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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cães de Palha!

Hugo Gomes, 29.04.25

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Sob os ecos de esclavagismo, como fora pintado por grande parte da imprensa brasileira (e não é por menos, tendo em conta a História do país), o pernambucano "Propriedade", de Daniel Bandeira, parece servir de alegoria para o processo abolitivo da escravatura e consequentemente, o destino dos escravos emancipados nas trasladações rumo à liberdade (deixá-los mal amparados?). Contudo, há igualmente um deleite neste filme a partir de uma perspectiva histórica portuguesa. 

Neste suposto filme de cerco, com rézinhas e secreções aos elementos reconhecíveis do género de terror, guia-se para além da recente historiografia lusitana (já lá vou!), embate nas várias constelações da cinematografia europeia. Mas antes de tudo, escutemos o grito dos aflitos, aqui, com um casal de classe elitista, partindo rumo à sua propriedade para escapar aos traumas e inquietações que os atormentam. Acreditando estar “livre” da criadagem, dos serviçais que, por gerações, assumiram o papel de bem servir a família latifundiária, são surpreendidos à chegada com uma pilhagem e uma agressividade para com os seus “mestres”. Entende-se que a venda do espaço a uma rede de hotelaria atira esse grupo para o “deus-dará”, uma revolta “popular”, que “ocupa” o território e persegue-os até às últimas consequências. A mulher do casa (Malu Galli) barrica-se no interior do seu carro blindado e de última tecnologia, enquanto desesperados, os “servos” planeiam tudo e mais alguma ‘coisa’ para a conseguir expulsar da sua fortaleza ambulante. 

Perante esse caldeirão de classes sociais em choque, invoca-se uma memória colectiva bem à portuguesa: “Torre Bela”, herdade, essa, captada por Thomas Harlan (1977) e imortalizada no nosso imaginário. As imagens expuseram um balão de ensaio da “apropriação de propriedade privada”, ou, no lema de quem a prega, “devolver a terra a quem a trabalha”,  e, por outro lado, registaram a desilusão perante o sonho comunista. Claro que estes “fantasmas” abrem fraturas, muitas delas delirantes, na sociedade brasileira: algures entre uma direita que sonha com comunistas em cada canto e uma esquerda que emprega ideais socialistas num só recanto. Este jogo de maniqueísmos, constantemente equilibrado no trapézio, torna "Propriedade" num objecto encantatório de pertinência, fiel aos seus recursos e limitações, sem nunca se vender por barato.

Seguindo essa tais “constelação europeísta”, é certo que não se desgruda da secura violenta de Sam Peckinpah — "Straw Dogs" (1971), efectivamente [uma produção do Reino Unido] — nesse sentimento de posse que desencadeia a martirológica ruptura,  nem do iconoclasta Luis Buñuel, que ao tratar a pobreza sem branqueamentos morais no seu controverso "Viridiana" (1961), ostenta os desesperados proclamado a sua bondade e o bem praticado em prol de um “mal necessário”. São leituras e devidas releituras, propícias ao facto de "Propriedade" ser na sua essência, aquilo que se espera do terror: manifestação política. E é também suficientemente ousado para não ceder aos moralismos quase doutrinadores. Invoca assombrações por todo o canto, para além da sua capa de enérgico thriller de focinheira pronta (por vezes perdoando os ‘rodriguinhos’ e o exagero oportunista), é uma armadilha político-social, aberta a múltiplas exegeses, sem jamais evadir o seu cinzentismo temático.