Caçarola de um filme imaginário

Se nos centrarmos em “The Protagonists” (1999) e encararmos as primeiras longas-metragens não como a fita de partida de um percurso cinematográfico, mas como a condensação de uma carreira futura, é possível vislumbrar ali a perversão que se tornaria marca de Luca Guadagnino, acrescentando também uma proverbial chico-espertice: a tentativa de ser um autor dentro das suas próprias tarefas. Nada contra tarefeiros, como farto de clamar, mas não nos resumamos às ordens de execução; olhemos antes para a tarefa concluída e resolvida, desta forma pintada e emoldurada.
A verdade é que em “The Protagonists”, um pseudo-documentário em constante conflito com a sua natureza de farsa e com a desconstrução de um género (e a de um subgénero de sucesso ainda por vir, o “true crime”), já se revelava um realizador pertinentemente autoral. “Coisa” que talvez ainda não se tenha cumprido, mas cuja semente permanece à espera da devida germinação. Depois dos sucessivos sucessos na alcatroagem cinematográfica: de “Suspiria” (filme que por si só merecia prisão perpétua) ao indigesto “Bones and All”, passando pelo “fenómeno” “Challengers”, que só este vosso escriba repugnou com tal intensidade, chegamos, por fim, à caça, com “After the Hunt”. Filme que parece rimar, não apenas no título, com “The Hunt” de Thomas Vinterberg, mas também no resquício temático.
Enquanto na obra do dinamarquês — corajosa (ou perigosa, dependendo da leitura) — se insinuava que as vítimas também detém a capacidade mentir, e cuja a mentira poderá ser usada com arma de arremesso social, condenando e ostracizando alguém (isto tendo uma pequena comunidade como tubo de ensaio), Guadagnino prega na ambiguidade, alinhando-se com o constante movimento ‘woke’ e o amplificando uma caricatura daquilo que se descreve como “natureza da esquerda política”, apregoado pela oposição, reduzida aqui a um epifenómeno universitário. No caso do filme do italiano, seguimos uma professora de Filosofia (Julia Roberts, impecável na sua frieza), desejosa de integrar os quadros da Universidade de Yale (até há pouco tempo um dos focos mais wokistas dos EUA), é confrontada com a possibilidade de o seu colega, e alegado amante (sugestões que fazem o mistério), ter violado uma aluna.

A partir daqui, Guadagnino, com um guião de Nora Garrett, manobra uma crítica revestida pelo negrume de uma caricatura sem (pingo algum) humor ao tribalismo e ao vitimismo dúbio, explorando a mediocridade que o próprio movimento ajudou a valorizar, ao mesmo tempo, tenta contrariar-se, servindo-se como advogado do diabo. Digamos que “Tár”, de Todd Field [Act I, II e III], conseguiu tudo isso de um jeito conciso, seja na estética, na abordagem e na composição da sua protagonista-vítima-agressora, e no tempo certo. Por sua vez, “After the Hunt” chega-nos com um atraso descomunal, e nem o epílogo (demonstrando a subtilmente a razão dessa demora, o triunfo das forças contrarrevolucionárias, do qual não se precisa apontar) , desinteressante e incoerente com o resto da intriga, consegue disfarçar essa obsolescência.
Contudo, a força deste “autor” ainda reside nos actores e na direcção para com estes: Roberts surge na linha prioritária da award season; Andrew Garfield convence no seu carisma; e Michael Stuhlbarg mostra que como está a divertir-se nesta rodagem, mas falta-lhe um momento digno “Tár”: aquele embate memorável em que a personagem de Cate Blanchett confronta o aluno de sensibilidades higienizadas (“Don't be so eager to be offended. The narcissism of small differences leads to ‘the’ most boring conformity”). Guadagnino prefere olhar passivamente, e não activamente, para os seus conflitos; observa as personagens e como reagem por detrás da carapaça socialmente aceite.
É um filme irregular, repleto de gatafunhos e opiniões de tasca disfarçadas sob um emblema académico, filosofia barata e esquemas de farsa. Só que há curiosidades neste espectáculo, dois a salientar (vá, três momentos, já adianto nesse assunto). O primeiro: Julia Roberts revisita os seus “pequenos segredos” num refúgio improvisado em casa; na parede, um cartaz de “La flor de mi secreto”, de Pedro Almodóvar. Ah, como seria este filme se o espanhol tivesse a batuta? Fiquemos a imaginar. Mas não é a única alternativa. Mais tarde, no consultório da personagem de Chloë Sevigny, enquanto Roberts executa uma das suas artimanhas, vemos pregado a uma das paredes um Dirty Harry de Clint Eastwood. Não se trata de “bater em susceptibilidades”: Eastwood sempre foi dotado em balançar-se na ambiguidade das suas personagens e ainda mais quando está atrás da câmara. Recordam-se de “Gran Torino”? O velhote resmungão e racista à procura da redenção? Pois bem, é aí que encontramos o terceiro ponto.

Um falso conflito, nunca explosivo o suficiente para o ser, expõe a catarse do suposto final (ou o que seria, se não houvesse aquela treta de epílogo). A alegoria homeriana sobre o “outro” e os poetas invisuais que trovam os feitos de Ulisses resultam na imagem criada e em como esta confronta o sujeito com a percepção dos outros e, daí, com a consciência da sua própria natureza. Para a personagem de Julia Roberts, é essencial que alguém lhe diga quem é realmente; da mesma forma, que o filme precisa de ser falado para que o entendamos na sua realidade.
Eu cá prefiro pensar no que poderia ter sido: um Almodóvar, um Eastwood… havia por onde escolher, escapar desta sua realidade fílmica e refugiar-me naqueles posters (não acidentados, não iremos ser ingénuos a esse ponto). Ao invés disso, ficamos com um “Tár” desmerecido e fora de prazo. Ai, Luca… admito: já fizeste pior, e, convenhamos, com mais apelo popular.