(Cine)rrural
Em todos os meios possíveis, é previsível delinear uma trincheira no seio do Cinema Português; de um lado o cinema “popularucho” - o dito “comercial português” - defendido com garras e dentes por quem o vê como a esperança da diversidade de géneros ou do respeito do tão badalado “storytelling” (a narrativa para grande públicos resumidamente), do outro canto o tal cinema de autor (definição tornada generalizada e que deveria ser questionada, mas isso são outras histórias para outras alturas), considerado umbiguista, presunçoso e acima de tudo, elitista. E é sobre essa última caracterização - o elitismo, o cinema de elites, ou de privilegiados e de cariz urbano-cultural - que remato com uma contradição. Se esse cinema é visto de “nariz empinado”, porque será que é nele que deparamos uma dedicada busca pelo coração da ruralidade?
Desde Reis e Cordeiro, ou ao pedestrianismo de Oliveira, passando até mesmo por Manuela Serra e a sua descoberta (e que descoberta!), gerando “filhos” e “enteados” fascinados por estas comunidades algo remotas, algo desprezadas pelo seu “quê” de urbanismo, resumidamente, a nossa condição subserviente ao globalismo ocidentalizado. Todos os anos, em alturas de colheita à portuguesa, são inúmeros os filmes paridos em tais localidades, as pessoas cujas rugas do tempo determinaram a sua classe (se é que o mundo rural seja encarado como um “classe”, os “outros” de Portugal) que descrevem o seu quotidiano não com a intenção de serem embalados pela difusão cinematográfica, e sim, como gesto de pura ingenuidade, ou talvez na bondade de partilhar histórias para além daquelas contadas em volta das suas lareiras. Para muitos, são retratos com alguma condescendência, algum exotismo depositado naquele olhar que regista, porém, é aqui a oportunidade encontrada para estas vidas terem a sua dignidade no grande ecrã. Curalha, Espinhosela, Lanheses, Bostofrio, Portelo, terras e mais terras que o cinema conservou, seja efeito antropológico, arquivista ou até mesmo curiosidade humana.
Trás dos Montes (António Reis e Margarida Cordeiro, 1976)
Se o cinema vulgo elitista torna isto possível, porque é que o cinema para massas perpetua lugares que achávamos nós obsoletos. Os tempos do “O Zé do Burro” (Eurico Ferreira, 1972) na conquista da África colonial trazendo consigo a “portugalidade” desprezada no seu continente já lá foram, mas o cinema “comercial português” volta-se à parolice quanto ao seu retrato rural, sendo “Curral de Moinas - Os Banqueiros do Povo” (Miguel Cadilhe, 2022) não o primeiro, nem destinado a ser o último da sua ninhada. A série de sketches televisivos no meio-termo do absurdismo e do nonsense, colocando a imaginária terra de Curral de Moinas como o arquétipo do Portugal Rural, adquire nova vida em formato de metragem, nove anos depois de “7 Pecados Rurais” de Nicolau Breyner (2013) ter confirmado como “fórmula” de sucesso imediato.
Mas o que por vezes funciona em pequenas doses não aguenta nas canelas em hora e meia, até porque as caricaturas (e é isso que são, caricaturas não personagens) deixam ao relento as suas incompletas costuras. É difícil identificarmos com estas figuras, e mais, empatizamos com elas, mesmo que o filme utilize o dispositivo da cidade versus campo, o choque cultural como mote da sua eventual narrativa. O problema é que quem “escreveu” isto conhece os costumes e idiossincrasias da metrópole (Lisboa é o alvo), mas “patavina” à “ciência” do meio rural para o poder satirizar. O resultado é monocelhas, feios, porcos e maus (não confundir com o título de Ettore Scola), ignorância ao nível máximo, primitivismo, consanguinidade e “ensopados de castores” (como?), elementos supostamente cómicos, para rirmos do “sem sentido” de uma comédia de exageros. Errata, risca-se a comédia e deixa-se os exageros.
João Paulo Rodrigues e Pedro Alves, Quim Roscas e Zeca Estacionâncio para os amigos, poderiam ter aprendido alguma “coisa” com o sucesso de “Bienvenue chez les Ch'tis” / “Bem-Vindo ao Norte” (Dany Boon, 2008), o de quebrar os preconceitos ao invés de reutilizá-los.