As mil e uma sombras do boxeur
Operando nos quatros cantos dos “Estados Gerais” do seu subgénero, o terceiro filme de “Creed” não altera fórmulas nem mescla no romantismo cine-dramático que o pugilismo sempre ostentou. Mas ao contrário das habituais latitudes que se deseja empregar nestes rounds, o final da trilogia não se assume num enésimo conto “underdog” da escadaria Rocky, aliás, a ausência da familiar personagem de Sylvester Stallone estabelece um estatuto de devida emancipação à figura de Adonis Creed, o Michael B. Jordan a provar o seu carisma e o embate emocional numa (mais outra) prova de fogo. Digamos que “Creed 3” não inventa gramática, o espectáculo de luvas “calçadas” mantêm-se como evento de um cinema que procura redenção em velhas sagas, ou herdeiros delas (como é o caso de “Creed”).
Porém, o que impressiona neste novo capítulo, auferindo como o emocional do tríptico, é a forma como B. Jordan se conduz para trás das câmaras. Há um misto de histeria pop aqui, como também a poética emanada nas sua imagética, os combates, esse upgrade visual, instala-se como território maleável para ênfases dramáticas, ainda mais apontadas nas suas representações. Ora vejamos, nesta história em que Creed atingiu o apogeu da sua carreira (nada mais há para conquistar), é abalado com a vinda de um “fantasma de um Natal passado”, uma figura que declara guerra pelo seu "roubado" direito de glória. Aqui, Jonathan Majors, mais que presente em 2023 (de forma a encontrar um rumo na sua carreira), é o “underdog” por direito (mesmo traído pelo antagonismo desculpável que a história tende o ressaltar), mas é acima de tudo um injustiçado, incompreendido e com isso ressentido.
O reencontro entre este “vilão” (aspas, por favor) com o nosso Creed é ditado por barreiras, visíveis e invisíveis, sendo a última as óbvias “muralhas de rancor e cobiça”, assuntos pendentes adiados até à exaustão de ambos, e na visibilidade, presente, ora numa mesa de restaurante em que ambos adiantam conversa “congelada” de anos, ora as divisórias de um balneário ou até mesmo nos devidos momentos de honestidade e de perdão em que tais divisas encontram-se visualmente acentuadas. Dois homens, não apenas separados pelo destino como também desencontrados, contraídos seja socialmente, seja moralmente, e o ambiente em seu redor tende a fortalecer essa facção. Por vários momentos, B. Jordan revela-se coerente na ambição visual, é por esse motivo que “Creed 3” ganha aos demais capítulos desta jornada (mesmo que Ryan Coogler e os seus habituais “tracking shots” sejam marcas autorais presentes no filme inaugural), ao construir uma certa poética na sua planificação, edição e até ação.
Falando em “separados pelo meio e pelo acaso”, é no ringue onde se manifesta o esperado contacto entre os dois corpos. Creed e o seu némesis, mano-a-mano, soco-a-soco, músculo com músculo, sangue, suor, um espectáculo para massas, mas nas suas mentes, o ringue é outra ‘coisa’, uma plataforma suspensa num infinito nevoeiro, a realidade, tempo e espaço são distorcidos a um só propósito. Naquele round (recebido com perplexidade pelos interlocutores perante a sua intensidade), naquele e somente round, nenhuma barreira havia sido assomada para os separar. Estão a nu, carne com carne, o ajuste de contas num onírico campo minado de raiva.
Na minha memória, surge-me “Kagemusha” de Akira Kurosawa, o momento em que o anterior doppelgänger enfrenta, ineficazmente, o seu esmagador vulto, a sombra do guerreiro que se propõe a ser, propriamente dita. Em “Creed 3”, são homens e as suas sombras enfrentando-se num combate para além do terreno. Não é sonho algum, é estado de alma.