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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Caminhando entre gigantes: Paul Vecchiali, um homem maior que a vida

Hugo Gomes, 19.01.23

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Le Cancre (2016)

Paul Vecchiali nunca acreditou em fazer parte da História do Cinema, o que não lhe impossibilitava de atormentar as suas próprias bases. Provocador, como muitos lhe apelidavam, digamos mesmo que era um prolífico, um polivalente, um homem de “mangas arregaçadas” no que requer à prática de “fazer Cinema”. 

Crítico como crítico na sua vida, descobri Vecchiali nas oportunidades trazidas pelo Indielisboa [em 2017]. Vi parte da sua obra nesses andamentos, sem a menor resistência. Comecei pela empatia, a empatia em não julgar as suas personagens, de nem sequer persegui-las e “enclausurá-las” nas esquadras da moral e da razão. Desse jeito, olhei para aquela face de piedade que só Geneviève Thénier possuía em Les Ruses du Diable” (1966), um contacto directo a de Harriet Andersson em “Sommaren med Moniks” de Bergman, ambas quebrando a quarta parede e solicitando o julgamento por parte do espectador. Nesse particular momento, aquelas personagens deixaram de ser personagens e transformaram-se em algo “nosso”, da nossa realidade, do nosso espírito, Andersson atravessou essa realidade, seguido pela Thénier num filme em que a sua persona era tudo menos agradável de estar. 

Nada no cinema de Vecchiali invoca a fácil conexão, porém não se refugia nos seus “mundinhos”, o seu universo, que se vem abrindo, mais e mais, adquirindo um tom acentuadamente mais intimista (“Le Cancre”, “Train de vies ou les voyages d'Angélique”), mas antes disso o gesto da importunação, “nascer para irritar” seguindo a dica vivente do dramaturgo Dias Gomes. Ora, pena de morte, homossexualidade em períodos tabus, carnalidade, entre outros, “irreverentes” satélites que orbitam essa sua filmografia, Paul Vecchiali foi tudo num só, mas pouco valor lhe atribuíram, hoje esquecido, injustamente ignorado ao cânone e por vezes em desuso perante as correntes ideologias. 

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La Machine (1977)

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Once More (1988)

O único produtor francês na atualidade sou eu” declararia em Cannes em 2016, determinado em não deixar morrer a sua presença naquela nefasta indústria, porém, apesar dos constantes punhos erguidos, Vecchiali era um Senhor (o “S” grande é propositado). Pessoalmente, foi com ele que tive uma das melhores conversas na minha (ainda curta) jornada pelo cinema. Aconteceu na Cinemateca Portuguesa [em 2016], por entre as abarrotadas estantes da sua livraria, ao lado do seu livro de apontamentos sobre cinema francês, “acabadinho” de chegar ao estaminé. , falamos um pouco de tudo - aproveitando o pouco tempo dado pela organização do festival - principalmente sobre a sua relação atual com a arte que aos poucos lhe virava costas e dos seus “pecados”. 

Hoje em dia é necessário bater na política de autores”, frase que ecoou em mim ao longo destes anos, a sua insubordinação contra a uma prisão intelectual e impotência crítica, e além de tudo, uma ode à nossa capacidade de pensar. O homem foi um mestre, e eu, por minutos, o seu discípulo, mesmo que a língua tenha sido uma barreira (o meu francês não é dado a vanglórias). Não me julgou, ao invés disso, demonstrou um carinho pelo meu esforço em construir uma ponte entre duas distintas gerações, cujo ponto-comum era sem dúvida as imagens na tela, esse dialeto universal e transmissível. 

Por fim, recordo, absolutamente, de um acenar de cabeça leve e gentil após ter-lhe dirigido um obrigado pelo tempo disponibilizado por mim. E não foi tempo perdido. Aliás, com Vecchiali nunca é tempo perdido.

Paul Vecchiali (1930 - 2023)

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