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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Badlands: horizontes longínquos e desejos próximos

Hugo Gomes, 01.04.14

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Na primeira longa-metragem de Terrence Malick, Badlands: Noivos Sangrentos (anos-luz das suas aventuras em territórios metafísicos e formalidades quase esotérica), seguimos num filme correspondente às estruturas convencionais da sua contemporaneidade, que por entre as suas elipses antevia o futuro autor que é hoje tido numa indústria cada vez mais despido de autoralidade.

Três anos depois da curta de graduação no American Film Institute - Lanton Mills - Malick remete-nos a um longo road movie entrelaçado com as influências coming-of-age, ao mesmo tempo que distorce as lenda já firmada na sociedade americana. O amor fervoroso, animalesco e por vezes grotesco entre Kit (Martin Sheen) e Holly (Sissy Spacek) tem de todo inspiração no caso Honeymoon Killers, um casal de assassinos que nos anos ‘50 "assombravam" as estradas norte-americanas com as suas fantasias e modus operandi de matança. Um enredo que conta e reconta, assim por dizer, a história de dois assassinos em plena "lua-de-mel", a base de um vasto imaginário do cinema dos EUA que nos conceberam obras importantes como Bonnie & Clyde, de Arthur Penn, ou o perturbado e delirante Natural Born Killers, de Oliver Stone (com argumento de Quentin Tarantino), que tinha como alvo principal o mediatismo vampírico e anti-ético da comunicação social.

Então o que de singular e distinto tem este Badlands (1973)? A resposta centra-se no seu conjunto fílmico e na reflexão contraída pelo cineasta tendo em vista o seu panorama. Uma sociedade a florir e a ser "arrancada" do seu "armário", a glorificação da violência e o papel dos órgãos comunicacionais nessa mesma divindade, como é possível verificar numa das sequências, o qual Kit é detido e exposto a um bando de soldados, todos eles curiosos em constatar as suas peculiaridades.

A busca destas mesmas singularidades que supostamente iriam elaborar a evidente tese da divergência entre o "individuo comum" para com o "maníaco homicida", é de uma indiferença desarmante, entrando em oposição, com The Texas Chainsaw Massacre, de Tobe Hooper (a estrear um ano depois), que de certa forma representava o assassino em série (nesse caso a persona Leatherface) dotado de comportamentos "animalescos" como uma bizarria humana. Kit de Martin Sheen é despido dessas características monstruosas, correspondendo fisicamente aos parâmetros aceitáveis da sua sociedade (nomeadamente a referida semelhança com James Dean) e isente de perturbações acentuadas desse género. Terrence Malick já previa uma ligação ténue entre a figura do serial killer e do mundano, pensamento hoje tido no "boom" cinematográfico e até mesmo televisivo de tal arquetipo.

Mas é nesse mesmo retrato que entra as influências "coming of age", o desenvolvimento do par de personagens, que por sua vez são "congeladas" pelo impasse que se dá pelo nome de enredo. Contudo, quer Kit e obviamente Holly, são dois adolescentes desencontrados (mesmo que a personagem de Sheen tenha 25 anos de idade) com o meio que vivem, ambos são os rebeldes sem causa (sim, a menção ao popular filme de Nicholas Ray, protagonizado por James Dean, não é por acaso) ligados por sentimentos contidos dilacerados pela frieza dos seus gestos e a inconsequência dos seus atos. História de amor conturbada que se guia pela paisagem que se transforma a meio da jornada, desde o vilarejo sem futuro do Sul de Dakota até às terras indomáveis e desabitadas de Montana, as "Badlands" [= terras más] do titulo. Neste último, a catarse para Malick "refugiar-se" na paisagem, é descrita como troço das decisões, o paraíso sem retorno ou simplesmente o inferno disfarçado de Éden.

Dotado de uma pertinente violência social e psicológica, Badlands é um dos elos de transição para o cinema contemporâneo, cuja distinção surgiu apenas com o passar dos anos. O sucesso, neste caso a falta dele, não foram favoráveis para o filme e para Malick na sua data de estreia. Houve um relançamento em 1979, seis anos depois da primeira estreia, como suporte da sua segunda longa-metragem, Days of Heaven, mas a receção foi a mesma. Devido a esta frieza geral, tivemos que esperar pacientemente dezanove anos para vermos um novo trabalho, o muito apreciado Thin Red Line. Todavia, e com a “carrada” de anos em cima, Badlands continua a fascinar corações, a extraí-los das suas zonas de conforto e imperativamente vivê-las sobre os calores da paixão e do sangue unificados.

As danças ao luar ao som de “A Blossom Fells”, de Nat “King” Cole; o “gigante crucificado”, o tributo de Martin Sheen a James Dean e as suas respetivas rebeldias sem causa; a frieza da violência para com os olhos de Kit; o desconhecido que reside no coração de Holly e os enredos paralelos que geram especulações (protagonizado pelo próprio Terrence Malick), são algumas das características desta obra deveras memorável, tanto como a mítica frase que ecoa nesta consanguinidade com o Sonho Americano: “I’ll kiss your ass if he don’t look like James Dean". Indescritível!