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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Devolver a natureza original ao morto-vivo

Hugo Gomes, 02.01.20

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Se descurarmos a definição de zombie, longe da criatura vendida que hoje deparamos na sua mais informe saturação, vemos uma mitologia, aliás, uma crença por um culto pagão de origens africanas. Desde as mordidas das mambas negras, os seus efeitos secundários e a sua transladação das Américas através do transe e do vudu, culminando cultos afro-ameríndios olhados com desdém pelas culturas anglo-cristãs. A história do zombie, propriamente dito, é rodeada de apropriação cultural ou até, de um certo jeito, “branqueamento” (se não fosse muito do cinema que consumimos um fiel servidor da tradição judaico-cristã, temente das aventuras do “paganismo”).

E na história do cinema de terror, tais estados zombificados eram personalizados em visões estrangeiras que refletem esse mundo de espíritos e incorporações com uma distância higiénica, onde este “desconhecido” é um inimigo impune ao mundo ocidental. Talvez seja por isso que Hollywood nos orientou com Victor Halperin (White Zombie, 1932) e Jacques Tourneur (Zombie, 1943), até ser constantemente domado e descaracterizado do seu historial “negro” com George A. Romero no tão incontornável “The Night of the Living Dead”. O resto, o leitor deve estar ciente: é “Walking Dead” de um lado, é Brad Pitt do outro a ser jogado em batalhões de mortos-vivos. É a capitalização do tema no expoente máximo!

Bertrand Bonello, por sua vez, requer os zombies para contrastar essa ocidentalização numa narrativa bilateral que nos leva aos confins do mundo, mais concretamente ao Haiti, centrado num conto de zombies e espiritualidades num liceu de meninas francesas com todos os problemas de primeiro mundo associados. É curioso que nesta jornada de dois tons o realizador tente devolver as dignas origens à criatura hoje enraizada na nossa cultura popular. Através disso, joga pelo incompreensível, pelo menos para as audiências não familiarizadas ao culto, e cria uma falsa enfâse dramática à cultura branca eternamente despida de mitologia própria. As apropriações são aqui um jogo bifurcado, ora nos guias por um colonialismo estruturado sobre uma disposição ao digno “exotismo” (que deve ser falado como racismo e não somente como admiração cultural) e, por fim, descortinando esquematicamente todo um folclore.

Em “Zombi Child” falta essa distância, a imaculabilidade do mistério que não compreendemos nem procuramos respostas, mas apenas testemunhamos sem intervenção. Lembramos que não foi há tanto tempo assim que João Salaviza e Renée Nader Messora pediram autorização à tribo krahô para experienciar o seu Mundo. A explicação para a relação destes indígenas para com aquilo que chamamos de sobrenatural, não é algo que seja traduzido no dialeto do “Homem civilizado”.

E num mundo onde as cinematografias filipinas e tailandesas (sim, os Apichatpongs e as suas difusões no gosto ocidental) preservam o encanto desse misticismo normalizado, pedia-se a Bonello que não explicasse as encruzilhadas xamânicas como quem tivesse a descrever reviravoltas. Por que de resto, ele faz muito bem, em devolver à natureza o genuíno zombie.