Beatriz no país das "maravilhas"
Continuando com o seu formalismo do desesperante real, Marco Martins mantém-se leal aos trajetos agonizantes que as suas personagens, mártires feitos e refeitos, caminham em busca da sua essência. Mas o que é que procuram? A resposta aos seus males, seja ela, física, existencial, obsessiva ou corrosiva. O seu Cinema é composto por essas cores, estas deambulações e nisto, trazendo, não somente emoções, mas uma estética política, “à esquerda” como acusou veemente o jornal Observador nos ares de estreia de “São Jorge” (2016). Em “Great Yarmouth: Provisional Figures”, projeto maturado em dois “mundos” distintos, um pré e pós pandemia, ganha vida acrescida sob os ventos das novas marchas politizadas, reacionária e extremistas e quiçá nacionalistas, pintando-nos como “bons emigrantes”, acarinhados pelos povos do Mundo e bem-sucedidos na sua integração.
Martins provoca, - porque em Great Yarmouth, cidade costeira inglesa (e uma das mais precárias do Reino Unido) - num êxodo à portuguesa é possível escutar os nativos referindo-os como mão-de-obra silenciosa, assumindo trabalhos que os próprios ingleses desdenham. Na liderança dessa peregrinação ao encontro de “vidas melhores”, está a Mãe, apelidada desta maneira (como gosta, devemos salientar), Tânia, portuguesa integrada, a face de uma rede de “exportação” destes trabalhadores carenciados e reduzidos a corpos exaustos, sacrificados, as outras martirizadas equações deste cosmo. Beatriz Batarda é essa “criminal” emigrante, com sonhos próprios, mesmo que mais mesquinhos e pirosos que sejam (velhos e bingo, combinação da sua vulgaridade). Não interessa, ela própria embarca na “foleirice” como íntimo refúgio, o “Promise Me” de Beverly Craven, por exemplo, servido como canto de sereia e de igualmente forma como canto de banshee, cantarolando para ‘seduzir’ ou invocando o antidote para a sua angústia.
Digamos que na atriz, o ponto alto de “Great Yarmouth”, Martins deposita-lhe fé e determinação para nos guiar pelos dantescos infernos desta exploração, das madrugadas frias e silenciosas, meio adormecidas e calejadas pelo cansaço acumulado, dos “quartos” de hotel (as aspas não são acidentais) ou das idas e vindas aos matadouros de perus, em que o “trabalho liberta” encontra-se invisivelmente gravado nos seus muros. E nela testemunhamos o cansaço, envolto numa rotina, gradualmente desintegrado por vias de um caos, as rugas vincadas do seu rosto renomeia-se como “cicatrizes do tempo”, o qual não volta atrás de maneira alguma e é comumente sabido, mas são essas supra-expressões que a camufla com as noites intermináveis e os becos sem saídas. O sonho não passa disso … num sonho. Acordar é o derradeiro ato.
Enquanto isso, Batarda, é toda ela um filme à parte, a alma, a raiz, a força e a farsa, Martins apenas a filma, a integra e suplica para que nela nasça um filme emancipado. O realismo britânico mimetizado numa narrativa suja e sob curvas e contracurvas, a duração da miserabilidade sente-se, seja pelas sisifistas matanças às aves comestíveis, decepadas e decapitadas, "carne para canhão”, como os portugueses e tudo o resto. Só Beatriz’ salva-se, adquirindo as suas asas e transcendentemente sobrevoando tudo o resto.
“Great Yarmouth: Provisional Figures” instala-se como um ensaio sem norte, talvez as várias vidas e os seus vários procedimentos criativos o esvaziaram, porém, encontra conforto na sua protagonista, maior que o filme, maior que a vida. Beatriz Batarda show, é o que é!
"Dá-me as minhas savings"