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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

As endiabradas

Hugo Gomes, 04.07.23

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Escuridão apodera-se da tela, acompanhada por gritos vários, pânico sentido em sincronização com um ruído feroz de fundo, um ruído que podemos identificar como labaredas. Incêndio? A nossa imaginação funciona e é com isso que contamos. As primeiras imagens após o breu confirmam as nossas suspeitas, um clarão dividido entre tons amarelados e alaranjados, um fogo parte do fundo tomando conta de todo o plano, um grupo de raparigas - de costas voltadas ao espectador - gritam desalmadamente como temessem pela própria vida, os seus fatos reluzem perante o espectáculo piromaníaco como escamas de um peixe qualquer, salientando no resgate da luz envolta. Elas voltam-se, por fim, os seus rostos são uma mistura de medo e inquisição, no centro, uma face identificável - Adèle Exarchopoulos - a atriz de olhos lacrimejados, a representação dos seus temores. 

Nada sabemos, até porque entra o intertítulo “Les Cinq Diables” (“Os Cincos Diabos”), e as imagens de incógnita violência dão lugar a uma escapada por uma região alpina, um registo possível graças a existência desse “aparelho voador”, o drone, aí nos deparamos com um um cenário de verde exuberante sem percebermos que será ali que iremos integrar, sem sair de lá, na restante duração do filme, o marcado regresso de Léa Mysius (”Ava”, 2017). Portanto, os primeiros minutos incentiva-nos a um mistério, o que terá sucedido ali naquele pacato vilarejo encostado à mata dos Alpes, em lagos de regalar a vista onde uma sisuda Adéle de fato-de-banho justo atravessa numa episódica natação quotidiana, deixando à sua filha menor a supervisão dos minutos, 20 para sermos específicos, o limite do seu corpo perante as gélidas águas? Paraíso dirão muitos, mas um poço de lamentos dirão outros, histórias ocultas e adversidades mal pregadas aconteceram ali, nos confins de “Les Cinq Diables”, deixamos o título de lado e passamos à tabuleta da terriola. 

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Este é um thriller que recorre à envolvência do seu ambiente como muitos hoje tomam partido (um misticismo quase exótico parece infiltrar nessas suas veias), malabarismo entre o intimismo e o sobrenatural, esta última imposta como solução cuja mortalidade não consegue corresponder. Mysius aproxima-se do segredo dos “Les Cinq Diables” como um animal-predador furtivo: antes do ataque definitivo planeia a sua estratégia, acerca a presa, “brinca” com ela de forma perversa numa espécie de deleite à sua superioridade na cadeira alimentar, e como não restasse mais nenhum ato, salta ao encontro da jugular para lhe atribuir o “beijo da morte”. Só que aqui, esse esperado e derradeiro clímax é amortecido pelo reencontro do perdão, e é sob signo que tudo parece funcionar, uma forma de redenção para com o passado, mais do que se apressar em conquistar-se enquanto conto fantástico. 

E no vórtice da trama, a tão referida e “trombuda” Adèle, de risos reservados a esses momentos que aparentemente tanto lhe afectam, a atriz celebrada mundialmente com “La vie d'Adèle” de Kechiche, tem contrariado essa carreira de “femme fatale” dos novos tempos que muitos lhe tentaram induzir, e após algumas experiências agradáveis, seja no sector da comédia [“Mandibles”] ou no drama [“Rien à Foutre”], avança com um dos seus papéis maduros. Sem querer menosprezar Mysius e a sua arquitetura estetizada com que tenta transformar aquela comunidade num cerco à sua possível fantasia, é na atriz que deparamos o motivo de operação de tudo o resto, sem rasgos de ego nem afirmações a miopias, porque tudo equilibra-se ao seu redor. É difícil imaginar este projeto sem ela.