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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"A câmara é sempre um instrumento de poder": uma conversa sobre a dignidade em "Estou Aqui" com Tiago Hespanha

Hugo Gomes, 11.04.25

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"Estou Aqui" (Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, 2024)

Em 2020, com o primeiro confinamento devido ao COVID-19, que instaurou um clima de medo e inquietação, o maior pavilhão desportivo da cidade de Lisboa transformou-se num abrigo de emergência para sem-abrigos e outras situações de precariedades. No seio dessa “experiência” municipal, encontram-se dois alunos de documentário [Zsófi Paczolay e Dorian Rivière], que, pela sorte da ocasião, se convertem em realizadores. Decidem pegar numa câmara e registar um projeto solidário. O que captam é mais do que uma mera observação: há ali pessoas, e estas tornam-se o centro de criação e os desafios artísticos para estes jovens, ainda verdes na cadência do Cinema.

“Estou Aqui”, documentário celebrado na última edição do Doclisboa [Prémio Escola - Prémio ETIC para Melhor Filme da Competição Portuguesa], chega às salas de cinema com uma proposta humanista, mas também inquisitiva, em relação à natureza deste espaço, agora devolvido ao seu propósito original, e ao projeto, que, infelizmente, se reduz a uma ideia não-praticável.

Em conversa com o produtor Tiago Hespanha, também realizador da casa Terratreme, passeamos pelo pavilhão inexistente, numa discussão sobre criatividade, ética e humanização, com ainda espaço para coletividades.

Quero começar pelo facto do Tiago não ser realizador do filme, mas enquanto um dos fundadores da Terratreme possui um trabalho bastante próximo ao projeto, visto que a natureza da produtora é quase de colectivo. Podemos designar a Terratreme nestes termos, mais colectivo de realizadores do que produtora?

Na verdade, diria que somos uma produtora que nasce de um coletivo: ou seja, um coletivo de realizadores-produtores. Somos cinco integrantes fixos, aos quais se junta um coletivo mais amplo de realizadores com quem colaboramos frequentemente. No fundo, somos uma empresa de produção gerida por cinco, ou talvez doze, produtores.

Refiro-me a essa ideia de coletivo porque, em uma entrevista com a Susana Nobre, também produtora e realizadora, ela destacou bastante essa natureza da Terratreme. Ela mencionou que, por exemplo, um realizador pode colaborar brevemente em um projeto, depois trabalhar na montagem de outro, e assim se constrói uma espécie de comunidade cinematográfica. No entanto, este esclarecimento se dá pelo facto de o Tiago estar diretamente envolvido com o projeto [“Estou Aqui”], embora o seu nome não figure diretamente nos créditos de produção do filme.

Nós assinamos sempre os filmes em conjunto, como Terratreme e com os nossos nomes de produtores. O que acontece com frequência é que, devido ao grande número de nós e aos muitos filmes que produzimos, há sempre um dos sócios-produtores que está mais envolvido num filme ou num conjunto de filmes, mas não em todos, ou seja, eu não acompanho todos os projetos e filmes em detalhe. 

Este caso, em particular, não é inédito, mas é especial. Também dou aulas no mestrado internacional em Documentário, o DocNomads, que é uma parceria entre a Universidade Lusófona, a SZFE (de Budapeste, na Hungria) e a LUCA School of Arts, em Bruxelas. Este mestrado reúne alunos de todo o mundo e tem a duração de dois anos e foi nesse contexto que conheci a Zsófi [Paczolay] e, mais tarde, o Dorian [Rivière], alunos do mestrado em momentos diferentes. Este projeto nasceu nesse ambiente: começou como um trabalho de graduação da Zsófi, em 2020. Na fase final do programa, cada aluno tem um mentor, um professor que acompanha o seu projeto, e, neste caso, fui eu. Por isso, acompanhei este filme desde a sua génese.

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"Estou Aqui" (Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, 2024)

Mas tendo conhecimento que este filme acontece em 2020 — um ano bastante sui generis, assim por dizer — também houve um certo timing para fazer este projeto. Ou seja, eles iam trabalhar a sua proposta de graduação em 2020, acontece a pandemia, dá-se as mudanças sócio-políticas que bem sabemos e sobretudo no nosso quotidiano, e com esse testemunho   “encontraram o filme”?

