Dear Carlos, I killed him,
Querido leitor,
Espero que estejas bem, é o que mais desejo. Escrevo-te … posso tratar-te por “tu”? … para falar de um curioso caso de adaptação de videojogo. Não refiro aquelas ‘coisas’ milionárias que tentam encontrar espaço na indústria, nada disso. Quero-te falar de uma produção independente bem ao estilo daqueles que nos chegam todos os anos pela Tribeca Film Festival. Sim, é americano, mas não é Hollywood como se quer fazer crer. Ora bem, deixa começar pela premissa.
Então temos dois jovens - Carlos (Danny Ramirez, um dos miúdos da escola improvisada do Maverick no fenómeno “Top Gun”) e Sarah (Keana Marie) [ele é de Oklahoma, ela é da Louisiana] - o qual nunca cruzaram um olhar sequer, são perfeitos desconhecidos, mas ao mesmo tempo se “conhecem”. Porquê? Porque trocam cartas um ao outro, não por iniciativa própria, mas fruto de uma iniciativa escolar que ambicionava devolver a tradição dos “pen pals” (amigos de correspondência). E é através dessa troca de cartas, do qual se conectam, e passando um tempo (o filme assim aborda essa elipse por um turbilhão de voz-off) criam afeições e cumplicidades, que serão porventura testadas. Tal teste acontece no dia em que Carlos recebe uma carta alarmante da sua emissora. Sarah clama ter matado alguém ("Dear Carlos, I killed him,”). Mas quem? Determinado, o jovem inicia-se numa investigação de própria conduta, tentando, não só apurar o sucedido, mas encontrar o paradeiro da atormentada rapariga, no entanto desaparecida.
Acredita no que quiser, mas este thriller é uma adaptação de um videojogo japonês [da produtora Kadokawa Game]. Partilha o mesmo título - “Root Letter” - e também a narrativa detetivesca (iniciada por uma carta intrigante). A única menção que tens desta relação é nos créditos iniciais [“based on a video game”]. O que não impediu da realizadora e atriz Sonja O’Hara (da série “Doomsday”) em transladar aquele universo de metrópole nipónico para a realidade norte-americana, instalando-o numa comunidade em crise de opiáceos, entre “white trash”, violência como apaziguação de uma estagnação social e ainda a saúde mental alinhado à horoscopia do enredo.
É uma produção que tenta falar de juventudes inconscientes e desamparadas nos “confins do Mundo”. Existem avisos ao longo da narrativa que advertem à secura que este lugar [Louisiana] nos traz, como em certo momento um dos personagens aconselha a nossa Sarah a evadir da sua terra natal. “Não pertences a este lugar”, é este o aviso. Poderia ter seguido, poderia, mas se o tivesse não teríamos filme. Depois disto há uma festa psicodélica em registo doméstico, é o momento auge de “Root Letter”, o que revela uma certa vitalidade no olhar de O’Hara, elemento que parece não abundar no guião de Dan McBride.
Quer dizer, é de valor, no sentido em que temos uma produção que não anseia aproximar ao legado do jogo, nem se envolver em relação nefastas com “easter eggs”, nesse aspecto, é uma criação à parte (como todos as conversões de videojogos devem ser). Infelizmente, é um filme enraizado na sua própria inexperiência e gula, quer na vontade de interagir com todos aqueles referidos elementos político-sociais, condensando a sua faceta de mistério em um “caso da semana” anoréxico, de fácil resolução e sem consequências. Um sintoma sentido no eventual clímax, completamente dissipado à sua previsibilidade e às personagens secundárias sem estofo em sair dos arquétipos do qual se saíram aprisionados.
Poderíamos estar na presença das brisas de um “Shotgun Stories" reproduzidas num proto-clube de marginalizados, mas não é isso que acontece, em uma hora e vinte de duração temos um enredo frágil que parece sustentar-se no esforço. Por outro lado, as cartas, eventualmente ditadas em voz-off, auferem um tom neo-noir, sugerindo ainda mais um filme longe daquele que realmente foi materializado. E o final, possivelmente a sequência mais delicada e engenhosamente planeada deixa-nos claro o que “Root Letter” poderia ser, e que não fora.
E com isto despeço-me, espero que tenhas recebido esta carta, até porque hoje em dia escrever cartas é obsoleto. Não há valor algum em depositarmos a nossa escrita e não sentirmos compensados com a sua leitor. Posso pedir-te o teu feedback? Uma resposta, por mais fria que seja?
Não prolongo mais,
Com os melhores cumprimentos, e um sincero desejo de bons filmes. Aliás, bom cinema.
Hugo Gomes