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Clint Eastwood, até então ator, transgredindo do western spaghetti que o tornara numa faceta algo ‘popularucha’, para encarnar o detetive de métodos pouco ortodoxos em “Dirty Harry”, dá aqui o seu salto inaugural para a sua paralela (ou melhor, perpendicular) carreira de realização. Do tal pistoleiro de São Francisco — curiosamente, o realizador Don Siegel (o mesmo de “Dirty Harry”) faz uma perninha no elenco enquanto barista, esse canto de confidências e conforto fora do lufa-lufa —, o ator resgatou um dos argumentistas, Dean Riesner, para co-assinar este thriller psicológico de arranque.
Em “Play Misty for Me” (cujo título português, “Destino nas Trevas”, é pior que o soneto), Eastwood interpreta um carismático DJ de um programa noturno de rádio, onde todas as noites recebe o mesmo pedido de uma misteriosa fã — “Play Misty for me” [a frase-título] —, até que, por fim, acreditando ser obra do acaso, a conhece: Evelyn (vivida intensamente por Jessica Walter). Após um encontro que culmina no leito dos lençóis, o DJ começa a ser perseguido por ela, a doce rapariga que depressa revela evidentes transtornos de psicopatia. Desenrolado em Carmel-by-the-Sea, uma pacata cidade californiana e então residência de Eastwood — mais tarde, ele próprio integraria a Câmara Municipal —, o filme proporciona um ambiente idílico em contraste com a escuridão gradual a apoderar-se do enredo. Parece antecipar os clássicos das crazy ladies (a quem “Fatal Attraction” deve a sua linhagem indireta), hoje considerados politicamente incorretos. Apesar das fragilidades narrativas — o enredo dispersa-se e bem, como, por exemplo, numa sequência ininterrupta de um concerto que mais parece servir de intermission do que propriamente a um propósito narrativo —, a obra cita eficazmente os elementos do slasher antes mesmo do subgénero se redefinir na sua totalidade.
Aproveita eximiamente as sombras e os facalhões reluzentes para construir uma atmosfera de trevas digna do ato final (antevendo “Halloween”, de Carpenter). Esse jogo de luz e sombra, aliás, mostra um Eastwood já consciente da linguagem cinematográfica e do modo como esta potencia o suspense. O uso de planos longos e da profundidade de campo revela influências hitchcockianas e de Clouzot, evidenciando tanto um teor referencial e uma ostentação de sabedoria cinéfila como o desejo de imprimir a sua própria marca autoral. Foi uma estreia promissora para um cineasta que, após algumas experiências vacilantes e por vezes delirantes (possivelmente fruto de um ego ainda por delimitar), viria a traçar o seu percurso com o cinema classicista que tanto admira e acabaria por aclamar como sua persona-cineasta (não vale a pena mencionar títulos, já os sabemos de cor).
“Play Misty for Me" pode não ser o início de esplendor que o ator na altura aspirante a realizador pretendia, mas é inegável a demonstração de ambição e de uma sobriedade ocasional. É também um testemunho da sua versatilidade, por isso, e mesmo sem o associarmos ao Eastwood de hoje, não é obra a desmerecer na sua redescoberta, podendo ser lida tanto como “à frente do seu tempo” quanto como “uma representação do seu tempo”.