Ato II: Quem tem medo de Lydia Tár?
"Don't be so eager to be offended. The narcissism of small differences leads to the most boring kind of conformity."
Todd Field, curioso e discreto cineasta americano [prova disso é o hiato entre a sua segunda longa-metragem, “Little Children”, e esta recente e terceira, “Tár”, de 16 anos] trespassa para além do conceito de “vida privada”, tentando com isso elaborar teses comportamentais acerca das suas personagens e do respectivo encaixe social. Nesse aspecto, com o thriller de Poder protagonizado por Cate Blanchett (sempre formidável quando o palco é dela e apenas dela) resulta num olhar atento à cadeia estabelecida no mundo das Artes e da nossa respectiva relação. A maestrina, ou “conductor”, como a própria aclama no calor da sua soberba, Lydia Tár é uma espécie de erva-rato (erva, essa, que consolida o veneno e o antídoto na mesma planta), provando uma artista genial, única no seu meio, acrescida pelo mérito, porém, corrompida pelos vícios do Poder suscitados por essa mesma escadaria.
É um teste de resistência, quer aos que acreditam na separação entre arte e o seu artista, ou na diluição entre ambas as partes e por essa via, o julgamento conjunto da personalidade e do seu ofício. Sequência central, como tem sido debatido e referido por aí, é aquela em que Tár orienta uma masterclass em Juilliard School, confrontando um aluno de ideias, digamos progressistas ou, “wokistas”, choque encontrado na sua percepção ao trabalho de Bach, negando a sua canonização devido a “problemas matrimoniais” (palavras de Tár, não nossas). Há toda uma reação em favor a Tár, até porque a sua articulação e argumento sombreia as frases feitas e de reação primária do jovem, que a maestrina e formadora por um dia, resume alcunhando-o de “robô”. A disputa intelectualizada, e convém sublinhar desigual, termina num empate técnico, de um lado, o ‘rapaz’ humilhado e desconsiderado, por outro, Lydia Tár gratuitamente ofendida por um “progressista” que sob o fervor emocional regride, convertendo-se naquilo que teoricamente mais odeia.
Daqui, passamos para o percurso da protagonista, antevendo a hipótese de comandar a cultuada Orquestra Filarmónica de Berlim. Durante esses preparos, os fantasmas circundam ao redor da sua figura, seja de um jeito literal, levando-a a “ouvir estranhos sons” durante o breu da noite, ou figurativamente, através de casos de assédio ressurgidos do seu passado com vias de abalroar o presente (e futuro). Porém, nada nos é servido na infusão da ambiguidade, não há provas contrárias dos seus antecedentes, e como tal, Field termina todas as dúvidas quando vislumbramos o instinto manipulatório revelado em Tár, até mesmo nas ‘pequenas coisas’ como no episódio em que lida com a bullie da sua enteada. Portanto, a maestrina é uma culpada a merecer julgamento? Diria antes que o julgamento está presente a quem o procura em “Tár”, a questão aqui é mais abrangente que uma cerimónia de apedrejamento, é uma clarificação ao chamado “cancel-culture”, às suas imbricações, como a sua natureza.
O final, digno de nota, demonstra que existe outras vias ao tal cancelamento, remoendo no fenómeno como uma implicação capitalista, e como a sociedade mais que tudo, demonstra-se sequestrada por esse impiedoso sistema, é natural que a ficcionada Lydia Tár não viva para testemunhar a sua derradeira consagração. Num futuro, alguém, numa masterclass classicista discutirá a ou não canonização da mesma, de igual forma que a personagem e o jovem “robotizado” embatiam no legado de Bach.
Só que tal lugar não está reservado à nossa existência, só à nossa espectralidade, portanto, banda-sonoras de videojogos por entre um “desrespeitado” público em cosplays é o “calabouço” possível.