Denise Fraga: "quando reflectimos sobre a morte, no fundo, estamos sempre a reflectir sobre a vida."
Sonhar com Leões (Paolo Marinou-Blanco, 2024)
"Terra à vista!" Do outro lado do Atlântico, a atriz brasileira Denise Fraga parece ter encontrado novos palcos onde se preencher enquanto atriz e artista. Pisou Portugal pela primeira vez como alguém entre os portugueses — e não como turista — com o filme "Índia", a emancipação de Telmo Churro no território da longa-metragem, onde interpretava uma visitante estrangeira com outras intenções para além de conhecer monumentos, datas históricas de uma cidade e um guia em plena crise existencial.
Contudo, não ficou por aqui. Fraga desenvolveu um gosto pela nossa cinematografia e, com um segundo chamariz, regressa a Lisboa com "Sonhar com Leões", o marcado regresso de Paolo Marinou-Blanco, uma comédia absurda e negra sobre a morte, a eutanásia e o que significa estar vivo numa sociedade que impõe uma felicidade consumida e para consumir. A atriz interpreta Gilda, mulher com desejo de morrer sem dor, assim lhe prometeram, que se inscreve numa empresa de aconselhamento de suicídio. No percurso, conhece Amadeu (João Nunes Monteiro), jovem empregador de uma agência funerária, marcado por um crónico medo de ser feliz.
A atriz falou com o Cinematograficamente Falando… numa conversa que atravessa, inevitavelmente, a morte, o tabu e a arte, talvez a de viver com dignidade.
Isto será uma pequena conversa, muito centrada no filme Sonhar com Leões, mas queria começar com uma pergunta mais sobre a "génese". Ou seja, pelo que percebi, ultimamente tem tido uma ligação forte com Portugal - começou com o filme “Índia”, do Telmo Churro, e numa pesquisa rápida vi também que filmou em Aveiro um outro projeto, “Livros Restantes”, da Márcia Paraíso, que também parece ser uma coprodução luso-brasileira. Tendo em conta esse percurso, queria lhe perguntar: o que é que atrai agora Portugal?
Isso foi uma coisa curiosa que aconteceu. O convite do Telmo [Churro], do Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, chegou em 2021, em plena pandemia. Achei curioso eles me encontrarem, porque no filme do Telmo eu era a única brasileira, ou seja precisava de uma atriz brasileira, portanto houve essa busca. Acredito que algumas atrizes foram indicadas, e o que realmente fez diferença foi um programa que criei no YouTube durante a pandemia, chamado “Horas em Casa”.
O meu marido também é cineasta [Luiz Villaça], meu filho também [Pedro Fraga Villaça], e nós os três estávamos trancados em casa. Temos um grupo de argumentistas com quem trabalhamos, e decidimos criar esses episódios curtos, escritos e gravados em casa, durante aquele momento tão angustiante. Esse programa acabou por ser o diferencial que levou o Telmo a escolher-me, e, curiosamente, quando o convite do Paolo [Marinou-Blanco] chegou em 2023, pensei logo que um tivesse indicado o outro … mas não, não houve essa ponte directa. Só que ambos chegaram até mim pelo mesmo caminho: o “Horas em Casa”.
O filme do Paolo já tinha uma coprodução com o Brasil e também com a Espanha, e o facto da Gilda ser brasileira não exigia, necessariamente, uma atriz brasileira - poderia ser de qualquer nacionalidade. Fiquei muito feliz por ter sido a escolhida, ainda mais porque tenho Portugal no sangue: minha família é toda portuguesa.
Fui criada numa casa com sotaque português, acho que mais para Norte: minha avó era de Matosinhos, meu tio casou com uma mulher de Trás-os-Montes, meu avô nasceu em Vila Nova de Gaia... então cresci ouvindo muito esse português. Até hoje uso expressões como "vou lá ter com vocês", que muitos brasileiros nem entendem [risos].
