A revolta originou um documentário!
A imparcialidade é encarada como a impossibilidade das virtudes, sobretudo no seio jornalístico, no qual códigos deontológicos tentam garantir esse território, visto que nós enquanto seres pensantes não envergamos inteiramente a dita perceção justa e redefinida. E esse dito virtuosismo pelo qual todos nós ansiamos em atingir não é de todo um materializado pódio. Já o cineasta italiano Nanni Moretti, no seu mais recente filme – “Santiago, Itália” – realçou o facto de não ser imparcial, até mesmo quando é requisitado sob a promessa dessa mesma “característica”. Para simplificarmos, ninguém é tal “coisa” e Petra Costa nunca o ambicionou ser nesta “Democracia em Vertigem”. E ainda bem que não o tentou.
Eis um documentário sobre a vontade de denúncia do atual estado da democracia brasileira, desenhando o seu diagnóstico através de um historial que se inicia no legado da realizadora até às eleições de 2018 que levaram o ex-militar Jair Messias Bolsonaro a presidente do país da Ordem e Progresso. No meio dessa linha narrativa, a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva e o “impeachment” da “presidenta” Dilma Rousseff são marcados como embarques para este cenário não tão optimista. Aliás, tudo é conduzido como tópico de um autêntico filme-catástrofe, amenizado pela poesia intimista de Petra Costa que é recitada em elipses intercaladas do iminente desastre.
“Democracia em Vertigem” funciona como pandã a um outro mediático filme nos bastidores da política brasileira, “O Processo”, de Maria Augusta Ramos, um exercício kafkiano num golpe arquitetado por forças invisíveis alicerçadas por uma ideologia política contrária. Mas no caso do filme de Costa, o desencanto formal dá lugar a um encanto estético de embelezar o não-embelezado, e no seio dessa moldura, a realizadora que intervém como uma testemunha da queda de um “bem sagrado” ironiza todo o processo de espetacularizar esse jogo. Tal como o reparo que faz nos preparativos do impeachment, onde os apoiantes do golpe são levados a um recinto à direita, enquanto os adeptos de Dilma Rousseff [que preenchem a esquerda política] são posicionados à esquerda do Planalto, não deixando o acaso como uma mera questão de coincidência. Petra Costa desenha uma “conspiração” na sombra das eventuais maroscas politizadas.
Aliás, espetacularidade é o que se poderá associar a todos esse método político, desde o teatro por detrás ao impeachment a Dilma, até ao sermão evangelizado de Janaína Paschoal, sem esquecer de Lula da Silva, a provar o seu status de animal político enquanto profere, a uma multidão apoiante, a vinda de uma nova Primavera, isto, em contraste com um discurso primário e movido pelo ódio de Bolsonaro, que, como sabem, viria a tornar-se presidente perante a desinformação e a falta de alternativas políticas. Com todas estas “personagens” e subenredos que desaguam pela ambição de poder, o Brasil é, tendo em conta esta “Democracia em Vertigem”, um autêntico teatro tragicómico no que requer ao seu mundo político.
Contudo, a imparcialidade procurada é uma ilusão premeditada, Petra Costa revela sempre fascínio pelo PT (Partido dos Trabalhadores) e repugna pelos seus antagonistas. Não tentemos encontrar aqui o senso detetivesco que o último trabalho de Michael Moore na sua não assumida sequela de “Fahrenheit 9/11” possuia, onde ao apurar as causas da presidência concretizada de Trump apontou para o falhanço dos democratas em anos e anos de governação (o episódio de Barack Obama evidencia esse desmascara).
Fora essa pretensão de ser um documento, “Democracia em Vertigem” é um gesto de revolta que gerou um documentário de uma força inerente vivida, uma obra que assume a sua posição e muito mais a sua ambição. Petra Costa não engana ninguém quanto aos seus propósitos e sobretudo na sua marca enquanto autora (uma das promissoras e prolíferas vozes da cinematografia brasileira atual, e para isso só bastou assistir “Elena”). Mas à luz da imparcialidade, se é que isso existe, a condição do Brasil merece uma lupa e uma abordagem mais sóbria (possivelmente acinzentada) e não tanto alarmista. Porque se “o mal impera porque os homens de bem nada fazem“, é necessário entender o que falhou para gerar este novo “abraçar” das trevas.