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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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As mártires de Kinuyo Tanaka: ser ou não ser mulher, eis a questão!

Hugo Gomes, 18.05.23

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Depois de “The Eternal Breasts”, declaradamente a sua “obra-prima”, Kinuyo Tanaka finalizou mais três longas-metragens, duas a cores e uma mantendo as raízes cromáticas, e todas elas, de uma maneira ou doutra, fazendo vénia a um dos seus mestres, Kenji Mizoguchi. Mesmo da sua sabida e silenciosa oposição a esta faceta de Tanaka, o cineasta assinante de “Intendente Sansho" (“Sanshô dayû”) ou Os Contos da Lua Vaga” (“Ugetsu monogatari”) permanece enquanto fantasma inalcançável para a realizadora, que em tempos fora das suas grandes atrizes. Foram experiências, riscos, desejos e ambições, e por sua vez, a confirmação de uma artesã sólida e convincente na indústria nipónica. 

Princesa Errante”, “Mulheres da Noite” e o derradeiro “Senhora Ogin”, os restantes títulos, todos pós-Mizoguchi (falecido em 1958), chegam aos nossos cinemas com a marca The Stone and the Plot.

 

Wandering Princess (1960)

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Baseado nas memórias de Hiro Saga, “Wandering Princesa” (“A Princesa Errante”) centra-se em Ryuko, mulher aristocrata prometida a Futetsu, o irmão mais novo do imperador do estado-fantoche da Manchúria, isto nos inícios da Segunda Guerra Mundial o qual iria culminar na batalha territorial, e paralelamente a derrota nipónica no conflito global.

Trata-se do primeiro filme a cores de Tanaka, e num esplendoroso Cinemascope (há que dizer), um trabalho ambicioso concentrado nas nuances geopolíticas sob uma perspetiva inteiramente feminina, um cenário não de todo confortável para a realizadora que parece retratá-a com higiênicas luvas, tentando amenizar a “pegada japonesa” nos despojos campais. Nesse sentido, Yasuzo Masumura em “A Woman 's Life” (1962, presente no segundo ciclo de Mestres Japoneses Desconhecidos) revelou-se mais ácido, pesaroso e igualmente simplista. 

Contudo, a jornada de sobrevivência de Ryuko num território em vai-e-vem de exércitos, saqueadores e resistentes, é embrulhado num selo de artifício inquebrável - os travellings que correm paisagens a dentro, por entre estepes e vales, num êxodo “vestido” em cores reluzentes ou o pôr-de-sol de estúdio refletindo em tons escarlates, entendendo-se como uma miragem de uma família “perfeita” harmonizada mas altamente artificializada. “Princesa Errante” conserva o seu lado aventureiro e bélico, só que é no seu romantismo alicerçado a uma certa inocência (ou diríamos mais ingenuidade) que o torna numa produção personalizada dentro do lote, mas não de todo conseguida como documento histórico. Por sua vez, a protagonista e estrela de vários títulos de Mizoguchi, Machiko Kyō, posiciona-se como uma das “tour de force” do projeto.

 

Girls of the Night (1961)

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Podemos encarar este filme como o desejo de prosseguir os trilhos deixados pelo seu anterior mestre [Mizoguchi] em dois pontos; primeiro pela proximidade do tema (e título) a “Women of the Night” em 1948 (protagonizado pela própria Tanaka) e o “bater à porta” da Lei de Prevenção à Prostituição na chave de ouro “Street of Shame” (1956, dois antes da morte do cineasta), para além de Mizoguchi ter decretado uma carreira visitante a estes territórios com alguma frequência. 

