Com vista a outro ponto-de-vista
Um dos pecados originais do Cinema é a explicitude dada como garantia ao espectador. É falar do que mostra, e mostrar do que fala, há toda uma dependência das imagens à narrativa, prendendo o público àquilo que se encontra representado e não as possibilidades fomentadas pelo seu respectivo imaginário, com isso, o cinema narrativo afasta-se da suas supostas raízes literárias por não conceber tréguas ao seu participante, não requisitar a sua colaboração para o preenchimento do seu universo. O Cinema tende a fazer isso, assim, apoiando-se no “senso comum” que nos incita a acreditar. O efeito-sugestão, o fora de plano, a alusão, o simbolismo, anomalias de uma pretendida e perfeita transfusão do entretenimento narrativo, são escapes que o espectador-refém se poderá refugiar por momentos, acedendo às (im)possibilidades internamente projetadas pelo seu ser.
Toda esta conversa de “chacha” não deve ser confundida como um “punho cerrado” em direção ao storytelling, nem muito menos à capacidade visual de um filme em “contar a sua história”, mas por vezes sinto falta dos seus momentos “a sós”, daqueles momentos, que tal como nós, que se isolam para expressar os secretamente os sentimentos ou “tapam os olhos” para auto-impedir de ver os horrores no horizonte. O Cinema também deve incitar o nosso imaginário, o que nos repele ou nos cativa, ou até isso, desafiar-nos a reencontrar outras óticas, outros ângulos de observação sem sermos “cães de Pavlov” atraídos pelo striptease visual. Tenho afetividade por filmes que filmam o “não-visto”, ou desviem a “cara” perante o que muitos entenderiam como crucial para o “coração da história”. Entre esses momentos, abriu-se vaga para mais um, Sérgio Tréfaut é o assinante desse efeito-revoltoso à nossa cultura do explícito.
Em “A Noiva”, o seu novo e, possivelmente, mais arriscado trabalho, seguimos uma jovem lusodescendente (Joana Bernardo) que abandonou a sua vida “confortável” para se casar com um resistente do Daesh, no Iraque. O filme não presta-se a desvendar as origens e causas, nem desculpar-se (ou culpabilizar) pelos atos, ao invés disso, começamos com o encarceramento desta “princesa da torre” e o fuzilamento do seu marido-guerrilheiro. A sequência arranca com uma demonstração - prisioneiros em fila, a serem vendados e esperando pela chamada do seu nome (a última que ouvirão, antes de pisar o reino do Além) e um pelotão de fuzilamento aguardando instruções - a semiótica está feita, o espectador tem a noção do que irá acontecer.
Porém, ao esperado espectáculo de violência - o “choque” etiquetado na cena como atrativo das curiosas ”massas” -, a câmara foge do “palco” dessa construção cénica, não é a sentença de morte do qual Tréfaut deseja captar, nem sequer a queda do “amante corruptível" que “enfeitiçou” uma ocidental para aquele mundo que não lhe pertence. Nada disso, é a própria mulher, os seus olhos, a única presença humana naquele rosto tapado por vestes negras e opressoras [niqab]. O azul pálido do seu olhar, enquanto a sonoridade do seu redor pouco descanso dá. A punição acontece, sabemos disso porque ouvimos, e não só, porque o sentimos nas poucas manifestações de expressão “desenhadas” numa parcialmente ocultada Joana Bernardo. É o silêncio dela, a comoção discreta, e o brilho acentuado de quem, impotentemente e igualmente cedido ao seu destino, depara com o amor, o seu mais que tudo, a desvanecer perante si. Sem despedidas, sem os derradeiros gestos de afecto, sem a permissão desse luto antecipado.
Tréfaut negou essas imagens, essa explicitude, provou pelo ato mais simples de que não há uma função-única para a narrativa e que o decreto de “mostrar nada” por vezes torna-se “mostrar tudo”. E esta mesma sequência alicerçada à força do seu fora-de-campo revela-nos a essência de toda “A Noiva”, uma obra que procura vivências e não juízos, enxerta emoções e não psicologias, e é por estas e por outras que somos subjugados a um ensaio pleno de uma mulher voluntariamente acedida a este universo, sem o uso panfletário, sem ativismo, nem martirológias. É uma escolha sem arrependidos, são perdões sem contrições. Um filme sereno e dramaturgicamente simples que só por aquele e mencionado início nos revela mais do que uma mera mostra - um olhar e novos pontos-de-vista para contemplar o mundo, mesmo este, estar ao oposto da nossa ocidentalidade.