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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Dois cinéfilos, o Cunhal e Paulo Branco entram numa cervejaria ...

Hugo Gomes, 12.04.25

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Camarada Cunhal (Sérgio Graciano, 2025)

Mas porque é que continuamos com este formato? Já o fizemos em “Soares é Fixe”, e agora no ‘Cunhal’... Não consegues fazer algo mais convencional? O leitor vai-se aborrecer e o realizador ainda vai pensar que é perseguição.

Não te sei responder quanto ao último ponto. Talvez, prosseguindo o nosso diálogo anterior … o do ano passado, naquela cervejaria … sim, perseguição não diria, mas mantenho-me atento à sua carreira, como quase tudo o que se faz em matéria de cinema português.

Acho que tu arriscas... mas pronto, cá vai: 3, 2, 1... E então? Hoje foi o visionamento do “Camarada Cunhal”? Como foi?

Antes de te responder, vamos ali ao Pato Real. Tenho sede, e uma cevada vinha mesmo a calhar. Soube que arranjaste convite para a antestreia?

Foi... mas não é o filme que me interessa ver dele. Há um “Memórias do Cárcere” [adaptação do livro de Camilo Castelo Branco], novamente sob a alçada de Paulo Branco.

Sim, é um realizador diferente com Paulo Branco. Poderemos ver aqui uma improvável dupla. Os “Papéis do Inglês” é um filme claramente Paulo Branco, e de um Graciano sem malhas televisivas. Fez dessa colaboração o seu ‘comeback’, sem com isto se dignar a estar no fundo.

“Como assim? Achas que aquilo que ele tem feito é bom? O “Linhas de Sangue”?

Calma. Primeiro, e tendo em conta alguns episódios dos últimos tempos, sinto-me culpado por andar sempre a invocar o “Linhas de Sangue” para aqui e para ali. Descobri que há ‘gente’ arrependida de ter participado no filme.

Enquanto conversavam, os amigos saíam da porta da FCSH, atravessando diagonalmente a Avenida de Berna, ao encontro do tal Pato Real — nada mais que um restaurante-café, com uma máquina de imperiais a condizer com aquele calor primaveril que se fazia sentir. À chegada ao balcão, após o primeiro contacto visual com um dos empregados, um deles estica a mão, assinalando dois e apontando para a máquina. Entendido, o funcionário pega em dois copos de plástico reutilizáveis e enche-os com o elixir de cevada.

Não era possível arranjar em dois copos de vidro? Nós não vamos a lado nenhum.

Com isto, o rapaz transvasa o conteúdo dos copos para os respectivos copos compridos de imperial (ou fino, conforme a geografia), entregando-os aos amigos, que aguardam impacientemente para saciar a sede acumulada.

Isto do Pato Real, não é product placement?

“Talvez... até porque isto aconteceu.”

Sim, mas escusavas de mencionar o estabelecimento. No anterior não o fizeste.

Tens razão, mas agora já vou tarde para remediar.

Um gole sentido na bebida, uma breve careta ao contacto com o amargo da cerveja, e o diálogo continua…

Onde é que íamos?”

No Sérgio Graciano. Será que, com estas mudanças de tom perante outros projectos e as produções de Paulo Branco, ele se revela um realizador multifacetado ou um realizador sem convicção, que precisa de um produtor com forte visão autoral?

“Boa questão... mas para tua desilusão, não quero ainda avançar nisso. Deixa-me espreitar esse tal “Cárcere” que está agora a ser trabalhado.

E o ‘Cunhal’?

Queres a versão curta ou a mais expandida?

Começa pela curta... e grossa, se faz favor.

É uma nulidade. Agora, a longa?

Sim, se faz favor.”

Há duas formas de ver esse ‘filme’. A primeira é como conhecedor de Cunhal e do seu percurso de vida e político — e aí deparas-te com um ‘faz-de-conta’ para lá do amadorismo, com o seu lado pechisbeque visível em todas as costuras. E se não conheces Cunhal, não é aqui que vais aprender algo sobre ele. Primeiro, porque Cunhal não é uma personagem e, em reflexo com todas as outras, não tem um pingo de desenvolvimento, personalidade ou convicção. Por outro lado, e seguindo a lógica do "Soares é Fixe", é um amorfo apolitizado, que apenas repesca factos históricos e os trata não só como História morta, mas como defunto histórico — enterrado e de cerimónias fúnebres já realizadas. Depois, aquele Forte de Peniche, suposta prisão de alta segurança para presos políticos do Estado Novo... o que é aquilo? O Big Brother, com bullying de guardas ocasional?

