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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Ato III: Tár, a caçadora de monstros

Hugo Gomes, 15.02.23

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Tár (Todd Field, 2022)

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Whiplash (Damien Chazelle, 2014)

Tár” encosta-se à segunda longa-metragem de Damien Chazelle - "Whiplash" (2014) - previsivelmente pelo seu tema central, a música e como alberga posições de Poder perante os demais. No caso do filme que garantiu o Óscar a um sinistro J.K. Simmons (“Not quite my tempo”), a relação cercava entre um professor e um aluno, e por essa base uma protética concepção militarista, que envergonharia qualquer requisito de “conto underdog” ou de motivação profissional. Já a obra de Todd Field, o Poder, igualmente presente no estatuto, leva a Tár a balancear na sua própria moralidade, os tons cinzentos afligidos na sua auto-consciência artística, a levam a cometer uma postura antiética em prol das suas pessoais satisfações. A linha perpendicular de ambas obras é mesmo essa figura do “maestro” e a sua dominância perante as orquestras (e as vidas destas), a única perante a nota de ruptura, “Whiplash” deseja transparecer uma experiência e nela “cavalga” num “simulacro”, enquanto em “Tár” mantemo-nos num retrato abrangente sobre um estado de modernidade e de pós-modernidade. 

Porém, muito falamos de Tár [a personagem de Cate Blanchett], a sua construção e desconstrução, como se o filme resumisse a um “character study” (ao menos se afasta do território unilateral do “filme de ator”), mas Todd Field, através do seu magnetismo - convém realçar o tom de realeza com que a protagonista se apresenta, e conectando-a à sua resiliência em manter um controlo absoluto do seu redor - para se especificar nos códigos adiante do thriller, mais do que a falsa-biografia que poderia facilmente cometer. Perante isso, “Tár” é um primo do estilo polanskiano, do embate da figura em queda e da atmosfera que adensa mais e mais, até que tudo se transforma num iminente alerta, um perigo subliminar que parte do interior da personagem e não do seu exterior. 

Polanski, figura controversa e ainda mais aqui invocada como “comparação” a um objeto reflector da “cancel-culture”, operou por essa via da miragem, no qual personagens são ameaçadas por manifestações dos seus próprios medos, seja Catherine DeNeuve [“Repulsa”, 1965] cuja repudia pelo sexo e a ideia deste transforma todo o seu apartamento numa câmara de horrores, seja Mia Farrow [“The Rosemar’s Baby”, 1968] que a suspeita satânica no seu recém-nascido a guia para uma espiral de loucura conspiracional, ou as sombras com que Johnny Depp [“The Ninth Gate”, 1999] lida no seu “trabalhinho” de bibliotecário. São alguns dos exemplos, como poderia aventurar-me em mais (“Knife in the Water”, “Chinatown”, “Death and the Maiden”, “The Ghost Writer”), é um efeito quase conspiracional com que as personagens lidam com os seus medos, ora entende-se fobias ou inesperados e imediatos receios. Field, por sua vez, contenda Lydia Tár à sua decadência, primeiro incitando uma suspeita (por exemplo, no fim da cena da masterclass, somos presentados com um plano POV, resultando na sugestão de um desconhecido voyeur), crescendo para elementos paranoicos (ruídos e notas soltas ouvidas pela própria personagem no silêncio da noite) para se ajustar nos medos convertidos numa só reação (o passado que amontoa-se e descortina o seu pavor na "insignificância").  

A esquadria de “Tár” funciona nessa vertente, o de criar um clima de “suspense” em todos os factores de alerta da personagem, daí surgir a opção do tempo de arranque (uma introdução em forma de mockumentário) diluído no tempo em que dedicamos a conhecer esta figura, para depois, ou aliarmos na sua ambiguidade (leia-se perversidade), ou distanciarmos, solicitando o castigo divino a tal carácter. A banda-sonora de Hildur Guðnadóttir, um misto de minimalismo com essências primitivas, melodias inesperadas que pavimentam um trajeto dessa ansiedade invisível, é uma obra musicalmente em construção, em busca de um projeto perfeito enquanto epifania. 

Felizmente, ou infelizmente, conforme a nossa justiça, a consagração nunca cumpre o seu propósito, estabelecendo esse medo concretizado e materializado, impondo um senso de ridículo numa audiência mascarada, enquanto que orquestras de gosto requintado dão lugar a servientes da cultura popular. Lê-se “Monster Hunter”, título de um franchise de videojogo que comunga jovens e adultos de várias estirpes, é a designação do círculo infernal onde Tár residirá como punição, mas pode também servir de separador ao que acabamos de presenciar até esta descida. “Caçadora de Monstros”, vencida pelas "monstruosidades" que jurou rastrear, sem aperceber da sua verdadeira faceta.