentos antes do fim da narrativa. Isso simboliza o fim desta história e o começo de um novo filme – um ciclo contínuo.
Então há uma certa metalinguagem nesse... Vou chamá-lo andaime, porque é o documentário a ser realizado perante os nossos olhos.
Digamos que sim, mas acho que essa será mais... Ou seja, a ser meta, sim, concordo, mas é mais superficial. Acho que, para mim, o verdadeiro estado meta do filme é, efetivamente, a forma como ele é construído, que é de uma forma coletiva, como objeto do seu estudo. O coro que constrói o som é produzido coletivamente. Esta atenção à respiração do outro... Estamos aqui neste nível, e é aqui que temos que estar para que a coisa se funda, haja esta fusão de vozes e nesse sentido acho que o filme é meta. Também se constroi dessa forma coletiva.
O outro ponto que estava a referir acontece no início, em que vemos o nosso corista no corredor. E há aqui entra um trabalho conjunto de encenação e de sonoridade, e esta última está presente aqui num tom operático antes de entrarmos para o documentário em si. Gostava que também falássemos um pouco desta abordagem inicial. Por que começar o filme desta maneira? E o porquê de ser com esta personagem de todo o elenco de coristas?
Mais uma vez, o que me interessava destacar eram os indivíduos, ou seja, o coro tem este resultado de trazer o anonimato aos indivíduos que fazem o conjunto. Valem pelo conjunto, pelo todo e queria ter a atenção ao individual. Precisamente, a primeira metade do documentário é muito focada no individual e, gradualmente, vai-se fundindo nesse coletivo. Tanto que houve a preocupação também de que cada um tivesse quase um arco narrativo próprio, que depois, de alguma forma, são revelados no final, onde tudo flui para criar maior intensidade.
Fernando Eldoro
O início começa com uma coisa muito simples, que é a respiração. A respiração está na base do canto, é a base da voz. A primeira contração do diafragma resulta em respiração. Depois tem que haver a intervenção das cordas vocais para só ouvir a voz, e depois a voz-canto, e depois o canto-interpretação. O ponto de partida fez-me sentir que era a respiração por onde deveria focar. Também indicia logo uma luta. Não é uma luta contra o tempo, mas uma vontade de chegar ao fim, uma persistência, militância, resiliência, que depois, de alguma forma, está presente em vários momentos do documentário.
Acabou de me dizer uma coisa que agora tenho que perguntar. Tendo em conta também o filme anterior e este, sente que está sempre a lutar contra o tempo nos seus filmes?
Não, mas estou atento à questão do tempo. É algo que me interessa pessoalmente e não como um objeto ... Ou seja, no primeiro filme, isso é muito evidente. Ainda que esteja ao serviço da questão da música clássica, qual é a importância e porque é que ela se mantém até aos dias de hoje? Aqui, a questão do tempo é vista de uma forma muito mais emocional. Mas é um tema que me cruzo diversas vezes e que me qual seja a abordagem, sempre me suscita interesse.
Um dos pontos também centrais do seu documentário é a trindade dos maestros com os quais este ‘corpo’ trabalhou: Michel Corbeau, Fernando Eldoro [falecido em fevereiro de 2025] e Jorge Matta. Este também foi um dos principais focos seus no coro? Também trabalhou com base nestes maestros e nas suas idiossincrasias artísticas, porque cada um tinha um método diferente de trabalhar?
Nstes 60 anos, e daquilo que pude observar e ouvir, a qualidade do som do Coro Gulbenkian advém da interação dessas três pessoas. O Michel Corbeau foi o mestre titular do coro durante 50 anos. Visto estarmos a comemorar 60’, é inédito a nível mundial ter um mestre titular durante meio século no mesmo agrupamento artístico. O mestre Eldoro é uma personagem incrível, com uma dedicação extraordinária à música e ao canto. Já o mestre Jorge Matta, o seu papel na música portuguesa e contemporânea através do Coro Gulbenkian, não tem paralelo. E sim, a interação entre os três forma a identidade daquilo que é o som do Coro Gulbenkian.
Agora gostava de perguntar, tendo já dois documentários sobre a Gulbenkian, você deseja permanecer na Fundação e um terceiro documentário ou deseja aventurar-se por outras “águas”?
Tenho vários projetos que ambiciono fazer. Dito isto, a Fundação Calouste Gulbenkian tem a qualidade de me fazer convites a projetos irrecusáveis e cativantes. Tanto o documentário sobre a Orquestra como o do Coro, não há assim tantos objetos fílmicos feitos sobre esta temática a nível mundial. Numa base inicial, vou à procura de ver o que já foi feito, como é que foi feito, e quais são as abordagens. Sobre coro, não há um único documentário feito sobre o coro: há reportagens e há um filme francês pelo que sei.
Portanto, aventurei-me neste universo. Tem uma história que é uma história linear e de sucesso. Começa aqui, acaba ali, é sempre à direita e cada vez com mais sucessos, mais reputação, mais concertos, mais discos gravados, sempre melhor, mas não há contrariedades, não há obstáculos, não há momentos de adversidade que nos permitam contar uma história de superação, ou seja, em termos de narrativa, seria menos interessante. Por isso, quando o desafio me é colocado, penso: “como é que vou abordar isto? Como é que posso o fazer?”. E é estimulante tentar resolver um tema que se calhar não é assim tão explorado e ver se pode ou não dar um bom filme.
Pertinentemente, segundo estas propostas que a Gulbenkian faz, e através destas mesmas propostas, você se descobre a si próprio enquanto documentarista ou redefine-se enquanto documentarista? Ou não gosta da palavra "documentarista"? [risos]
É difícil responder a isso [risos]. Inicialmente há um convite e com base nele não me é pedido nenhum tipo de limitação. "Nós queremos fazer isto para esta data com a Orquestra Gulbenkian." Por outras palavras, tenho total liberdade para o fazer e tenho sentido essa mesma liberdade. Tanto no caso da Orquestra como no caso do Coro, houve uma escolha muito deliberada de dar voz a quem efetivamente tem propriedade para falar sobre, mais do que a preocupação de ter um cunho autoral sobre o objeto que estou a fazer. Por isso, nessa medida, também não sei se estas experiências me tornam um melhor documentarista, ou um tipo de documentarista, porque como disse tenho outros projetos que ambiciono fazer e aí, possivelmente, contarão com uma voz mais minha.
Só que também é contraditório o que disse, porque também não deixo de sentir uma voz minha nestes projetos, sobretudo na forma como tal é construído, tudo parte de uma escolha minha, a de incluir as pessoas e o trabalho com elas, e, por fim, chegarmos a este ponto de trabalho coletivo. Consigo dizer que há uma distinção gigante entre aquilo que foi fazer a Orquestra e aquilo que foi fazer o Coro, em que, para o bem e para o mal, cantando, cantando pessimamente convenhamos [risos], não deixei de fazer parte deste grupo .
Não me deixei de sentir pertença. É uma forma muito bonita de se trabalhar, de fazer qualquer coisa. E aí ... voltemos à questão da meta: se há qualquer coisa que ganhei neste processo, foi esta forma muito interessante de trabalhar, coletiva e não individual. Este filme é meu, mas não deixa de ser nosso.