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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinema em vias de extinção ou de mutação?

Hugo Gomes, 23.07.22

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Videodrome (David Cronenberg, 1983)

Em 2005, aceitei o convite para escrever para o c7nema, numa altura em que, olhando para trás, assumo uma limitação maior da minha cinefilia tanto no espaço (i.e. na geografia de onde nasciam os meus filmes favoritos) como no tempo. O YouTube tinha acabado de ser criado e ainda era um palavrão, e a Netflix, se era um nome mais conhecido pelos cinéfilos, era ainda um mero serviço de DVD por correio. Se quiséssemos ver um filme que tivesse acabado de sair das salas de cinema, íamos a um clube de vídeo como o Blockbuster.

Quando penso nesta década e meia passada, ao longo do qual conheci pessoas como o Hugo, ao mesmo tempo que vimos o cinema mudar também ele os meios onde era exibido, a escrita acabou por ser ela um ponto de partida para a memória que ainda estava a começar a criar. Por vezes criticamos os críticos quando pensamos que abusam das referências nos seus textos, mas a verdade é que é esse "jogo" que faz uma pessoa com falhas cultivar melhor o seu conhecimento do passado. Foi a ler um leque de críticos, nacionais e internacionais, que descobri novas obras, e foi a ler as suas críticas que aperfeiçoei a minha própria voz quando era altura de entregar um texto.

A verdade é que o cinema nunca teve tanta disponibilidade como hoje - eu ainda sou do tempo que se perdesse o final de um filme na gravação da videocassete poderia arriscar-me a passar uns tempos sem saber o que aconteceu - e no entanto, falamos na morte desta arte pela sua passagem indiscriminada por todos os ecrãs, do telemóvel ao televisor. Eu creio que o cinema não morre assim... simplesmente o espaço de eleição, o espaço de culto principal dos cinéfilos, foi transfigurado para um conceito de feira popular, com a disparidade nas receitas entre filmes com orçamentos de marketing maiores que os orçamentos totais de milhentos outros. Em 2005, tínhamos espaços como o Quarteto e o King em Lisboa. Em 2022? Mantemos apenas o Nimas e o Ideal na capital, muito graças a ligações próximas a distribuidoras, e a investirem até em negócios que são hoje vistos como "obsoletos" ou de nicho segundo lojas Fnac e afins- como o mercado de DVDs, e de posters de filmes. Hoje as peças de memorabilia dominam (canecas, bonecos... ) e ao mesmo tempo estão restritas a um número finito de obras - i.e. os êxitos de bilheteira, os que convidam os cinéfilos de domingo a uma tarde de diversão e pipocas. 

Nesta reconfiguração do mercado, que a cada dia assusta mais, consigo por um lado empatizar com quem ache que a arte está a morrer. Está a ficar em vias de extinção o cinema "comercial" limitado a passar filmes e quanto muito a tirar uns cafés, que nos acompanhou no visionamento de obras mais ou menos alternativas, sem dúvida. Por outro lado, consigo também racionalizar e perceber que esse cinema de cariz mais alternativo irá sobreviver-nos, quer seja num circuito festivaleiro, quer seja nas cinematecas ou clubes, ou... num ecrã de telemóvel, objeto de ver e ser visto, de filmar e visionar um filme. É preciso, apesar de tudo, não discriminar o "streaming", pois coloca-nos num papel mais interativo e menos pirata, pese muitas deficiências no catálogo que surgem na concorrência feroz entre plataformas. É preciso cobrir filmes diretos para streaming, e não tratá-los com o mesmo preconceito como em 2005 escrevíamos sobre os "direto para vídeo" (nos quais encontrávamos ainda assim verdadeiras pérolas descartadas por distribuidoras!). É preciso percebermos que o cinema está numa fase de transfiguração, de tal modo que há casos onde vemos difícil uma distinção entre TV - com uma qualidade inegavelmente superior com o virar do século - e sétima arte, e grandes filmes de festivais são comprados ora para "streaming" ora por canais de televisão. Haverá sempre quem queira limitar a arte à experiência de ver o filme em sala. Essa nunca será a minha posição, pois a minha primeira cinefilia, mais limitada, surgiu precisamente com fitas de VHS gravadas e regravadas, conforme a necessidade, e não foi isso que tirou a minha paixão.  



*Texto da autoria de André Gonçalves, crítico de cinema do Cultura XXI e podcaster do Peeping Tom, ex-colaborador do C7nema