Ato I: reagindo a Lydia Tár ...
A reação a “Tár” é um fenómeno normal e expectável (até mesmo lisonjeador à vitalidade da obra), há uma ideia - a derradeira - em conquistar um moderado para uma das extremidades, como se a ambiguidade fosse apenas um utensílio de proveito para uma das longitudes do que propriamente uma virtude observacional ao panorama aí gerido.
“Tar”, é isso mesmo, um “filme-moderado” … e atenção, não é por essa designação que cairemos na redutora designação de "passivo-inofensivo". O filme de Todd Field (com uma década em gestação), comporta-se como um agressivo ponta-de-lança nas conturbações dos chamados tempos modernos, a nossa contemporaneidade algo digna de um palanque cronista e jogado à mercê das anotações, tendo como cenário (ou temática), a Arte como um todo absolutista ou um total de nada maleável às vontades da sua cultura corrente.
Sendo assim, a minha reacção a “Tár” prende-se em dois pontos; o primeiro, interior, a surpresa em constatar que numa indústria gradualmente distante do conteúdo adulto manifeste maturidade na concepção de uma obra desta Natureza (quer seja pelos diálogos ricos e pouco explícitos, a cadência em “lume brando”, ou o desrespeito pelo espectador enquanto ser onipresente na narrativa), e segundo, exterior, pelo facto [conforme seja o lado da barricada], de se solicitar o derrame do sangue de Lydia Tár, ficcional e genial maestrina interpretada por Cate Blanchett (composta por camadas sob camadas), como peça-modelo do Poder instaurado no campo das Artes. Uma corajosa personagem para o contexto nos dias de hoje, mulher e ainda por cima lésbica, cuja sua perversão fala na mesma língua da sua força-criadora, consolidando uma figura centrada nos seus caprichos vilipendiosos e na tortura artística que a remete num lugar de solidão interiorizada.
Portanto, é fácil deparar com vozes masculinas repudiando o “mau carácter” de Lydia, do qual não se encontra muito longe das composições de anti-heróis do sexo masculino que habitam e abundam a nossa cultura popular, porém, é através dessas características hoje feitas reféns de um “wokismo” capitalista e endurecidas com impunidade crítica (a abusadora não é o habitual “homem branco heteronormativo de meia idade”, portanto, o julgamento de um dos lados da “trincheira” é abrangido à força artística do filme como compensação) que Todd Field amplia o espectro da sua iminente crítica - não se trata de género, nem identidades, trata-se de Poder, e como tal ninguém está imune da sua corrupção.
Contudo, este jogo de duas faces instala esse efeito de dupla interpretação, onde cada um vê consoante a sua sensibilidade, como nos fizeram crer, felizmente “Tár” é uma espécie de palimpsesto, duas melodias na mesma nota sem com isto ser necessariamente uma questão de leitura ou de perspetiva, ou diríamos melhor, numa inquisição de perguntas e não de resposta. O Cinema não tem obrigação de responder a nada, por isso quem procura decifrar a autenticidade do seu simbolismo perde instantaneamente o seu efeito aqui.