"A Nuvem Rosa": Não olhem para cima!
A realizadora e argumentista Iuli Gerbase garante que a rodagem de “A Nuvem Rosa” aconteceu entre 2017 e 2019, sendo que qualquer semelhança com eventos posteriores seja a mais pura coincidência. E é um facto que este filme seja vítima-fenomenológica, o tempo lhe atribuiu um significado bem diferente, de conotações mais contemporâneas do que somente um figurativo modelo do mundano.
Quando misteriosamente uma nuvem de cor rosada paira sobre o mundo, matando instantaneamente quem a respira, um novo mundo nasce através dessa permanente ameaça, ou melhor dizendo, adapta-se. Cada vez mais restringidos aos seus espaços domésticos, a Humanidade tenta evoluir perante esse limite cénico, tentando reconfigurar o seu quotidiano, ora de promessa temporária, face à pacificação do seu redor. “A Nuvem Rosa”, primeira longa-metragem de Gerbase, não se assume como um ensaio cataclísmico (quem sabe não era um retrato do Brasil de hoje, agora distorcido pelo tempo), ao invés de focar na destruição do Homem e da sua pisada, aponta a lente para o acidental casal, Giovana e Yago (Renata de Lélis e Eduardo Mendonça), atraídos por um “one night stand” que, longe de saber, viria a perdurar até a um encontro de uma nova definição de família.
Mesmo não tendo sido a inicial intenção, “A Nuvem Rosa” perfeitamente veste a pele de colectânea pandémica, apressando e aproximando a um novo movimento fílmico, não um estilo artístico e criativo, mas a relação para com um cinema pós-pandémico, constantemente à nossa realidade, não estética, mas intimista coletiva. Tal como a Segunda Grande Guerra, que culminou num outro tipo de gesto cinematográfico (ou o 11 de Setembro que alterou o campo semiótico do cinema norte-americano), o COVID19 demarcou uma linha separadora entre um cinema que olhava para o futuro como garantido, e um cinema de resiliência, tomado na construção do nosso “novo quotidiano” e do cotão aí surgido. Mais um vez, sublinhando a sua ignorância quanto a eventos futuros, Gerbase encostou-se na inconsciência … que pertinente inconsciência!
“Fakes news”, charlatanices esotéricas, a construção de um “novo normal”, a repugna e resistência para com o mesmo, a saúde mental, a nossa dependência virtual que mais tarde desaguará na nossa carência emocional, até mesmo nas transformadoras lides com o sexo na sociedade, e o voyeurismo cada vez mais normalizado e entranhado nas nossas suplicias, está tudo lá, basta procurar no meio daquele confinamento. “A Nuvem Rosa” é, contextualizando com o nosso presente, um antecessor de "Don't Look Up” de Adam McKay, uma tragédia à nossa fúria humana e uma sátira moralista ao nosso caos amoral. Exercício de reflexão resultante de um exercício de outras e distintas reflexões.