O que aconteceu foi o seguinte: a Zsófi chegou no final de fevereiro desse ano e, como todos os colegas, iniciou o seu projeto de graduação, começou a pesquisa e, poucas semanas depois, deu-se o confinamento. Todos os seus planos, que nesse momento ainda estavam numa fase muito inicial, caíram um pouco por terra, porque, de repente, todas as pessoas tiveram de ficar fechadas em casa. O Dorian, que ficou confinado com ela nesse momento, expressou-me a necessidade de sair de casa e encontrar as pessoas que, justamente, não tinham casa para se fechar. Havia aquele slogan propagado do "fique em casa", mas, depois, havia as pessoas que não a tinham. Diante dessa preocupação, falámos sobre isso intensamente. 

Na altura, uma amiga minha estava a fazer voluntariado no projeto do Casal Vistoso, no pavilhão desportivo, e falou-me sobre o projeto municipal. Então, propus a ideia: "Tenho conhecimento desta experiência, conheço pessoas que estão lá dentro e tenho contacto com elas." A Zsófi e o Dorian aceitaram e foram para o Casal Vistoso fazer voluntariado. Mas, naquela altura, ainda não havia qualquer ideia de filme.

Não havia ideia, mas havia uma certa observação.

Ela tinha que fazer um filme, mas todos os processos foram interrompidos, não é? Foi para o Casal Vistoso como voluntária e ao fim de duas a três semanas — não sei ao certo, mas foi relativamente rápido — falámos, perguntei-lhe como é que estava a ser o dia-a-dia ali, etc. E foi nessa mesma conversa que se começou a definir a ideia de propor ao projeto Casal Vistoso filmar e fazer um filme a partir daquela experiência. A proposta foi aceite, eles deixaram de ser voluntários e passaram a ir como realizadores.

Isto começou em março de 2020, e depois a Zsófi terminou o mestrado. Houve um ligeiro atraso justamente por causa do confinamento e em vez de acabarem em julho, acabaram em setembro, mas o projeto não acabou nessa altura. Eles continuaram a filmar já depois de ela ter acabado a graduação, mais tarde entendemos que aquele filme atravessava os limites temporais. Havia algumas características dos filmes de graduação: têm que ter uma determinada duração - não podem passar os 24 minutos - e são produzidos num determinado espaço de tempo. Este, pelas suas características, atravessava isso, então decidimos continuar a trabalhar juntos. Continuaram a filmar até início de 2021, quando o projeto saiu do Casal Vistoso. Tentaram filmar até ao final, mas acabaram mais a seguir.

A minha questão também com este filme — e com o que ele levanta — é o facto de aquilo ser um abrigo ou, vamos dizer, uma espécie de abrigo provisório para pessoas em condições de sem-tecto ou extremamente precárias. Há também uma questão, um debate ético: se vamos filmar estas pessoas e de que maneira vamos filmá-las, porque muitas delas, claro, nem querem ser filmadas. Isso levanta também um ponto — claro, não sei se é a melhor pessoa para responder, talvez os alunos — mas na Terratreme também têm um filme que se chama "A Morte de uma Cidade", do João Rosas, e nele recordo de uma frase: “a câmara é uma arma de poder”. Neste caso, sempre sentiu — orientando estes realizadores, que vamos já chamar de realizadores — houve essa questão de poder? Ou se houve uma forma de mediar o que se podia filmar e o que não se podia filmar, em honra da dignidade humana? 

A câmara é sempre um instrumento de poder. Em todas as situações, e não é nesta em particular. O que acontece nesta é que as pessoas que estavam à frente da câmara encontravam-se numa situação de maior fragilidade, porque estavam dependentes de uma estrutura para garantirem as suas necessidades básicas. Claro que essa foi uma questão durante todo o processo, desde logo como é que se entra, e por isso é que também fiz questão de explicar este processo, porque ele vem de uma experiência, de uma presença diária ali da Zsófy e do Dorian enquanto voluntários. Portanto, é aí — ainda antes de pensarem fazer um filme ali — que eles começam a relacionar-se com as pessoas, tanto as em situação de sem-abrigo que estavam ali a viver, como as pessoas da coordenação do projeto — porque isso depois é uma outra conversa que se pode ter, há muita gente a circular ali, há ali muita coisa a acontecer. Este estabelecer de laços, conhecer as pessoas, ser reconhecido, é fundamental para o que vem a seguir. Quando há uma mudança de estatuto da relação deles, e eles passam a vir com a câmara, é claro que tudo muda.