Na infância, passava o dia na casa da minha avó, porque minha mãe trabalhava. O meu tio era taxista, e muitas vezes me levava com ele pelo Rio de Janeiro, dizendo que ia levar a sobrinha ao dentista, mas que afinal era só um passeio. Então, quando vim filmar o “Índia” e fiquei dois meses em Portugal, tive uma sensação muito forte de "estar em casa". Já tinha visitado o país antes, mas sempre como turista e essa foi a primeira vez que estive mesmo entre portugueses.
Índia (Telmo Churro, 2022)
Durante as filmagens do “Índia”, a Márcia Paraíso, que mora em Florianópolis (onde há uma forte influência açoriana, até com um certo "sotaque aportuguesado") me contactou para o seu novo projeto que estava a preparar. Curiosamente, era sobre uma brasileira que “larga tudo” para viver em Portugal, convidada para uma residência artística em Aveiro. O mais curioso é que ela nem sabia que eu estava em Portugal! É incrível como Portugal foi surgindo na minha vida. Hoje sinto uma conexão muito forte com o país, não só pela herança familiar, mas também pela comida, pelos sotaques, pelas experiências. Esses convites aqueceram meu coração.
Queria voltar também ao “Índia”, porque a sua personagem é, à primeira vista, uma turista brasileira, mas ao longo do filme percebemos que não é bem isso .. ela vem a Portugal para se aproximar da morte, do luto pelo marido, e em “Sonhar com Leões”, temos uma outra mulher que quer morrer, que procura o fim com dignidade. Apesar das diferenças entre as personagens, ambas se relacionam de forma muito intensa com a morte. Antes delas, a webserie "Horas em Casa", em que lida com um constante clima de incerteza, e de inevitável morte ao redor, visto tratar-se em tempos de pandemia. Queria falar sobre isso, e se vê esse fio condutor. E também ... quando leu o guião de “Sonhar com Leões”, se não pensou: “Isto é muito ousado”?
É verdade. Existe aí um fio comum. Até comentava isso noutra entrevista: os personagens não aparecem por acaso. Acredito mesmo nisso. Eles chegam em momentos em que temos algo a aprender, ou que nos ajudam a processar vivências que estamos a atravessar, ou então vêm como um aviso, uma preparação. A Gilda, por exemplo, apareceu numa altura em que precisava de força para lidar com a decadência física da minha mãe, que faleceu agora em janeiro. A minha mãe era extremamente lúcida, adorava viver, mas o corpo foi-se tornando uma prisão e isso tem muito a ver com a Gilda, uma mulher intensa, criativa na forma como vive. Para ela, não fazia sentido viver sem liberdade, sem prazer. A minha mãe também era assim.
Num festival na Arábia Saudita [Red Sea], onde exibimos o filme, um rapaz me disse: “Nunca torci tanto para que uma personagem que gostei morresse.” E isso diz muito sobre a Gilda. Ela tem um carisma tão grande que faz da morte uma vitória, é quase um pensamento paradoxal.
Então sim, acho que “Horas em Casa”, o filme do Telmo, “Sonhar com Leões”, a morte da minha mãe, o contexto da pandemia … aliás nós não vivemos a pandemia, nós vivemos a pandemia no Brasil, sob Bolsonaro... tudo isso se cruzou. Foi, talvez, a época mais reflexiva da minha vida profissional. Sempre fui uma pessoa inquieta, muito voltada para essas questões da existência — uma “filósofa de boteco” [risos], digamos assim. Gosto de conversar sobre a complexidade da vida e esses trabalhos vieram mesmo intensificar essa busca.
A Gilda foi uma das personagens mais ricas que já interpretei: ensinarem-me algo, de irem além da simples atuação. Ela tem um autoconhecimento muito grande, uma clareza sobre o que quer e o que não quer. E quando refletimos sobre a morte, no fundo, estamos sempre a refletir sobre a vida.