Como assim?

É que qualquer miúdo de agora, cada vez mais distante do Estado Novo e da sua influência, olha para aquilo e vê ‘brandos costumes’ impregnados como lavagem. Depois admiram-se que haja abstração desse tempo. A culpa não é só dos saudosistas e negacionistas do 25 de Abril — os meios de comunicação... sim, porque "Camarada Cunhal’ é televisão, não é Cinema... — ajudam nesse efeito, propagando a ideia de que tudo aquilo foi uma estação que passou, trouxe alguns resfriados e depois deu lugar à Primavera.

Já não fizeram histórias do Cunhal para o Cinema? Havia um filme antigo, o...

"A Fuga" de Luís Filipe Rocha, sim, é baseado, não necessariamente regido à figura

Isso! Esse lembro que também tinha um lado de baixo orçamento, mas o ‘barato’ da altura parece caro nesta contemporaneidade.

É verdade. E ainda há um do João Botelho ainda por estrear ["O Jovem Cunhal"], e não te esqueças daquele filme ... o "Cinco Dias, Cinco Noites’". É de um livro escrito pelo próprio Cunhal

Sim, o do José Fonseca e Costa. Era um realizador muito interessante do nosso panorama, e não necessariamente daqueles com carreira internacional.”

Concordo. Fazia, entre aspas, cinema comercial, com a devida linguagem de Cinema. Era digno. "Cunhal", de Graciano, não o é. Aliás, novamente tocando na televisão: isto é produzido pela Skydreams… os de "Salgueiro Maia" e "Soares é Fixe" … e lembro-me bem, na altura, de uma entrevista de um dos produtores ao [Rui Pedro]Tendinha, no DN, a referir que a produtora é especializada em produtos para televisão, que depois é que decidem se lançam no cinema em formato ‘cinematográfico’...

Lá estás tu a fazer aspas com as mãos.” [risos]

“Claro, não quero ser mal-interpretado.”

Olha, eu verei esse "Memórias do Cárcere" e, claro, já com bilhete na mão, vou espreitar esse ‘Cunhal’, como prova dessa minha ‘tese’... repara nas minhas mãos, também consigo fazer aspas.” [risos]

Para o ‘Cunhal’ desejo-te boa sorte. O que estava a tentar dizer que é o ‘filme’ é a condensação de uma série ainda por estrear. Aliás, um dos meus colegas ficou indignado que o material promocional cedido pela distribuidora está cheio de imagens da série, ausentes da metragem que vimos no visionamento.

Mudando de assunto e ao mesmo tempo ficando nas “Linhas”, devo dizer-te que vi o ‘Infanticidas’ do Manuel Pureza. Sei o que escreveste, e posso garantir, contra o que disseste, que vejo em Pureza uma visão de Cinema. Vá lá, não sejas tão mau assim para os filmes.

Não acho que seja mau. Eu os vejo, não vejo?

Certo... tens razão.”

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Camarada Cunhal (Sérgio Graciano, 2025)

Na parede, um televisor transmite o noticiário da hora de almoço: Trump, Ucrânia, eleições — a actualidade ali condensada em meia dúzia de tópicos. Os amigos apreciam a cerveja quase no seu final de vida, em silêncio e com alguns olhares aos visores dos seus smartphones, em passagens breves pelo email e Instagram. Até que um deles interrompe o ritual com uma pergunta:

Hugo, diz-me só uma coisa... sou real?

Para ser sincero, neste momento és três pessoas numa só. És uma união de conversas que tive com essas três pessoas.

Então, como é que me chamo? Tenho de ter um nome, no caso de me invocares novamente.

Hmmm... bem pensado.”

Rui? Luís? Ricardo? Jorge? Rafael? Paulo? Duarte?

Mas porquê um homem... podes muito bem ser uma mulher.”

Inês? Susana? Mafalda? Filipa? Tânia? Francisca?

Pensando bem, vou chamar-te Sérgio...

Como o Graciano?

“Há mais Sérgios do que Gracianos. Fazemos assim … és Sérgio, não necessariamente Graciano.”

Muito bem... Sérgio. Gosto. Ao menos tenho um nome.

Brindaram ao nome Sérgio e, com este gesto, encerraram mais uma conversa sobre tudo, sobre nada e sobre Cinema. Talvez, noutro dia, se reencontrem para mais finos e bitaites. Por agora, bebem — e, com os olhos postos no Mundo transmissível, ditado pelo pivô do telejornal — reflectem sobre a Modernidade como uma incógnita, imprevisivelmente distante daquilo que o Cinema lhes tem entregue ultimamente.