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"A Morte de uma Cidade" (João Rosas, 2022)

Há outro instrumento de mediação dessa relação, que é a câmara, e, portanto, há que reafirmar os termos dessa relação com cada pessoa. Cada pessoa filmada tem que autorizar a filmagem, mas isto é feito de uma forma muito mais orgânica, porque já havia um conhecimento mútuo. Portanto, é mais fácil, os limites  e as intenções já são conhecidos de alguma forma. É mais fácil fazer essa gestão, porque é muita gente. Aliás, há uma cena no filme em que há uma pessoa que diz, em off, que foi filmada sem saber. Essa cena não está no filme por acaso. Está porque numa situação como aquela, como em qualquer situação, estar a fazer um “filme na rua”, nem sempre é possível ir perguntar às pessoas se podemos filmá-las ou não. Porque a pessoa passou ou apareceu numa reunião que já estávamos a filmar, como é o caso no filme — aquelas assembleias — e à hora de início da assembleia, quando se coloca a questão, não está lá toda a gente. Portanto, há pessoas que se vão somando.

Não quero dizer que essa conversa não possa ser tida a certo momento da filmagem, ou no final, ou num momento posterior, que foi o que aconteceu naquele caso. Não acho que seja muito diferente de outras situações de filmagem. A questão da ética é muito curiosa porque não há propriamente um manual. Existe nas nossas vidas pessoais também. Nós sentamo-nos aqui os dois a conversar e não estabelecemos um pacto: “vou fazer estas perguntas”, “vou responder desta maneira”. Nós vamos nos entendendo. E isso tem a ver com uma ética que é muito pessoal e que se transporta para quando fazemos filmes que vivem da subjetividade do autor, estamos a trabalhar com a ética dele e das relações, da forma como ele estabelece as mesmas. Não há propriamente um manual para isso.

O que você está-me a querer dizer — e de certa forma concordo — é que nenhum filme é verdadeiramente objetivo.

Absolutamente! Nenhum filme é objetivo.

Deixa-me só fazer uma ponte, vi este filme no DocLisboa, também com outro filme que vocês [Terratreme] vão lançar pouco tempo depois, que é “O Palácio dos Cidadãos” (Rui Pires, 2024), e com ambos, noto uma questão de estética observacional para os diferentes espaços, mas sentimos em todo o lado que não é objetivo, não é uma coisa imparcial o que se está a fazer. Mais evidente em “Estou Aqui”, um bocadinho mais subtil, exigindo interpretação, em “Palácio dos Cidadãos”. Por isso é que gosto destas questões sobre ética, porque, a nível do documentário, é um debate que leva-nos a algumas rasteiras, de certa forma.

É totalmente isso, ou seja, a objetividade não existe. A neutralidade não existe. A partir do momento em que se liga uma câmara e se entra com uma câmara, tudo mudou. Por isso é que disse: estamos a falar de filmes que assentam na subjetividade do autor. É a sua visão, a sua relação com aquela realidade, com aquelas pessoas, com aquele contexto e é a forma como representa isso. Que será uma para aquela pessoa e outra para a pessoa ao lado, que vê as coisas de forma diferente — como em todas as situações da vida. Isso é um ponto de partida.

Gostei dessa ideia do autor, porque falamos no singular, mas este filme é realizado por duas partes. Isso é um desafio também na busca dessa perspetiva autoral.

Sim, mas atenção: são poucos os filmes que se fazem a solo. Falamos no autor, mas o autor não quer dizer que seja uma pessoa que faz as ‘coisas’ sozinha. No cinema — e na maioria dos filmes — há um conjunto de relações entre pessoas que confluem num processo de trabalho, que é liderado por uma visão. E essa mesma pode ser partilhada, como é o caso deste filme. É um desafio maior e particular, porque estas duas pessoas vão definindo e construindo o seu ponto de vista sobre aquela realidade. Isso é algo que acontece sempre no documentário. Mesmo quando faço filmes sozinho, a minha forma de me relacionar com as pessoas, com as situações, com os lugares, vai evoluindo ao longo do tempo. Não me relaciono com as pessoas que filmo da mesma maneira no primeiro dia e no último. Ela evolui. A minha visão daquele contexto altera-se. Vai-se construindo. O filme vai-se definindo. O documentário tem esta ‘coisa’ particular: não são filmes escritos à partida para depois serem apenas executados. São filmes que se vão escrevendo. Vamos descobrindo como podemos desenvolvê-los.