Sobre esse aspecto que acabou-me por contar sobre o festival na Arábia Saudita, curiosamente, aconteceu-me o mesmo. “Espero mesmo que a Gilda morra. Que consiga cumprir o seu desejo.”, pensei eu, pedindo para que o filme não enveredasse por um caminho mais moralista… No fundo, estamos a referir um tema muito delicado, e o humor do filme ajuda, não a branqueia-lo, mas suavizar o peso da questão. A eutanásia, aliás, ainda hoje … não sei como está no Brasil, mas creio que a situação é ainda mais complicada do que em Portugal … é um tema que continua a ser muito fracturante.
Não sei se houve algum momento, durante o filme, em que o argumento apontava para um desvio, um "rebound", nesse desejo mórbido da Gilda. Mas não … Adorei o argumento. Quando o li, a minha reação foi: “Quem é esse cara? Quem escreveu isso?” Quis logo conversar com o Paolo, e a primeira coisa que lhe perguntei foi: “Por que é que você escreveu isso?”. Sou muito curiosa sobre as motivações das pessoas, e é interessante a forma como ele resolveu abordar este tema.
Acho que é um filme único. Não existe outro igual. É difícil até de o encaixar numa categoria. Ele tem uma especificidade muito própria, de alguém que teve uma ideia original para tratar um assunto extremamente delicado, não só complexo, mas também tabu. É um tema sobre o qual, geralmente, as pessoas não conseguem aprofundar a conversa como deveriam, justamente por ser difícil.
Aconteceu uma coisa curiosa comigo. Durante todo o tempo em que estive envolvida com o filme, li muito sobre eutanásia, e tornei-me uma pessoa muito a favor do seu direito. Acho que todos deveríamos ter o direito de morrer. Ou melhor: o direito de viver dignamente … é mais por aí. Essa é a verdadeira questão. Porque o “direito de morrer” é, claro, um conceito relativo, ma medicina, hoje, permite-nos tantas formas de prolongar a vida que precisamos, sim, de refletir sobre o que significa estar vivo, diante de tantas possibilidades de continuar vivo... sem, de facto, viver.
A maneira como o Paolo decidiu abordar o tema, usando o humor, foi muito feliz. Porque, em nenhum momento, o espectador deixa de sentir a dor. Falávamos muito disso durante o processo. Acho que a morte continua a ser um tabu, talvez não tanto pelo nosso próprio fim, mas pelo fim das pessoas que amamos. É essa a grande dor — a perda. E nós evitamos de falar sobre o assunto porque não queremos encarar essa dor. É aquela velha história: é pior para quem fica. Porque, para quem vai, muitas vezes, a pessoa já está pronta.
A webserie "Horas em Casa" (2020)
A minha mãe, por exemplo, falava com muita clareza sobre a morte. Dizia: “Estou cansada. Já deu. Aproveitei.” Ela parecia a Gilda. “Eu aproveitei. Eu vivi, minha filha. Fiz tudo o que quis. Mesmo casada com o teu pai, fiz tudo o que quis.” Essa consciência... é algo muito forte e foi muito claro que, para ela, quando o corpo virou uma prisão para tanta vida, para tanta pulsão e desejo, ela já estava pronta. Mas não tinha acesso à eutanásia, e penso que, se tivesse, teria ido antes, com dignidade.
Isso fez-me pensar muito, porque mesmo depois de ter vivido a Gilda, de ter feito esse papel, tudo o que vivi com a minha mãe nessa “sobrevida” que a eutanásia teria evitado... trouxe-me questões e inquietações. Será que, se ela tivesse esse direito, teria mesmo optado por ir mais cedo? E, se tivesse, será que teria feito disso um ritual? Uma celebração? O que todo esse processo me ensinou foi que a trajetória do fim — quando, por exemplo, a Gilda decide partir e começa a ver que aquilo está, de facto, a acontecer — desperta nela uma felicidade. É muito louco. Ela não desiste da ideia, mas, ao mesmo tempo, quando chega a Maiorca, encontra aquela beleza... e está a viver uma paixão. Algo surpreendente, até para ela.