Em “Girls of the Night” (“Mulheres da Noite”), a tal Lei encontra-se em vigor (e que vigor!), como testemunhamos naquela abertura informativa e contextual, o que leva a ser criado centros de reabilitação social para estas ex-prostitutas. Neste ambiente de cárcere prototípico, seguimos Kuniko (Chisako Hara), jovem determinada a obter uma segunda oportunidade de vida, apenas impedida por uma sociedade rancorosa que a relembra constantemente dos seus atos, ou dos fantasmas do “Natal Passado” que a revisitam com promessas faustianas. A nossa protagonista, um rosto numa massa uniforme o qual podemos apelidar de “rejeitadas”, é uma crucificada digna da sua subida ao calvário, onde só a pureza do mar, em modo “ama-san” a poderá resgatar para um novo horizonte.

Continuando o que havia proposto no seu primeiro filme (“Love Letter”, 1953), Tanaka revela-se mais ambígua neste troço, limitando as questões à perspetiva feminina, enquanto, e subtilmente, debate sobre a condição da mulher como dano colateral de uma guerra sangrenta e moralizante, e sublinhando a classe social enquanto motor de ignição à prostituição (ainda existe espaço, talvez em jeito decadente e patologico, de abordar o “safismo”). É um filme de mulheres (novamente colaborando com a argumentista Sumie Tanaka) sobre mulheres marginalizadas que uma sociedade, vulgo, progressista intenciona em não-perdoar. O regresso ao preto-e-branco, faz com que Tanaka não se distraia com paletas e se concentre no cinzentismo das suas personagens e dos seus respectivos cenários. Depois da “Rua da Vergonha”, cedemos a “Vidas de Vergonha”. 

 

“Love Under the Crucifix” (1962) 

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Possivelmente, foi enquanto senhora Oyu e Oharu, ambas sob as ordens de Mizoguchi, que Tanaka se inspirou para concretizar este amor proibido proveniente dos palco dos mortais que é “Senhora Ogin” (ou com o sugestivo título internacional, “Love Under the Crucifix”), o seu trabalho final enquanto realizadora. 

Esta adaptação de um livro de Tôkô Kon, decorre no século XVI, num Japão feudal dividido e “crucificado”, aí seguimos o sufoco da homónima mulher (Ineko Arima), filha de um prestigiado mestre de cerimónias de chá, que se encontra apaixonada por um samurai cristão, este, cegamente devoto da sua fé e da preservação do seu espírito para lá do terreno. Amores proibidos, gestos inconsolados, são meras formalidades perante o verdadeiro obstáculo para ambos, a banição do cristianismo e a vinda de um senhor feudal sedento em apropriar-se de Ogin como a sua enésima amante. “Senhora Ogin”, o regresso às cores de Tanaka e também o seu mais caro filme (albergado pela produtora de cariz independente Ninjin Club, fundada pelas atrizes Keiko Kishi, Yoshiko Kuga e Ineko Arima), é um jidai-geki [filme-de-época] de aparência reprimida e introvertida (características próprias da cultura Momoyama a qual a protagonista íntegra), mas sem travagens no pendor trágico que este romance materialmente transgressivo emana. 

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Um dos mais belos momentos, e possivelmente o núcleo desta história de passagem, é a sequência em uma mulher punida e sentenciada à crucificação, prossegue na sua própria “subida ao Calvário”. Ogin e a sua serviçal constatam um “estranho” brilho nos seus olhos, uma essência de vida libertada, mais proeminente de quando a sua “liberdade” encontrava-se em voga. Com isto declaramos que “Senhora Ogin”, por diversas vezes, incorpora as diretrizes triunfantes da religião cristã de que este mundo, abundante de distrações e pecados, é só um teste, possivelmente a garantia do passaporte para o que realmente interessa. Segundo essas doutrinas, a eternidade do espírito, desde a sua pureza até ao seu sacrifício (a primeira não pode desassociar-se da segunda), é o objetivo máximo da nossa existência. 

Ou seja, o que move e simultaneamente contraí esse amor não são as posições político-sociais, é a salvaguarda da essência espiritual, sofrer em vida para obter a recompensa no além, a transcendência prometida. É nesse aspecto que tal mulher apresenta eufórica vida a poucos momentos de ser crucificada, porque morrer como um mártir é visto Gold.

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