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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

E tudo começou na Rua da Cidade de Rabat ...

Hugo Gomes, 22.02.23

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O cinema como confessionário, ou antes divã. Papel branco em jeito diarístico, tela como o mais fiel companheiro, a plataforma de partilha de sentimentos, pensamentos e anotações. Gesto, esse, que se tem sido sugerido como um caminho a percorrer a novas vozes ou a estágios de introspecção, e no panorama nacional, vemos uma normalização desse mesmo estado de “abertura” enquanto matéria fílmica. Para muitos uma tendência de tratar o cinema por “tu” e o espectador por “vocês”, para outros um tratado de ego, um narcisismo, a espreitadela contemplativa ao Espelho de Narciso

Susana Nobre nunca negou que o seu cinema é feito de partilhas, de experiências e motivações concretamente trabalhadas em filme, condensadas e integradas num perpétuo movimento de procura e de redescoberta. Fez desse mote a sua partida observacional no programa das Novas Oportunidades [“Vida Activa”, 2014)”, para mais tarde espelhar as suas reflexões maternais [“Tempo Comum”, 2018] e pelo caminho debruçando em histórias de outros [“No Táxi do Jack”, 2021], Nobre nunca dedicou-se inteiramente a si, até porque sob a sua perspetiva o cinema é um mecanismo “díptico, uma pessoa que ouve, outra pessoa que fala, uma que interpela e outra que responde, num espaço completamente circunscrito”. Mas é aí que “Cidade Rabat” rompe a “tradição”. Confeccionado como a sua primeira longa de ficção assumida, a realizadora se esconde por trás do exercício narrativo para transformar memórias num afazer. 

O exercício está à vista de todos, deitar-se no divã e abordar os seus fantasmas, o seu luto e trazer dessa sua experiência um deslumbramento para novos rumos, mais existencialistas que artísticos. Nessa feita, “Cidade Rabat” parte de um estado de autognose, uma rua lisboeta de igual designação ao do título nas Portas de Benfica, uma escadaria num prédio antigo, moradores singulares, piso a piso, até cedermos ao rés-do-chão, à figura maternal que aí habita (ou habitava), esse início de tudo. A voz de Susana - um espírito concentrado na figura de Raquel Castro, anterior enfermeira (esta informação dará luzes a um discreto e delicioso cameo em tom jocoso de "troca-de-papéis"), agora atriz - nos guia por essa viagem memorialista sem representação visual, é um trajeto imaginário em modo “Big Bang”, a génese, a origem das “coisas”, ou melhor o fim de todas elas. 

Porque é através do luto que “Cidade Rabat” despoleta, metamorfoseia-se num retrato de dor (o verbo não é coincidência, o filme prossegue do mesmo ponto que A Metamorfose dos Pássaros de Catarina Vasconcelos, da ausência), numa terapia à mesma, porém, ao contrário do seu cinema não dá “ares” de partilha, remonta-se como uma demanda sua e só sua poderá se revelar. Porém, o exercício esgota na sua própria premissa, a veste fúnebre é intransponível, a realizadora fala para ela própria (com imagens sobre ela própria) enquanto despe a sua ficção de todas as suas vertentes fabulistas, ao espectador cabe entender o nojo, a negação, a deambulação e por fim, superação em forma de emancipação (muitos “ãos” aqui reunidos!). Com “Cidade Rabat”, uma “coisa” é certa, Susana Nobre é mais arregaçada em falar dos outros do que resumir-se a si própria.