É como se a vida invadisse aquele momento. Acho que isso também faz parte. Essa percepção aumentada do viver. Essa consciência do tempo e da existência. Isso também faz parte do fim. Pude ver isso com a minha mãe. Vivi momentos de uma intensidade muito bonita com ela nesses últimos tempos. Acho que, se tivéssemos um pouco mais de consciência de que todos vamos morrer, viveríamos melhor.
É muito difícil viver como se fôssemos morrer — porque não queremos pensar nisso, mas, se conseguíssemos viver com um pouco dessa consciência, daríamos mais valor às pequenas coisas. A vida é curta, e, muitas vezes, deixamos o essencial de lado por causa da correria, dos boletos, do trabalho… e, nessa demanda diária, esquecemos de viver plenamente. De saborear a vida como ela merece!
Se nós, seres humanos, soubéssemos exatamente o dia em que iríamos morrer, aproveitaríamos mais a vida do que nesta incógnita da existência?
Definitivamente! Pessoalmente, sinto que tenho uma certa tranquilidade em relação à morte.
Há pessoas que não gostam de falar sobre o tema, que o negam. Cada vez que se fala em morte, respondem logo: “Ai, para com isso, Deus me livre!” — e rejeitam o assunto. Mas acho que, se compreendêssemos melhor o ciclo da vida, se tivéssemos essa consciência... Não sei se seria preciso saber a hora exata, porque isso dá um nervoso danado. [risos]
Tem uma música do Gilberto Gil em que ele canta: "Eu não tenho medo da morte, tenho medo de morrer." Essa distinção é muito significativa. O momento da passagem — esse lugar misterioso — como no solilóquio do Hamlet: "To die, to sleep... To sleep, perchance to dream..." — ninguém nunca voltou para contar como é. E é aí que mora o medo. O medo não é só da morte, mas de não sabermos como é morrer.
Toda a gente deseja morrer dormindo. Então, sim, o momento da morte é uma grande interrogação. A Gilda, por exemplo, tem essa aflição: ela quer morrer sem dor, quer esse direito. E, mesmo assim, ela não consegue se atirar. É difícil atravessar esse limiar.
Mas se nós compreendêssemos melhor o ciclo da vida - que vamos morrer - talvez vivêssemos de outra forma. Cada aniversário que faço, penso: “Ai, meu Deus, não vai dar tempo...” Sabe aquela “síndrome da livraria”? Eu tenho isso. Sempre que entro numa livraria, fico angustiada. É tanto livro! “Não vou conseguir ler tudo. Não vou conseguir ver todos os filmes. Não vou conseguir rever todos os amigos.” E talvez o nosso medo da morte, ou mesmo a recusa em falar sobre ela, venha dessa angústia diante do tempo.
Porque, se tivéssemos total consciência do tempo, talvez vivêssemos angustiados com a sua finitude. A vida é múltipla demais, e vamos seguir o ritmo da música, na corrente do rio. Mas se soubéssemos exatamente quanto tempo temos, haveria quem agendasse tudo — os metódicos fariam um projeto de vida, um organograma do que fazer em cada ano...
Denise Fraga e Paolo Marinou-Blanco durante a rodagem de "Sonhar com Leões"
E, nesse sentido, talvez o próprio medo da morte nos poupe de uma relação demasiado pragmática com a vida. Se falássemos mais sobre a morte, se compreendêssemos a vida como uma jornada, uma viagem que nos foi dada … uma oportunidade de experimentar, de aprender, de desfrutar tudo o que ela tem para nos oferecer … tentaríamos vivê-la da melhor forma possível.
Muito mais do que se estivéssemos distraídos, sem saber por que estamos aqui, sem querer pensar no fim. A verdade é que estar vivo é um privilégio. Esse bilhete que recebemos para esta viagem é algo precioso, e, sim, acredito que essa consciência nos faria viver melhor.
