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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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A Pequena Sereia

Hugo Gomes, 10.07.23

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Olhemos para a sereia, o animal-fábula, a criatura mitológica, e o que realmente vemos - além da cultura popular fomentada pela Disney (com empréstimos de Hans Christian Andersen) ou dos trágicos relato-imaginários de marinheiros seduzidos / cedidos ao seu belo canto da morte - é uma quimera, uma silhueta quasi-humana, aliás um peixe, algo escamoso portanto, que se faz passar de mulher [leia-se: desejar, procurar ser]. Talvez seja a sereia o próximo marco folclórico a ser resgatado e servido como bandeira de uma libertação identitária [a par do unicórnio], e em “20.000 especies de abejas” da basca Estibaliz Urresola Solaguren, tal criatura se transforma num signo, numa entidade que acompanha subliminarmente o(a) nosso(a) protagonista, uma criança educada contra os binarismos sociais que esclarece, convictamente, sobre o seu género, debatendo com o conservadorismo de uma parte da sua família, e da não-resposta dos seus progenitores. 

Por isso, somos introduzidos a Aitor (Sofía Otero), ou Coco, “alcunha” neutra, preparativo para quem deseja ser “batizado” por Lúcia; vestir vestidos e urinar sentado, contrariando o órgão sexual o qual nasceu entre as pernas. Para ele (ou ela), a sereia instala-se como uma fé, algo cuja “imaginação tinge a realidade” (assim a(o) avisaram, num recreativo filosofar de curto pavio). A partir daí, a sereia será invocada como peça de ignição, numa fantasia inalcançável e invulgarmente palpável. Mais de uma vez, Coco encontra “refúgio” ou talvez harmonia em contacto com a água. A lagoa, por exemplo, torna-se no o seu palco de (re)descoberta, ou melhor, aproveitando o contexto narrativo, num “baptismo”, numa “submersão” (como também é explicada às “criancinhas”). Coco submerge e emerge sob uma nova identidade, no mínimo com uma determinação identitária. 

Mais a fundo damos de caras com outro “símbolo” interativo com a passagem dos dias para Coco: a apicultura, o hobby da sua tia, e daí a abelha-operária, polinizadora, e neutra na sua afirmação de género. O conflito entre as duas vertentes persiste no filme, como também persiste nas personagens, alegoricamente elencadas nos seus gestos e relações, como é o caso da mãe, uma artista de alma, que trabalha dia-e-noite com inteiros corpos de cera, um poder “frankensteniano”, esse, o de criar vida para além da predestinação, um ostentando e fabricado corpo que arrebata todos os parâmetros aí fabricados. 

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20.000 especies de abejas” é resultado de uma nova vaga de cinema espanhol que tem fascinado cinéfilos contemporâneos em todo o mundo, como também assume-se num espelho dos ventos politizados que percorrem o território. Infelizmente, o projeto iça por fios quanto à sua temática, ideologia dirão os opositores de tais mudanças. Solaguren menciona metáforas, inconscientização poética aos assuntos a abordar, e é desta forma que conecta tais símbolos com significados inerentes, como uma semiótica obscura se tratasse. Mas tal é atirada aos nossos olhos como poeira, sugestões aliás, para partir num cinema cru e sem linhas guias, e, contra todas as projeções, renegando a entrega à perspetiva da criança (ou daquelas crianças) enquanto testemunhas oculares, como uma abelha que circunda a sua “flor” (vejam, outro simbolismo que se poderia utilizar). 

Parte e reparte pela identidade em guerra ou da vida atribulada da artista falhada, a progenitora, mártir das suas escolhas e das “cantigas” de famílias definitivas, para ela a empatia é uma recompensa do seu esforço que depressa converte-se em dó. Isto porque o filme é vencido pela condescendência ao protagonista. Lucia [não desvalorizando a atuação de Otero] não é uma personagem fácil de encarar (e não se trata do seu dilema de cromossomas), é uma presença antagônica e quiçá destruidora de um senso comunidade ali criado, por palavras mais simples e diretas - uma criança mimada e em certa parte egoísta (basta o vandalismo gratuito cometido ao atelier da sua mãe). Só que o conflito de género é invocado em socorro da sua personagem, uma “vitimização” digamos, para o(a) perdoar do seu desrespeito. 

Um filme que deambula sem grandes remates dramatúrgicos para nos entregar. Até mesmo Patricia López Arnaiz, uma atriz acima do que foi proposto, é diversas vezes contida pela realização e sua montagem, em prol da “agenda”, o tema, o seu “atrativo”, sem nunca oficializar um debate (o cinema enquanto inquietude não mora aqui).

Se vamos falar de géneros, por favor, falemos com maturidade e sem “birras”. E se vamos falar de sereias, não esqueçamos do seu canto.