De tripas de fora, o meu coração transforma ...
Em coro, noticiamos um filme que se impõe numa vertente fabulista. Uma dívida de carne cometida por uma mãe vitimada pelas ameaças de uma “comedora de lobos”, criatura nefasta que se metamorfoseia em tudo o que mata, e que, num determinado dia, 'invade' o seu domicílio. O preço era a criança que segurava nos seus braços sob o olhar aterrorizado da progenitora, um pacto de sangue feito e cumprido… quer dizer, nunca chegando a esse propósito, visto que a criança, uma menina, é posteriormente mantida em segredo numa gruta, longe dos olhares humanos e sob a proteção da natureza perante aquela semi-bruxa disfarçada.
Dezasseis anos passaram, a menina cresceu numa bela jovem (Sara Klimoska), animalesca como seria de esperar pelo incompreendido exílio, desconhecendo o mundo para além daquelas paredes cavernosas, a galeria rochosa que recebiam ocasionalmente a sua mãe, agora mulher obsessivamente paranoica. A fortaleza é previsivelmente 'desfeita' pelo pico da maioridade, a 'criatura' que há mais de uma década prometeu recolher o seu “prémio", chega sob a forma de uma rapina, atenta e astuta. A jovem é então “libertada” da sua progenitora biológica e adotada como cria desta figura-bruxedo, ensinando a morte como quotidiano e o isolamento como regra de ouro para a sua subsistência, e como recompensa, a transformação como parte do seu desígnio. Durante dezasseis anos a gruta foi tudo o que ela conhecera, a sua Caverna de Platão, agora a sobre-informação deste novo ambiente a leva ao extremo da curiosidade, ao incompreensível e nesse signo, a sua 'infiltração' na comunidade humana.
Através destes golpes e apropriações identitárias e corporais, visto que é parte da visceral matança que a agora criatura assume a forma da sua presa, a protagonista vai incorporando lições de género naquele simplório estatuto social. Primeiro a mulher - aqui Noomi Rapace bailando nos ritmos da loucura numa liberdade performativa impressionante - assumindo a sua opressiva forma de ser, ordenada às lides caseiras e maternais, contando com a comoção de outras mulheres e a objetificação do seu bruto marido. Mais tarde, o homem - Carloto Cotta, no seu estado delirantemente natural - gozando de um poder imenso posicionado na sua genitália e igualmente esmagado pela pressão do patriarcado, o qual afigura. E, por fim, a criança, o crescimento e o ritmo fluidamente natural com que parte, é através desta perspetiva que o equilíbrio dos seus anos perdidos, aqueles remotamente figurados na fortaleza natural enquanto berço de dezasseis anos.
"You Won't Be Alone" (co-produção australiana, inglesa e sérvia) é, usufruindo do seu folclore macedónico, uma reflexão à Humanidade, repartida nos seus valores sociais, identitários e de género. O que valida ser humano? Goran Stolevski dirigiu e escreveu este tratado no seu território fantástico, violentíssimo reconto das infraestruturas humanas que intensifica enquanto filosofar vivente (não há absolutismos, só dúvidas gerando mais dúvidas), porém, aquilo que foi aqui descrito poderá abrir o apetite a recém-visitantes, só que a execução é preguiçosamente encostada a um efeito autoral miope, ou seja, o filme segue o registo malickiano (ou maliquices taradas); voz-off, sequências desconectas e longínquas de um natural raccord, a quasi-ausência de diálogos entre personagens, subserviente à tese ao invés da ação. É uma viagem com princípio na lenda e com percurso agreste naquilo que a autoralidade é confundida, neste caso, a noção autoral (apesar de tudo, uma tendência tão americanizada) de um Malick emprenhado e embelezado. Chamemos um exorcista para expulsar tal espírito malevolente!
Uma pena, que perante estas escolhas artístico-narrativas se sacrifique uma 'criança' com bastante potencial. Daqueles exercícios que preenchem teorias, só que desengonçados na sua prática.