Alfinetes e Agulhas
Certain Women (Kelly Reichardt, 2016)
“In any thought you put down, what you’re seeking is truth: what is the most believable fact and where is the end?”
Manny Farber, Farber on Film
Escrever sobre escrever sobre cinema deveria começar, primeiro que tudo, por olhar para o que chamamos de ‘crítica’ e como essa acção é apenas e só um acto em si mesmo, ou se pode e deve dizer respeito a toda a prática. São múltiplas as tradições da crítica de cinema, e com o avançar dos tempos novas e iluminadas maneiras de pensar o cinema têm surgido. Com o fim de a obter, há o que sempre entendi enquanto instrumentos, as tais ‘reviews’ que têm como principal objectivo a avaliação, e nestes últimos anos indefiníveis, esta tem-se vindo a tornar ainda mais extrema (no sentido de descabida; uma explosão responsiva ao binge-watching), de uma quantidade inacreditável de filmes, que por vezes surgem acompanhadas pelos célebres quadros de estrelas que neste momento só ajudam o leitor a não ler o texto. Com base no tipo de extremismo estanque dos críticos autores da Cahiers du Cinéma e seus sucessores (uma certa masculinidade vaidosa e desenfreada) que mereceu a atenção de Pauline Kael no ensaio Circles and Squares em 1963, o ofício da crítica continua a denunciar-se domínio de uma competitividade de tal forma erosiva que se prova diminuidora de potencial.
Se o trabalho do crítico foi alguma vez só o de sancionar (daí o terem afastado do sexo oposto?), então não era de crítica que se tratava. A crítica enquanto definição sempre teve os mesmos pontos de contacto: conseguir, em poucas palavras, limar uma obra; conseguir encontrar uma fenda de frescura, até nos filmes que se revelam mais falhados; estar aberto à política das relações criadas entre frases escritas; e talvez o elemento mais importante de todos, fazer um trabalho veloz e incisivo de curadoria de cinema. É bizarro esse mundo da crítica que se veste de eixo de autoridade, onde a presunção que dele escorre não consegue sequer redirecionar as suas intenções para algo positivo, acabando por olear o millieu cinéfilo.
Com a mudança dos tempos, nomeadamente com a entrada de rompante das plataformas de streaming nas nossas vidas, o excesso de oferta diminuiu o valor tanto dos filmes como da crítica destes. Com esse excesso e as multi-vozes que a internet muito rapidamente veio colocar no radar, ao ponto de este se ter vindo a partir, é sintomático agora um desinteresse em saber sequer no que se tornou a crítica de cinema. “(…) estes são tempos confusos. Sentimo-nos arrasados. Podemos passar meia hora a percorrer uma plataforma de streaming, deslumbrados pelo número e pela escolha.”, explicou-me o curador e realizador Mark Cousins o ano passado. Para lá da exigência económica de fazer o registo do que estreia e “aparece”, o papel da crítica tem-se vindo a moldar num guia. “Curadores e cartazes sinalizadores são vitais. Eles dizem ‘experimenta isto, podes gostar’. Providenciam um menu de degustação, ou para misturar metáforas, eles contam uma história do cinema.”, continuou Cousins. A crítica pode e deve continuar a ser um fim em si mesma. Aliás, nunca antes pôde a crítica redefinir-se como agora. E é de notar os momentos em que, no meio de tantas palavras balbuciadas, esta ainda consegue respirar autenticamente quando existe enquanto escrita e tenta figurar a localização da memória do cinema que começa a vaguear assim que dele se sai.
Dito isto, ainda existe um tipo de texto que se interliga com a feitura da escrita, ou noutras palavras, com a intensificação que a poesia cinemática exerce quando marinada. Nunca são nomes de pessoas, e nem têm que ser opiniões específicas, mas em vez disso maneiras de o fazer; as impressões digitais que certas passagens nos deixam, onde existe uma inegável conquista de gestos nas ondulações entre palavras e pontuação. A crítica que mais aprecio é a dos não-críticos de cinema (sempre com a excepção de Manny Farber, claro) que a escrevem sem se aperceberem.
“(…) What compels her work is process, getting-there, the in-between, the-how-it’s-done, the sheer effort it takes to be human, to slide open a barn door, to get warm when it’s cold, to drive through the night, to express what one doesn’t have words for (…)”, diz-nos Durga Chew-Bose, num ensaio sobre Certain Women, de Kelly Reichardt.
“Juan, his mouth fixed in a pout—sometimes he sucks on his tongue, as if it were a pacifier—doesn’t take his eyes off the street. He can’t afford to; this situation, any situation, could be changed in an instant by a gun or a knife.”, diz-nos Hilton Als, após ter visto Moonlight, de Barry Jenkins.
Ao contrário da ‘review’ tida enquanto produto final, estes testemunhos são sanguíneos, têm uma fluidez incontestável; é o cinema enquanto eco dos tempos, enquanto transferência empática sobre a vida e como todos nós nos relacionamos ao a exercitarmos. Já para não dizer que marcam, como muito poucos outros textos, o que deveria ser o objectivo da prática: confirma-nos que o filme não foi ignorado. Independentemente das palavras usadas, foi escolhido para ser pensado. Ao contemplar o objecto com a distância permanente da avaliação, ou melhor, com o desejo constante de contemplar gestos e fragmentos só para os pesar, perde-se o tilintar daquilo que cai dentro de nós, a forma como a literacia visual é aprofundada ou não.
Se pensarmos bem, ser um crítico nem sempre é ser um escritor. Mas ser um escritor é sempre ser um crítico. Os escritores são obrigados a criar a gramática das ligações que florescem no papel. Só interiores, a mascararem-se de superfícies. A crítica que repensa a história do cinema e a vai engordando deve ser escrita por um escritor para que, como quem peneira farinha, seja retido que uma ida à sala de cinema em nada tem a ver com a sala. É o movimento ascendente, os pés no asfalto, o curvar com as ruas específicas da cidade, a forma como o sol bate nas casas enquanto caminhamos em direcção ao edifício. Ou seja, para que consiga reunir e decifrar tudo o que fica por explicar.
Nestes termos, ensaiando os seus argumentos de forma precisa, em direcção a uma verdade, a sua verdade, um importar da dinâmica do filme para o papel é, em teoria, realizado. Aí, dentro desse importar, decorre uma espécie de contaminação, e o crítico não é nada mais do que o agente dela, no transporte dos alfinetes e das agulhas da possibilidade - oscilações ora de euforia ora de neurose em tempos de capitalismo tardio. Pensem num electrocardiograma, metade desejo metade soro da verdade, à vista de todos, e sem fim. Do pontilhismo à imagem, nunca só uma realidade é alcançada. Há múltiplas, e podem ou não trabalhar em uníssono. O que as une? Escrever sobre cinema também é fazê-lo.
* Texto da autoria de Susana Bessa, jornalista e crítica de cinema da À Pala de Walsh e do Público, tem um mestrado em estudos fílmicos da Goldsmiths College, e foi um dos Berlinale Talents 2022, no Talent Press.