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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Autorização para se voltar a olhar para o céu

Hugo Gomes, 01.04.22

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Apesar de se inspirar em muito cinema georgiano dos anos 70 e 80, como o próprio refere nas suas entrevistas (nomeando e destacando “Shvidkatsa” obra incompleta e póstuma de Soho Chkhaidze como principal “tatuagem”), Aleksandre Koberidze marca com esta sua segunda longa-metragem um regresso ao hoje tido como condenável dominância do olhar. Basta memorizar o título - “What Do We See When We Look at the Sky?” - para automaticamente colocar “asas à imaginação” e à suposição - o que realmente vemos quando olhamos para o céu? 

Estranhamente, o filme e esse conceito coberto no seu título remeteram-me a “Ten Skies” de James Benning, experimental realizador norte-americano, especialista em coser som e espaços estáticos, embarcou em 2004 uma proposta de filmar dez céus em plano fixo ao longo de uma hora e poucos minutos, o resultado é um cinema que limita o nosso olhar e simultaneamente o liberta das amarras dos imperativos códigos do entretenimento (narrativas, brindes visuais, etc) e sobretudo colocando o espectador inquietante perante a imprevisibilidade da previsibilidade (contradição que vai ao encontro do frenetismo com que abraçamos a nossa disponibilidade e desta forma o nosso consumo visual). Objetivo? Levar os seus olhos a um descanso da consumação rápida e economicamente pensada (ou não) do nosso tempo e da nossa concentração. 

Já “What Do We See When We Look at the Sky?” coloca-nos a par de uma narrativa ao contrário da instalação ao ar livre de Benning, porém, não faz dela o “grande bolo” para a audiência. Nos contornos do rio Rioni, na cidade Kutaisi, na Geórgia, uma colheita de planos detalhes, pontos-de-vista [POV], grandes planos e planos conjunto, idealizados para cinema, no acolhimento da grande sala e do grande ecrã para desafiar as nossas ópticas a sintonizar com tais imagens, por vezes salteadas, por outras soltas, ou meramente espelhando um quotidiano apropriado e adaptado. Koberidze faz o seu trabalho, que é o de guiar o mesmo espectador, quer na direção (essas linhas-guias visuais), quer na sua voz, a narração da sua autoria que chega mesmo a convidar-nos a “fechar os olhos”, literalmente, para que a magia, um encantamento descrente faça os seus “milagres”. Aliás, mágico, essa palavra que encontra aqui materialização, uma fábula modernista residida no núcleo deste contemplativo documento. Intrusivo para com esse realismo sem nunca diluir-se naturalmente com o mesmo, criando e preservando as suas próprias regras e leis, um mundo aparte na camada de outro mundo que tão bem reconhecemos e o resultado é este tom de farsa que suplica a nossa compreensão e ao mesmo tempo a nossa evasão.

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Os feitiços estão fora de moda”, desta forma acalma a amiga de Lisa (Oliko Barbakadze / Ani Karseladze), jovem rapariga que certo dia um acidental encontrão (literalmente, ou mais literalmente ainda, uma sucessão de) a leva um rapaz que viria a conquistar o seu coração. Contudo, é por via de quatro elementos do qual Lisa é avisada que tal reencontro será abalado por uma maldição. Que maldição é essa? No dia seguinte, Lisa iria acordar como uma outra pessoa, possuindo uma nova face e corpo e por si uma perda dos seus anteriores talentos. De existência metamorfoseada, possivelmente perdida, a jovem recorda da menorização apaziguadora lançada pela sua amiga na noite anterior. O mesmo acontece com o rapaz que desencadeia tal anomalia - Giorgio (Giorgi Ambroladze / Giorgi Bochorishvili) - condenado também ao fado de reiniciar a sua presença neste mundo, ou, colocando de maneira mais modesta, nesta cidade. Um feitiço que contrariando os maus céticos torna-se numa tendência, por sua vez, conduzir-nos aos enésimos filmes do nosso Miguel Gomes, aqueles relatos do absurdo sob vestes fabulistas e tecidas em inventários próprios e excêntricos, como da metalinguagem diversas vezes materializada na ato de fazer cinema, ou seja, a rodagem como ponte (sublinho a importância da palavra “ponte” aqui) para os encantamentos, desencantamentos e seus "antídotos". 

What Do We See When We Look at the Sky?” é, não querendo repetir, um filme cujo título “assenta que nem uma luva”, porque no exercício de olhar para o céu, cada um de nós vislumbra algo diferente e sempre ele diferente em cada porção. Koberidze moldou uma viagem que faz do nosso olhar refém de algo há muito esquecido: disponibilizar o nosso tempo, esse bem tão precioso das nossas vidas.