Críticas do Futuro
Crimes of the Future (David Cronenberg, 2022)
O meu percurso cinéfilo tem vindo a ser construído graças às redes de blogues que procuram fazer da escrita uma experiência de continuidade, uma extensão do encontro com o cinema no grande ecrã. Para quem vive fora dos grandes centros urbanos, esta relação que se estabelece com os filmes é preponderante na formação de uma visão de fundo sobre a história do cinema: longe do policiamento institucional e face às incontornáveis (e incontáveis) ausências em cartaz, mas também de uma programação que se possa dizer mais rica e abrangente, é nestes espaços virtuais que o jogo do cinema muitas das vezes se joga.
Tanto assim é, que frequentemente me interrogo se a relação entre a escrita e o cinema não será sobretudo alimentada por um fora de campo que se quer chamar para a realidade do quotidiano: a escrita enquanto domínio daquilo que não se vê. Uma continuidade entre a experiência de um corpo que vê, com aqueles para quem o cinema ainda não é mais que o desejo de imagens em movimento, uma ânsia de viver o mundo com os sentidos do cinematógrafo.
É claro que este nosso mundo de 2022 é muito diferente do de 2007. No que toca ao cinema, a exibição em plataformas de streaming é hoje uma realidade incontornável: mais filmes, uma oferta que chega a todo o lado e a toda a hora. E o que daqui resulta é também um espaço público cada vez mais disperso e difícil de descrever – tudo mudanças com consequências relevantes para a crítica de cinema. A excitação constante do imaginário coletivo pela ubiquidade da imagem em movimento não tem produzido modelos críticos com uma relação forte com a realidade do quotidiano, e aqueles que o fazem continuam invariavelmente ancorados em dinâmicas institucionais fossilizadas na era pré-internet.
Entretanto, o scrolling de feeds tornou-se numa experiência cinematográfica ultra-moderna-super-hardcore 24/7, uma realidade que não tem sido muito amiga para a crítica de cinema enquanto espaço autónomo de reflexão. Os filmes estão em todo o lado, e há por vezes a sensação de que a crítica não tem muito a dizer sobre esse oceano de imagens. É como se a permanência das imagens fosse afinal uma perversão desse fora de campo que parece ter inspirado diferentes gerações a filtrar a experiência do cinema pela escrita.
Se existe uma crise na crítica, isso também se deve a um novo posicionamento do campo da arte perante a realidade. O mapeamento da contemporaneidade tornou-se impossível, e há no ar uma sensação de afterparty. Ainda bem. Cinematograficamente falando: enterre-se o velho mundo, instalem-se os novos órgãos.
*Texto da autoria de José Raposo, crítico de cinema do C7nema e colaborador da revista LOUD! Magazine