Sobre o filme, quero referir arrojo — especialmente para a nossa cinematografia, a portuguesa — que a tua relação, no filme, com o jovem Amadeu (João Nunes Monteiro). Esse relacionamento que se constrói no filme é bastante rara para o cinema português, porque pouco, ou quase nunca, lidamos com esses romances ou sexo como afronta ao “idadismo”.
Pois é. A diferença de idades não é tema do filme. O filme não trata disso e nunca se fala diretamente sobre o assunto. Até cheguei a dizer que queria tocar nesse ponto, mas o Paolo respondeu: “Não precisa, não é o tema.”
E isso é muito interessante, porque, em qualquer outro lugar, isso se tornaria central, mas a coisa mais bonita do mundo é ver essas duas pessoas, que à partida, segundo o olhar preconceituoso que a sociedade ainda tem, não seriam “apaixonáveis” uma pela outra, a apaixonarem-se. É tão bonito ver a intimidade e a cumplicidade entre eles crescendo!
E vai crescendo... e tu nem sabes bem se eles vão mesmo tornar-se um casal ou não. Até que há um beijo, e aí percebemos que o amor entre as pessoas, e a paixão propriamente dita, está muito além daquilo que nós, culturalmente, definimos como “par romântico”, seja na dramaturgia ou na vida. As pessoas apaixonam-se umas pelas outras independentemente de género, de idade, e a vida mostra isso a toda a hora, nas experiências reais, mas continuamos a insistir em ver isso como um tabu.
Diz-se: “Ah, mas ele não se apaixonaria por ela.” Mas a paixão é surpreendente. Ela ultrapassa os desejos primários, os corpos até. Por vezes estás a conversar com alguém por quem, num primeiro momento, não sentes nenhuma atração, nenhum desejo sexual, mas essa pessoa começa a dizer coisas que te tocam, e, de repente, aquilo desperta um “tesão danado” [risos]. É curioso como colocamos a paixão fora do lugar onde, de facto, ela pode acontecer.
Gosto muito disso no filme: ver o quanto eles vão criando cumplicidade — esse casal improvável — e, quando essa cumplicidade floresce, ela é ainda mais forte. Porque é fruto do impossível. Do absurdo.
Sim, e gostaria também de perguntar sobre algo que me fascinou no filme: toda a imagética da empresa de aconselhamento de suicídio, a Joy Transition International., que invoca — até pela parte de ser num armazém — das igrejas pentecostais, especialmente aqui em Portugal, as evangélicas e tudo isso… Mais a propagação dos movimentos de coaching, e outros palcos motivacionais.
Sim, sim. Nunca falámos diretamente sobre isso no filme. O Paolo escreveu e criou toda uma forma plástica muito singular. A direção de arte do filme nesse aspecto é preciosa. Os figurinos da Maria [Barbalho] são incríveis nesse aspeto, porque eles criam uma ambiguidade - nem sabemos ao certo o que aquilo é. É uma mistura de empresa, de culto, de algo meio místico… Mas depois há aquela mão imensa no armazém, que parece mesmo uma mão de marionete sobre as pessoas. E aquele sorriso... aquela máscara com o sorriso forçado … O Paolo está a falar de algo que vai para além das igrejas pentecostais ou de qualquer outra coisa definida. Ele fala da nossa era coach, dessa era que exige de nós uma felicidade histérica.
Hoje em dia, as leituras mais oferecidas são de autoajuda. Reparo nisso nas livrarias de aeroporto — como viajo muito, passo por muitas — e fico sempre a pensar: “Gente, isso é desleal!” O sujeito está cansado, estressado do trabalho, de andar a voar de um lado para o outro… e quando entra na livraria está tudo a gritar com ele: “Tire sua vida do rascunho”, “O Poder do Agora”…
Aí no vosso país também tem um que é “A arte de dizer o foda-se”?
Tem, tem sim.
