Amor em tempos de melancolia
Aki Kaurismäki reflete, como sempre refletiu, sobre a nossa atualidade, sem com isto reduzir-se a um produto do seu tempo, aliás, este mantêm-se “congelado” na sua estética reconfortante e nos “bonecos” kaurismakianos. “Fallen Leaves” é um prolongamento da sua chamada “trilogia do operário” (“Shadow in Paradise”, “Ariel” e “The Match Factory”), inserindo-se num universo que nos chega por via de um abraço em estes nefastos períodos de pós-verdade e de apatia extrema. Não se pode referir aqui um filme transgressor, ou a marcante manobra de viragem no gesto contínuo do autor finalndês, mas é nessa estabilidade que deparamos uma essência demarcada a uma fuga, de uma alternativa sugerida por via de um optimismo contagiante, sem com isto revelar-se barato e deveras sentimental. Aliás, os tais “bonecos” referidos não nos motiva a isso, e por outro lado nos súplica à nossa empatia.
Comecemos, como sempre começamos, um “when a boys meet a girl”, ele (Jussi Vatanen), operário, esse sim, transgressor das regras impostas; fuma ou não se deve, bebe quando o seu corpo pede, e deixa-se consumir por uma melancolia autodestrutiva [“histeria ártica”, mas já lá vamos]. Enquanto, ela (Alma Pöysti), ‘menina’ de bom coração, cujas intenções, por mais douradas sejam, são incompatíveis para com o seu mundo em questão, e como anterior operadora de supermercado, é despedida através de um ato de beneficência. Quando, ao invés de lançar como ordenado comida com prazos expirados mas de consumo ainda viável, carenciou alguém com dificuldades que por perto pedia auxílio. A sua empatia levou ao seu despedimento, não se pode desafiar as “leis sagradas” do capitalismo feroz. Em casa, procura comoção através da rádio, esta surge “contaminada” com relatos de guerra, seja Ucrânia ou conflito sírio, mortes e desumanidade é o que se ouve. Não são doces as palavras saídas do transmissor, muda-se de estação, eis que surge uma “canção de amor” para reconfortar “corações”.
Coincidentemente, é na música que o destino uniu estes dois indivíduos, num karaoke para sermos precisos, noite de olhares e mais tarde, convites tímidos, uma ida ao café e a sugestão de cinema. O sorriso acresce no seu rosto após ouvir esta proposta, contrariando a sua expressão seguinte, a de mera indiferença ao filme projetado na grande tela. Nós cinéfilos reconhecemos - “The Dead Don’t Die” (2019) de Jim Jarmusch - uma sátira sobre zombies e que mesmo assim continuam lá, os zombies, tripas e sangue, na tela, ou na plateia, como na realidade que os suporta. À saída, ela confessa que nunca se rira tanto na vida, nós não o vimos, mas não interessa, o riso dela é especial, algo privado, não somos dignos de o presenciar. Se preferirmos, ao lado temos dois cinéfilos “saidinhos da casca”, fazem comparações entre Bresson e Godard, o trajeto é comprido, fazem um outro filme nas suas cabeças eruditas, é outra sátira, até porque Kaurismäki não é idiota nenhum, é atento à espuma dos dias e à saliva das tendências cinéfilas. Aqui, o cinema, o carinho e o local de (re)encontro, o que mais podemos desejar de um filme rodeado de violência? Pois, a violência, que apesar de invisível, é escutada (melhor relatada), há uma aura que paira no ar, e que desgosta tudo e todos, e que mesmo assim banaliza-se, vira mundano, uma parte da fatalidade com que as nossas vidas se reduziram.
“Fallen Leaves” aponta para o abandono da depressão e soluciona-se com suplementos a essa realidade: ele ‘despacha’ o livro de Marko Tapio, “Arktinen Hysteria” [“Histeria Ártica”, eis o prometido, sobre um estado mental melancólico, comumente atribuído a esquimós, mas expandidos a habitantes do Norte], oferece ao amigo com as promessas de que este seja convertido numa história de embalar para crianças, ou da leitura de Superman, primeira edição atenção, como distração aos conflitos bélicos em países não tão distantes (“Waiting for Superman”, ou neste caso, requere-se).
Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.
Portanto, saímos nós da sala, deixemos estes "bonecos" serem devidamente felizes, "agarrando-se" às suas imperfeições, às suas lógicas, às suas devoções. Felizes sós, felizes juntos.