Neste caso em particular, há uma comunidade, mas dentro dela desenham-se três figuras que funcionam como âncoras para o espectador, que guiam o filme e o desenvolvimento da história. Não estavam definidas à partida. Quando começámos, não sabíamos ainda que o filme se ia centrar no Plácido, na Teresa e no Tiago. Isso foi algo que se foi descobrindo, também com a disponibilidade do outro lado para entrarem nesse processo. Não foram os únicos. Houve mais pessoas que participaram e que construíram com eles um percurso no filme. Alguns, a montagem colocou mais no centro; outros, menos. Mas tem a ver com esse evoluir das coisas. 

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Zsófi Paczolay e Dorian Rivière

Sendo dois, há duas sensibilidades, duas formas de relação. Mas, nesta construção progressiva, há também um certo apoio. Porque, de alguma forma, a visão complexifica-se. Não é só a forma como entendo as coisas, mas também o diálogo com a outra pessoa que está ao meu lado, a viver o mesmo processo, atenta a outras coisas, com outras ideias. E esse diálogo é muito produtivo e criativo.

É essa a ideia de coletividade que estava a falar no início. 

Só por curiosidade: o título “Estou Aqui” surge numa altura em que facilmente é confundível com o sucesso brasileiro “Ainda Estou Aqui” (Walter Salles, 2014). [Risos] 

[Risos] O filme já tinha saído quando percebemos isso. Mas sim, o título “Estou Aqui" já existia em 2020, quando os realizadores terminaram o mestrado. Ainda houve tentativas de outros títulos, mas acabou por ficar este.

Mas este título tem qualquer coisa... Voltando à dignidade … de trazer essa dignidade a estas pessoas que são uma "não presença" na cidade. Só quando chegam ao pavilhão adquirem uma identidade, essa mantida através da câmara, através destes filmes. O filme dá-lhes uma certa identidade, de facto. Então o título é quase como um manifesto.

"Eu existo e estou aqui." Neste ponto no espaço, neste ponto no tempo, neste ponto na vida. É uma afirmação de presença. Porque sim, há muita invisibilidade, há muitas estratégias para que pessoas em situação de sem-abrigo, em enorme fragilidade, sejam remetidas para a sombra, para o desaparecimento — até do espaço público. O que aconteceu naquele momento muito particular foi que não se via ninguém na rua. Mas de repente via-se uma fila de pessoas à porta de um lugar, de uma igreja, de um centro de acolhimento, ou de várias estruturas que estavam a prestar algum apoio. Isso trouxe-nos essa presença. 

O filme tem essa carga. É como se dissesse: “E quem não tem casa? Onde está? Para onde foi? Como faz?”. Houve até casos não só com pessoas em situação de sem-abrigo — mas também pessoas que viviam sozinhas e não tinham capacidade de fazer a sua gestão diária, de ir ao supermercado… e que de repente, ficaram sem rede. Toda a rede que tinham desapareceu.

Portanto, o filme tem essa chamada, essa afirmação.

Sobre o curso de documentário. Porque — e vou dizer talvez a maior banalidade de sempre — ao ver este filme, a primeira coisa que senti foi que havia quase um... e acho que é um dos grandes documentaristas no nosso tempo, Frederick Wiseman, e o estilo observacional dele, de quase “descascar” as instituições... É um pouco o que se sente neste filme. Gostava de saber mais ou menos quais são os autores que vos influenciam na área documental, ou se o curso é mais prático ou de vertente mais teórica?

É muito prática. Neste mestrado em particular, é muito prático. São quatro semestres em que os alunos estão sempre a ser desafiados a filmar. Começam com exercícios, e cada semestre termina com um filme, um exercício um pouco maior. O programa termina com um filme final que ocupa um semestre inteiro. Tem várias características: uma delas é que reúne cerca de 24 alunos de todo o mundo. Na mesma turma, há pessoas de todo o lado. Poucos europeus. É um mestrado financiado pela Agência Erasmus+, que privilegia determinadas regiões. Isso vai mudando a cada edição.

Como assim?