“O Poder do Hábito”, “Ganhe dinheiro agora”... São títulos de salvação e a verdade é que nós queremos uma salvação. Só que temos de ter cuidado com essa ideia de salvação.
Sonhar com Leões
A Gilda, quando pega aquele panfleto que diz “Como morrer sem dor”, é óbvio que quer saber o que aquilo significa, e ela vai, mesmo desconfiando o tempo todo, mas depois o filme vai criando aquele teatro do absurdo maravilhoso.
Aquelas pessoas a dizerem aquelas coisas, aquela comédia que roça o absurdo — e os atores que são geniais … a Sandra [Faleiro], a Joana [Ribeiro] e o Alex [Tuji Nam]. Adoro todas as partes da Joy Transition. São quase como um spin-off dentro do filme…
Quando fazia o “trabalho de casa”, dei de “caras” com um podcast chamado Ribalta Podcast, em que Denise foi convidada para um dos episódios, e na altura da apresentação, há algo que diz, que gostaria de explorar um pouco consigo. Quando lhe pedem para se definir, para se apresentar, a Denise diz que é uma atriz, mas também se define como uma artista. Gostava de terminar com esta pergunta: Uma atriz não pode ser uma artista?
Pode, sim. Claro que pode. O que acontece é que nem todo ator aproveita toda a sua condição de artista. Um ator é um artista. Mas o que acontece, muitas vezes, é que — com os meios da industrialização da arte, com a força da televisão aqui no Brasil, e até mesmo no cinema — muitos atores acabam por se privar das suas potencialidades criativas. Privam-se da sua capacidade de dizer algo, da sua vontade de expressar através do trabalho. Privam-se da sua condição autoral.
Sempre que faço um filme, o “Sonhar com Leões” do Paolo é um exemplo claro disso, tento sempre imbuir-me do espírito do criador. Neste caso, a primeira pergunta que lhe fiz foi: “Por que você escreveu isto? O que você quer dizer com isto?” Isto porque o que mais quero, quando estou num projeto, é fazer aquele cineasta feliz. E para o fazer, não posso ser só uma marioneta morta nas mãos dele, tenho de estar cheia de vida, da alma, da razão que levou aquela história a ser contada.
Então, quando me aproprio, ou melhor, quando pego emprestada a alma do cineasta, tudo aquilo que ele quer dizer, tento compreender profundamente, para poder dizer junto com ele, da forma mais plena possível. Quando digo que agora já me considero uma artista, e não apenas uma atriz, refiro que no meu trabalho tenho procurado, cada vez mais, esse potencial de expressar, de dizer algo através daquilo que faço como atriz, da minha performance e da minha presença. Mesmo quando o projeto não é meu, arranjo uma forma de dizer algo com ele. E quando o projeto é meu — que geralmente é no teatro — escolho as peças que faço porque quero dizer algo com elas.
A escolha do texto já é, por si só, um discurso. A história que escolho contar já carrega em si o meu posicionamento no mundo. Acredito muito que os discursos, na maioria das vezes, servem mais a quem os profere do que a quem os ouve. Inclusive os livros de autoajuda, muitas vezes você só consegue mesmo transmitir aquilo que precisa quando conta uma história. Acho que as histórias dizem muito mais do que os discursos.
Sonhar com Leões
E nós estamos a viver uma época em que estamos a levar um grande olé, como dizemos aqui … um embuste. Porque a internet está cheia de discurso e cheia de opinião… mas com muito pouca história, pouca vivência e pouca experiência real. E é pela experiência vivida de alguém que você chora, que você se emociona, já com a opinião, não. Você até pode absorver uma opinião, mas se ela não vier sustentada por uma vivência, corre o risco de ser uma opinião emprestada. Uma ideia que pousa num terreno frágil, sem a experiência necessária para a sustentar.
Até é generoso quando alguém escolhe dizer o que tem para dizer através de uma história, e é isso que tenho procurado fazer no meu trabalho. Talvez seja por isso que agora me defina também como artista.