Aconteça o que acontecer, sempre teremos a Duna Lynchiana
Em “Dune” parto do princípio de que é possível admirar a beleza nos fracassos, ou encontrar fascínio nas derrotas. David Lynch deverá ter sentido esse peso ao transpor a saga literária de Frank Herbert ao grande ecrã após a sua visível ascensão na indústria (“The Elephant Man” e a nomeação ao Óscar garantiram esse holofote), com o desafio de criar no limitado e artisticamente rígido seio de uma produção de milhões envolvidos. O próprio considerou não ser fã do bestseller, aliás de nem sequer ter lido uma única página, pelo que a sua presunção iria levá-lo a uma mazela que ainda hoje recupera na distinta reputação.
Mas fora aprovações e reprovações, devo afirmar, ou antes de mais declarar a minha afeição por uma quimera cinematográfica como esta nas proximidades da estreia da versão (prometedoramente mais fiel) de Denis Villeneuve. Posso encaixar “Dune” algures na minha trajetória pela descoberta pelo meu “eu” cinéfilo, até porque bem cedo e durante algum tempo foi este o filme que o encarreguei do estandarte do “mais estranho” visto (talvez influenciado pelos pensamentos destas personagens que acompanhavam-as e que colocavam o espectador no conhecimento das suas aflições).
Como Lynch, não li nenhuma obra de Herbert sequer, mas a imaginação aqui envolvida, uma ópera espacial contra todas as outras óperas espaciais, ou diria mesmo, ópera-rock tendo em conta a muito atípica banda sonora de TOTO, no qual concentrava um design vanguardista em conformidade com efeitos especiais contemporaneamente inovadores e rapidamente antiquados, e uma carnalidade presente e interveniente (a relembrar as marcas lynchianas deixadas pelo seu inaugural “Eraserhead” ou já referido drama de selo de ouro-óscar), uma história de monstros como disse em jeito orgiástico João Bénard da Costa, numa defesa ao realizador em épocas de crucificações e indiferenças geracionais.
Mas é nesse último ponto que ressalto na minha revisão, uma aura carnal que povoa em toda uma ficção cientifica steampunk, desde o “barão voador”, o nosso grande e asqueroso vilão (Kenneth McMillan), com mórbida sede pelos corpos de jovens ou das fantasias nunca materializadas para com o seu sobrinho, um Adónis assassino-nato interpretado por Sting, ou da sugestão de um incesto edipiano entre o nosso protagonista (um jovem e “verde” Kyle MacLachlan, futuro muso lynchiano) e a sua mãe (uma magnética Francesca Annis) e posteriormente o nascimento de um prematuro para desligar-nos da lógica natural das ‘coisas’, sem referir no meio disto uma criatura fetal que parece ter sido arrancada dos pesadelos paternais de “Eraserhead”. Esta ode ao físico sexualizado e fluído das personagens e relações, são meras manobras distrativas da cerne deste Duna Lynchiano, porque nela encontramos uma entranhada e aos poucos desvendada teologia, o reconto messiânico num universo crente de Deus e que em nome Deste se prega uma nova ordem (passando a ideia da carne ser mera futilidade pecaminosa que será substituída pela limpeza do espírito e do metafisico).
“Dune” falhou o seu objetivo, o de se tornar num êxito instantâneo e duradouro, e com isso a sua oportunidade de se converter numa nova Bíblia cinematográfica, a de um rebelde ideológico contra a tremenda força imperialista (Jesus Cristo é sempre fonte do nosso imaginário). Falhou, porém, a viagem por esta desconjuntura e por vezes esquemática tragédia leva-nos a repensar na definição de “fracasso”, ou a (im)possibilidade de os amar, mesmo conhecendo os seus irremediáveis defeitos e despejos. Mas voltando a referir Bénard da Costa, tal como ele, é naquele prólogo, com uma jovial e cintilante Virginia Madsen a jogar-se pelo ecrã estrelado (à boa maneira de Lillian Gish em “The Night of the Hunter”) e a contextualizar por palavras, sublinha-se, este universo que iremos num ápice penetrar, o qual deparamos na essência deste filme-bastardo, o seu “faz-de-conta”.
Em tempos que a ficção científica requereu a sua seriedade absoluta, (re)ver “Dune” retira-nos do nosso realismo omnipresente e faz-nos acreditar na artificialidade com que se narra uma epopeia.