Coppola sonha, a obra nasce ... como amar ou odiar "Megalopolis"?
Coppola, a eterna ‘criança’ …
É um realizador em constante experimento, e como tal, em terras de Hollywood sob a lei da bala e da indústria, os ventos não lhe sopram favoravelmente. Francis Ford Coppola, hoje uma figura tanto magnânima quanto marginalizada — seja pelo seu desalinhamento com o sistema vigente, seja pela falta de imediatismo com que se relaciona com os novos cinéfilos - tornou-se ao longo destes anos num seminário-vivo para com a formação das nossas cinefilias, quer pelos seus trunfos em jeito de risco ou dos seus riscos que somam trunfos. De “The Godfather” a “Apocalypse Now”, consensos hoje tidos o qual se encostam “Drácula de Bram Stoker” e o ainda pouco referido “The Conversation”, escolas filmadas em película que primaram e estabeleceram um código interno de sério filme de prestígio dentro dessa linha de montagem hollywoodiana.
Infelizmente nem a fluvialidade é de boas correntes, os fracassos amontoaram numa pilha mais elevada que as flores e os elogios, Coppola, “aluno” das escolas de Corman [“Dementia 13”, 1963], reinventou-se e reinventou-se - não apenas como resposta à sua sobrevivência na indústria que o havia apadrinhado, como também servindo de chocalho para a sua “criança interior”. “Megalopolis”, o seu mais recente produto de “vaidade”, é essa brincadeira: a de alguém que, tal como uma criança, "brinca" com os formatos e as possibilidades, alheio às convenções do mundo em seu redor.
Utopia megalómana …
Nesse paleio de uma distopia futurista, uma Nova-Iorque possuída pelo anacronismo do Império Romano, que anseia por uma unificador político-sócio-cultural - uma utopia portanto. Marca-se a ingenuidade discursiva de Coppola em querer encontrar uma solução matemática às fragilidades deste mundo, onde classe, poder e populismo formam um triângulo simbiótico cada vez mais predominante. Nota-se aí o seu calcanhar de Aquiles: a de uma inocência quase pragmática que, ao mesmo tempo que tenta consolidar-se, revela-se incapaz de comunicar eficazmente com as novas audiências e até mesmo com as ‘velhas’ embebidas das antigas fragrâncias da ambiguidade de Nova Hollywood, o qual Coppola teve sempre um pé assente e outro num fora inclassificável.
“Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.
Uma terceira juventude …
Foram precisos outros quantos, e bastante, anos, para que o realizador, empurrado para fora do círculo de confiança da indústria desde o fracasso de “Supernova” (2000) — um filme de ficção científica que recusou assinar —, seguisse para uma nova vida, ou melhor, entrasse numa "Segunda Juventude" (“Youth Without Youth”, 2007), culminando no auge da experimentação com “Twixt” (2011), até que finalmente pudesse concretizar este seu sonho. Como era de esperar, o delírio, se assim o podemos chamar, exigiria centenas de milhões para ser "materializado", e como era igualmente previsível, as majors não arriscariam tal investimento.
Persistência, carolice ou mera paixão, Coppola vendeu grande parte do seu património para que pudesse auto-financiar “Megalopolis”, dando acesso a um elenco mais variado, pelo menos conseguiu recrutar alguns “atores malditos” destas andanças; seja Jon Voight em versão “Trumpiana”, um Shia LaBeouf histriônico e arraçado ou até mesmo um aceno de Dustin Hoffman, com liderança de Adam Driver, um “furacão humano” que tem sido apontado como avatar para projetos megalómanos ou febrilmente desejáveis dos seus criadores (“Ferrari”, “The Man Who Killed Don Quixote”), ou de uma adocicada Nathalie Emmanuel a servir de “papel de parede”, e sem esquecer da one-woman-show de Audrey Plaza.
A rodagem, segundo os “relatórios” de imprensa, foi um tremendo caos (como o cineasta não estivesse habituado a isso), o departamento artístico referia Coppola como instável, mas enfim, o porquê de julgá-lo tendo o Poder (leia-se liberdade total) da produção toda na sua mão, contrariando o conceito utópico que o filme propõe. Os boatos, esses que alimentam Hollywood de uma ponta à outra, sendo verdadeiros ou não, comprovaram os constantes atrasos de produção, e após a longa espera, apenas em 2024, “Megalopolis” viu por fim a luz do dia … ou, mais precisamente, a luz do projetor.
Mas o que é “Megalopolis”?
Não se trata do que é, nem do que aspira a ser, mas sim do que poderá vir a ser. O Tempo, controlo dotado pela personagem César Catilina de Adam Driver — um arquiteto agraciado pela luz do talento e pelo visionarismo — pára, acelera, metamorfoseia-o ou distorce-o. Um messias de vestes brancas e quase "muskiano", não fosse o seu amor pelo progresso e pela harmonia humana a contradizer o verdadeiro, expressos num discurso à lá “The Great Dictator” de Chaplin, unindo os anteriores três atos ao Novo Mundo ali "descoberto" numa esquina. Neste sentido, e para quem depende inteiramente do guião da “branquitude a ser atirada vala abaixo” (o filme é mais do que essas questões o qual querem colar), “Megalopolis” afronta o idealismo que as grandes produtoras, em grande parte, assumiram como rota de mercado, nesse aspecto, Coppola induz um filme fora do seu tempo, numa dimensão que vai além daquilo que é meramente visual.
Como havia mencionado, a ingenuidade discursiva de Coppola em “Megalopolis” joga mais contra do que a seu favor, mas é por aqui que a ‘coisa’ mais banalizada estagna, o restante … coloquem os cintos … é de uma estranheza confrontadora. Portanto, fica a questão, podemos amar a imperfeição, mesmo que a pregação seja o oposto?
O sentimento ‘megalopolitano’ …
A “criança” em Coppola é então libertada, brinca-se com os visuais, as telas e com os split-screens, encanta-se no CGI que se quer visível e não dissimulado, na montagem delirante, em transe imediato ou nas multi-performances, dentro e fora do ecrã, o cinema imersivo, o cinema interiorizado, o cinema político (o seu ato de existência é … em todo o caso, político) e sobretudo as réstias do seu “cinema ao vivo” (a primeira disputa oratória entre Driver e o seu rival político Giancarlo Esposito expõe o funcionamento desse sistema de captação e performance direta). O resultado soa-nos uma bizarria visual-sonora, mas há nesta entropia uma espécie de cápsula espaço-temporal do cinema de um homem só com o seu legado, os seus pensamentos e a sua relação com esta arte, condensados numa única obra, para que o futuro a possa ver e bem tratar.
Talvez seja precisamente por isso que, enquanto audiências contemporâneas, não conseguimos o amar automaticamente, não estamos preparados para despedir-nos das nossas amarras narrativas, temáticas ou das nossas expectativas sobre o que a arte deve ser e para quem dirigida, como o protagonista, arrogante deveras (mas, por vezes, a humildade esconde uma arrogância maior do que a própria arrogância), que negoceia por um mundo em pleno contacto com todas as suas partes. O adeus a individualismos e identidades destacadas; e um olá ao coletivo humano. Reconheço o quão indigesta essa moral pode ser, visto que, como acredita o cineasta palestino Elia Suleiman, utopias são fabricações, fantasias quase dogmáticas. Somos demasiado egocêntricos e antropocêntricos para nos rendermos a coletividades.
Daqui a uns anos voltaremos a falar de “Megalopolis” … vai uma ‘apostinha’?
When does an empire die? Does it collapse in one terrible moment? No, no... But there comes a time when its people no longer believe in it."