A "Coisa" de Jordan Peele ...
Nope (Jordan Peele, 2022)
Ao terceiro filme e com o sucesso garantido nos dois anteriores (seja de crítica, público e do culto entretanto gerado), Jordan Peele adquiriu um cognome de “mestre do terror”, automaticamente contestado pelo próprio, que respondeu com John Carpenter como o merecido detentor do título. Nesta instância, tornou-se fácil a comparação de ambos os cineastas nas diferentes resenhas, principalmente quanto à mistela de elementos (o western no coração de tudo) em função de um terror aparentemente descomprometido (no caso de Peele o tal júbilo opera sempre em concordância com as suas preocupações sociais).
Contudo, deparei-me com “Nope”, um exercício em terreno da ficção científica (ou será antes uma distopia americana à imagem do que tem construído até então), numa linhagem à lá Spielberg, trazendo o certo minimalismo e transfusões hitchcockianas dos primeiros filmes desse realizador (refiro a “Duel” e obviamente a“Jaws”). E não é por menos que muitos dos “catchphrases” envoltos do marketing deste filme “vendem” a ideia de uma criação de fobia cinematográfica (““Nope” faz dos céus, aquilo que “Jaws” fez com as praias” é o que tem-se banalizado por aí). Porém, é cedo para cair nessas “armadilhas mediáticas”, não negando com isto a aproximação desses dois mundos. E é em equivalências spielbergeanas que entra o terceiro e mais próximo “parentesco” de Peele - M. Night Shyamalan (dos últimos cineastas que levava o lendário Bénard da Costa a deslocar-se para uma sala de cinema mais próxima) .
Nope (Jordan Peele, 2022)
E sabendo que no Cinema nada se cria, tudo é reformulado e apropriado através de uma cadeia de influências atrás de influências, é em Shyamalan no qual deparávamos, em tempos, com o genuíno Spielberg perdido, principalmente nessa tendência de criar ameaças minimalistas, conduzindo as suas personagens a uma aliança cívica em "detê-las". Não é por menos que “Signs” (2022) e “Nope” ressoam pertencer ao mesmo universo, estabelecendo esse "heroísmo" - a “americana” jornada do herói - em que um viúvo agricultor (Mel Gibson) instalou como derradeira parte da sua existência (assim como Henry Fonda assumiu a luta entre classes nas “The Grapes of Wrath” de John Ford) na óptica de Shyamalan, partilhada para com um criador de cavalos (Daniel Kaluuya) na mão de Peele.
Mas não é só essa inerência que nos faz sonhar com um herdeiro “shyamaliano”, o realizador demonstra com “Nope” abordagens ainda mais vincadas com o imediato através de uma planificação em concordância com a natureza do olhar. Se Shyamalan utilizou tal artifício na sequência do comboio em “Unbreakable” (2000) - com a câmara a responder aos chamamentos de duas personagens a bordo [Bruce Willis e Leslie Stefanson] e assim induzindo um travelling que mimetizava a posição de uma “terceira figura” [Samantha Savino], ou nas inúmeras passagens no seu último “Old” (2021), cujo tempo relativo era acompanhado por um jogo de “fora-de-campo” - Peele no “flashback” de Gordy reproduz essa aliança do olhar com o travelling aí executado.
O efeito ping-pong reproduzido pela câmara na sequência de "Unbreakable" (M. Night Shyamalan, 2000)
O travelling desfeito e a revelação da perspetiva em "Unbreakable" (M. Night Shyamalan, 2000)
Embora a convergência, existe uma característica bem reconhecível em Shyamalan que Peele não partilha aqui. Sim, esse mesmo … o “twist”, a reviravolta em bom português … nesse aspecto deixa-se levar pelo mistério, pela não-resolução e como tal, reforça o seu tom respeitavelmente minimalista. O resto, o espectador poderá fazer as somas como trabalho de casa. Só que não é longínqua essa perda do “explicadinho”, recordo que Peele condenou a narrativa da sua metáfora em “Us” (2019) ao criar uma lógica com o seu “twist final”, o “ganchinho” desnecessário sabendo que o mistério prevalece em condições mais saudáveis (já em “Get Out”, o “twist” nunca é totalmente consolidado, visto que desde o início do filme o espectador tem a percepção de que o aparente é somente isso, aparência).
Como tal, “Nope” funciona como esse exercício de terror, simples, direto e sem “espertices” para mais do que o dado, apenas o orbitar da sua proposta é que somos fomentados com um universo em construção (mais do que apenas pistas para resolver o enigma). E como não poderia deixar de ser, o realizador deixa a sua própria marca, respeitando, e muito, nos propósitos do género do terror - abordagens a problemas sociais formuladas em alegorias - e talvez seja isso que as comparações com o Carpenter são trazidas “à baila”. Aqui, em “Nope”, é o discurso de uma desconstrução social envolto na génese do cinema: "Did you know that the very first assembly of photographs to create a motion picture was a two-second clip of a Black man on a horse?".
Horse in Motion (Eadweard Muybridge, 1878)
Eadweard Muybridge e o “Horse in Motion” [1878 - conjunto de fotografias que projetadas em sequência demonstravam um cavalo em movimento], o berço da própria “imagem em movimento” são à luz de Peele desvendadas a um espectador que as esqueceu (é para isto que deve ser utilizado o dito “cinema popular”!). Embora o seu uso revele um ativismo de punho encerrado às declarações do Cinema enquanto “arte parida por brancos”, sem o encarar com a imunidade crítica (conhecemos o nome do cavalo, Sallie Gardner, só que desconhecemos a do jóquei negro imortalizado para posteridade, eis o slogan captado).
Nessa prol (e para a prole), Jordan Peele ostenta a sua natureza, fertiliza o hype envolto à sua figura, solidificando como o artesão do terror (rasuro, substituo por “cinema de género”). Curioso que a atenção que tem conquistado, filme após filme, advenha dos temas que invoca, mas felizmente, as sabe trabalhar como material simbólico, criando as tais e referidas metáforas, distopias, ou simplesmente americanos. “Nope” é parte desse hectare, como bem refere o seu protagonista: “What's a bad miracle?”.