Até aposto que foi o mordomo ... fantasma!
Existe muita boa gente que admira a saga Poirot-Branagh, da minha parte, tendo em conta os dois primeiros livros adaptados (“Murder on the Orient Express” e “Death on the Nile”) fiquei com a impressão de assistir a tentativas pops e altamente pretensiosas dos jogos de “cluedos” de Agatha Christie. Os fatores são muitos, aliás, mas é na chegada de “A Haunting in Venice” que entendo um certo arrojo visual-planificado.
Narrativamente é a fórmula christiana do costume, o belga Hercule Poirot (novamente um “afrancesado” maneirista Kenneth Branagh) é convidado ao “local do crime” antes de ele tornar-se num e previamente assumir-se como um teatro de vedetas (e vendettas), o cenário é um palazzo (várias vezes mencionado) numa das ruas fluviais de Veneza, de historial macabro e assombrado que em breve dará lugar a uma sessão espírita. A Lei de Murphy à vista de todos. As personagens são-nos apresentadas numa entropia espacial; existe claustrofobia nos planos apertados, mas acima disso são os planos picados que prevalecem, um olhar constante de cima para baixo como se o espectador se posicionasse num terreno astral oposto aos deste leque de vítimas e assassinos. Há uma história de fantasmas a povoar por lá, Poirot, cético, desacredita de todos aqueles troços sobrenaturais, mas a câmara continua marcando o seu zénite, testemunha oculta que até mesmo nos supostos grandes planos se mantêm posição de “julgamento” do além, ou seja, sempre em modo picado.
A gímnica força essa farsa até à chegada da médium, aqui interpretada por uma Michelle Yeoh pós-Óscar, que embate com brevidade no detetive em uma picardia de crenças. Porém, existe um momento logo após em que ambos sobem uma escadaria em direção à sala de convidados; a câmara aproxima-se de Poirot, novamente em grande plano picado, salientando o brilho da sua testa suada e o olhar angustiado de quem prevê uma "desgraça", automaticamente, "corta" para Yeoh, em grande plano [close-up], captando o seu exotismo naquele cenário sombriamente veneziano, nada de picados aqui, tudo "normalizado", a esquadria corrigida. Será o facto da suposta “lady” falar com os mortos e desta forma estar ao seu nível, ao seu terreno? Não sabemos de momentos as ideias de Branagh no simbolismo desta decoupagem e duvido que a imprensa americana faça questões a este respeito sem ser a do entretenimento básico.
No entanto, o filme prossegue nesta linha, apertado cenicamente, arroçado planificamente, as personagens são principalmente captadas através das suas expressões e não pelos gestos, e a perspectiva, principalmente perseguindo Poirot, na sua “caça ao espírito” de cima para baixo é fiel a esse espectador do oculto. Possivelmente mais interessante visualmente do que os seus antecessores, é também o capítulo mais atento à sua investigação, levando a audiência a concentrar-se nela e a “interagir” (sob distância higiênica obviamente) ao mesmo nível (ou não, tendo em conta o talento nato do protagonista) que o seu investigador, ao invés de cortes matreiros e condensações para dar palco à ação física na conquista de um público mais irrequieto.
É a proeza num dos clamados “livros menores” de Agatha Christie (Tina Fey, aqui vestida enquanto heterónimo da autora na sua própria ação, lança igual “posta de pescada”), o de transformá–lo num whodunit hollywoodesco arguto, atmosférico e de uma realização arriscada (Kenneth Branagh tem muito de Poirot no que requer a egos inflamáveis). O resto, bem, é genérico … não se pode ter tudo!