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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Alain Guiraudie: "no Cinema estamos bem atrás da literatura, na questão de como devemos mostrar a sexualidade."

Hugo Gomes, 22.03.17

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Chamam-lhe provocador e não é por menos. Os filmes de Alain Guiraudie apostam na naturalidade das coisas, inclusive no natural estado em que a sexualidade é traduzida no ecrã. “Na Vertical” (“Rester Vertical”), o seu mais recente trabalho que chegou aos cinemas portugueses, conserva tudo o que esperávamos da sua arte. Aquela, que se pode considerar a arte de provocar. Através do seu novo filme, o Cinematograficamente Falando … tenta desmistificar o homem por detrás da obra.

Novamente se verifica em “Na Vertical” que existe um certo “eu” cómico nestas tramas?

Penso que o humor é muito importante. O porquê de ser importante? Porque por vezes gosto de rir, e uma boa gargalhada traz uma certa ligeireza ao tom dramático e até mesmo trágico. O humor fundido com o drama é um equilíbrio que procuro com o intuito de interligar as pessoas aos enredos.

A sua filmografia é dotada por inúmeros elementos naturais que por si residem como uma imagem de marca. Estamos a referir os exemplos da água, o rio e outros sistemas fluviais.

A Natureza faz-me sonhar. Aprecio ter um certo cinema sensorial, e para tal uso elementos para o transmitirem, tais como a água, o céu, árvores e o vento. Sobretudo o vento, até porque sigo uma das indicações de Orson Welles: “o cinema é o vento e as árvores“. Sou um fascinado pelo Mundo e pela Natureza em particular, cresci rodeado desta, aliás, em vim do campo, por isso o meu “cinema” possui um certo magnetismo com este meio ambiente. Não sei se conseguiria filmar um filme numa metrópole.

Como consegue consolidar esses elementos naturais com a vertente cinematográfica, sobretudo no contexto visual?

Para mim é difícil definir o conceito visual apropriado, porque é igualmente complicado traduzir a grandiloquência da natureza neste filme. Para isso gosto de trabalhar com a luz natural e o Sol é a melhor eletricidade do Cinema. Neste filme aprendi que também a Lua consegue funcionar da mesma maneira que o Sol. Foi a primeira vez que utilizei o luar para iluminar os meus planos e o meu veredito é que o brilho desta possui um certo encanto. Um encanto dignamente místico.

Luz natural?

Sim, em todas as sequências exteriores, utilizei somente luz natural. Com a tecnologia é possível reproduzir tal efeito, mas esta é demasiado recente, por isso optei por restringir-me ao luar.

Outra das suas marcas autorais. À semelhança de “O Desconhecido do Lago” (“L'inconnu du Lac”), este “Na Vertical” respeita um certo signo, onde reside algures uma criatura de que as nossas personagens temem. No caso do seu filme anterior, o siluro, neste são, evidentemente, os lobos. Estes “papões” funcionam como metáforas para algo?

Não é necessariamente uma metáfora. Não é a representação do “papão” nos lobos em “Na Vertical”, nem a misteriosa criatura do “Desconhecido do Lago”, mas isso pode muito bem ser induzido consoante a nossa própria interpretação. É possível olharmos para os lobos, assim como o “peixe-gato“, como um medo coletivo, eles existem e as suas auras encontram-se ligadas a fábulas e outras histórias do arco-da-velha, ou até mesmo bíblicas. Sinceramente, olho para estas criaturas e revejo-as num confronto entre a entidade real e as lendas que se encontram ligadas.

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Alain Guiraudie no Festival de Cannes de 2016

Neste “Na Vertical”, o Alain derruba as “paredes” que separavam a fantasia e a realidade.

Exato, gosto de pensar que o cinema nasceu de algo muito concreto, realista e que aos poucos consegue entregar-nos um efeito mais próprio da fábula, da mitologia e até da fantasia. Tal como os lobos, voltando ao assunto anterior, que possuem esse poder lendário por detrás. Então porque não combinar esses dois terrenos numa simbiótica combinação? Sinceramente, o cinema que detesto é aquele que se foca e que por fim se prende na realidade, e o que exibe é nada mais que isso.

E o conteúdo sexual? O seu cinema é caraterístico por uma naturalidade nesse ramo.

Primeiramente, era algo que tentava fugir. Só que nos últimos anos refleti sobre a importância de exibir ou não exibir esse conteúdo sexual. Porque haveria de não mostrar a naturalidade dessa temática? Perguntava a mim próprio. Se é algo importante para as nossas vidas, porque não mostrá-la no ecrã?

O que pretende com essa procura?

Uma nova linguagem sexual. Por exemplo, quando filmamos, procuramos novas áreas para explorar e no Cinema estamos bem atrás da literatura, na questão de como devemos mostrar a sexualidade.

Para si, existe alguma diferença entre o filmar essa nova linguagem sexual e a pornografia? Qual a linha que separa esses dois universos?

De momento me é difícil definir uma fronteira para mim mesmo. O grande obstáculo para mim é realmente encontrar atores que possam levar do início ao fim as referidas cenas, sem recorrer ao uso da simulação. Mas penso que se pode filmar tudo, a questão deverá ser como filmar. A abordagem no centro de tudo. Mas respondendo diretamente à pergunta, a grande diferença entre a pornografia e o aceitável está nos “point-of-views“. Na má pornografia, principalmente, a câmara encontra-se em ângulos impossíveis e na distância. No cinema tentamos ter uma boa distância, algo que na pornografia, habitualmente, não existe.

Então tenta evitar a pornografia?

Tento evitar [risos].

E quanto às acusações de ser um provocador?

Também não tento provocar, mas constantemente questiono a razão de não poder filmar certas coisas.

Como, por exemplo, a sequência em que filma um parto real?

Tento exprimir o ciclo da vida através da edição. E através dessa tento sobretudo expor algum humor, um senso de divertimento que unicamente se consegue na edição. Nesta cena em particular o que faço é demonstrar diretamente, no sentido mais literal, frontalmente o nascimento para o público.

Em matéria de edição, pensa que foi eficaz e perceptível?

Sinto que neste filme não fui totalmente bem-sucedido, queria dar uma sensação que estava gradualmente a abandonar a imperatividade da montagem, mas julgo que os espectadores não estão cientes perante isso. Como tal, julgo que “Na Vertical” não consegui atingir o objectivo.

Falando em cenas, existe a sequência final em que surgem por fim os nossos “papões“. Como foi filmar essa particular cena? Eles são reais?

Foi uma cena complicada. Os lobos, sim, são reais, e devido à dificuldade desta particular sequência, tivemos que utilizar efeitos visuais em pós-produção, até porque a tarefa era perigosíssima, tínhamos lobos de um lado e cordeiros do outro. Então filmamos os animais em separado e os juntamos através da edição.

O significado desta cena particular ?

É um sacrifício aludido aos contornos bíblicos, uma visão utópica de uma coabitação pacífica. A harmonia entre o lobo e o cordeiro.