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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Cinefilia e homicídios perfeitos

Hugo Gomes, 21.07.22

Manhattan Murder Mystery - Woody Allen, 1993.jpg

Manhattan Murder Mystery (Woody Allen, 1993)

 

Carol: What about this: what if they had a big insurance policy, or something like that?

Larry: Too much Double Indemnity.

 

Há poucos dias, revendo Manhattan Murder Mystery, reavivou-se-me no espírito o aspecto central nesse filme de Woody Allen, a que não dediquei um pensamento estruturado da primeira vez que o vi. Falo das relações entre as personagens, claro, mas sobretudo da coreografia amorosa que se impõe, independentemente de haver aqui um casal bem estabelecido, Larry e Carol (Woody Allen e Diane Keaton). Quando uso a palavra "amorosa" não estou a referir-me ao taxativo lado romântico das relações, mas sim a uma determinada paixão em comum que desenha afinidades entre as personagens. Assim: Carol está excitadíssima com a possibilidade de viver ao lado de um assassino, e dedica-se a uma investigação descuidada com todo o apoio e participação do amigo Ted (Alan Alda), ao passo que Larry, atemorizado com a ideia de a mulher, possuída por uma ânsia detectivesca, estar a “infringir a Constituição americana”, prefere aprender póquer com a escritora Marcia Fox (Anjelica Huston). Para completar a dessincronia, Carol gosta de ópera, Larry gosta de hóquei – paladares individuais, mutuamente tolerados mas não partilhados –, e a certa altura ela reclama com o facto de o marido, editor, presumir que ela não gostava de literatura light (um prazer que o próprio partilha com Marcia Fox).

Há um esquema perfeito em Manhattan Murder Mystery para unir pessoas em torno daquilo que lhes desperta curiosidade e motiva diálogos animados. E é por aí que, inevitavelmente, entra na equação uma aragem romântica.

Ao refletir um pouco sobre isto, não consegui evitar aquele cliché de que só se ama alguém que gosta do mesmo filme (ou da mesma canção, como diz o outro). Não acho que seja assim, mas já lá vou. O que este filme tem de mais tocante, a meu ver, é o universo das paixões, específicas e quase solitárias, que conectam duas ou mais pessoas. E vejo ali muito da minha própria cinefilia desengonçada, que tende para o gesto de esbracejar, quando quero falar de uma cena ou de um detalhe que me intrigou, como quem aponta para uma prova de crime. Por exemplo, mesmo na noite anterior a ter revisto Manhattan Murder Mystery, estava num jantar ao lado da esplanada da Cinemateca, onde passava o Invasion of the Body Snatchers de Philip Kaufman, e dei comigo com bichos-carpinteiros a recordar momentos do filme só pelo som que vinha do exterior. Já quase no fim, falei com os convivas do cameo de Don Siegel e daquele grito final de Donald Sutherland. “Como é que te lembras disso?”, perguntou-me o Ricardo, com um espanto engraçado. Não o soube explicar na altura, mas acho que tenho um impulso para “decorar” imagens. Talvez seja uma mera habilidade forense.

By the way, nessa mesa de jantar estavam amigos que não estão sempre de acordo no gosto dos filmes, mas que gostam muito de cinema. Não é essa a magia que nos liga?

Voltando à base, escolhi o plano final de Manhattan Murder Mystery para ilustrar este texto porque corresponde ao momento em que Carol reconhece que o marido foi "surpreendentemente corajoso" na situação de risco que ambos experienciaram. Como se, de repente, a chama amorosa dos dois, qual Grace Kelly e James Stewart em Rear Window, se tivesse reacendido pelo efeito da aventura, ou melhor, pelo efeito da revelação de que Larry está no mesmo plano (concreta e simbolicamente) que ela, e sente na veia a adrenalina que ela sente, mesmo que com uma dose extra de neurose. Estão, enfim, em sintonia nesse bichinho nova-iorquino dos casos misteriosos. A sintonia que também define os amigos cinéfilos, pessoas que podem falar de um filme como quem fala de um homicídio perfeito – para mim, a cinefilia passa por esse reconhecimento no outro de um amor pelo cinema que não se rege por uma Constituição do Gosto.

Obrigada, Hugo, amigo cinéfilo, pelo convite que levou a este singelo exercício filosófico.

 

*Texto da autoria de Inês Lourenço, crítica de cinema do Diário de Notícias, revista Metropolis, À pala de Walsh e da Antena 2 - A Grande Ilusão - e com um mestrado em Cinema e Televisão pela Universidade Nova de Lisboa.