A Agência Erasmus atribui bolsas aos estudantes. Essas bolsas pagam as propinas e dão algum dinheiro para viver. Em cada ano, a agência define as regiões e os países elegíveis. Imagina que há 20 bolsas para distribuir: 5 são para a América do Sul e, dentro do continente, para um conjunto de países que, no ano seguinte, serão outros. Não é algo fixo. O que acontece é que há poucas bolsas para o espaço europeu, porque a vocação do programa é internacional, direcionado para regiões mais afastadas. Estas 24 pessoas chegam e começam imediatamente a filmar. E quase todas não falam a língua. Isso é uma constante.

É um obstáculo.

Sim. Depois há a Hungria, onde também não falam a língua. Alguns falam espanhol ou português e conseguem perceber, mas a maioria não. O inglês torna-se aqui a língua universal.

É muito curioso ver as estratégias que encontram para lidar com isso. Mas também, por não perceberem a língua, a atenção foca-se noutras coisas. Não passa tanto pelas palavras. E isso é interessante, porque falaste no Wiseman — que tem esse processo de observação intensiva, de passar muito tempo num lugar. Curiosamente, o Wiseman faz o som dos seus filmes e dirige a câmara com a perche. Essa ideia de escuta — de uma escuta relativa — é muito importante neste filme.

Porque é uma realidade muito dispersa. Há muita gente, muitas situações. É preciso encontrar um caminho ali no meio: dentro de tudo o que acontece, onde concentrar a nossa atenção. Isso é um processo.

Com essas multitarefas todas, ainda há espaço para realizar?

Ser realizador é a minha principal tarefa. Tudo o resto que faço vem a partir daí.

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Tiago Hespanha

O seu último “Campo, foi realizado antes da pandemia, em 2019. Mantém esse desejo de realizar para breve, ou já tem algum projeto?

Sim, já estou a filmar. Tudo o que faço — as aulas, a produção — tem como centro a criação. E a Terratreme, voltando ao início da nossa conversa, também carrega essa ideia: é uma produtora de produtores que são realizadores. Isso coloca o centro de tudo na criação e nas suas necessidades. Não é uma criação estanque, separada da produção e das outras dimensões do filme. São processos que colocam a criação nesse mesmo centro. É a partir dessa sensibilidade, desse desejo, que tudo o resto se começa a articular para formar o filme, no meu trabalho é um bocadinho assim também. É curioso: agora que estamos a falar do "fazer" — se é prático ou teórico —, é muito prático, mas são processos práticos que também são muito reflexivos. Têm muita investigação. Teoria, se quiser.

É um processo que me levou ali [ao Campo de Tiro de Alcochete, no filme “Campo”]. O início não era aquele. O início era um filme. Não era um filme, era uma ideia de saber mais sobre... Quando comecei esse processo, tinha acabado de ser anunciado que o aeroporto ia ser ali.

Há uma dimensão deste filme [“Estou Aqui”] que acho que é importante e que nem sou a melhor pessoa para falar. Mas que tem a ver não tanto com a forma do filme, mas com aquele contexto em concreto, com o teu projeto em particular. Porque aquilo foi uma experiência e foi uma que durou aquele tempo. Não existia antes e não passou a existir.

Falamos do projeto do Casal Vistoso no “Estou Aqui”? 

Sim. O centro de acolhimento do Casal Vistoso foi um projeto inédito, conduzido pela Teresa Bispo, que era técnica da Câmara, e que criou condições muito particulares para este tipo de apoio. Espero que ao longo deste processo de promoção e de estreia do filme consigamos ter essa conversa em vários contextos, porque foi realmente especial, inovador e um bocado incompreensível como é que não teve continuidade e como é que esse tipo de experiência não criou uma espécie de hábito da sociedade. Era um projeto em que eram admitidos casais, e até eram admitidas pessoas com animais.

Era um projeto que colocava as pessoas no centro. Ou seja, em vez de uma pessoa em situação de sem-abrigo, que se encontra numa enorme fragilidade, com grandes dificuldades e pouca autonomia, sendo constantemente obrigada a ir ao encontro das respostas que lhe são apresentadas, este projeto fez exatamente o contrário. Em vez de exigir que a pessoa tivesse conhecimento das respostas disponíveis, soubesse como cada uma delas funcionava e estivesse em constante movimento, o projeto reuniu, no pavilhão, as várias respostas existentes. As pessoas estavam ali e tinham contacto direto com os diferentes programas.

Era uma visão profundamente humanista desta situação, que depois desapareceu. Desapareceu, não porque deixou de ser necessária, e esse é o drama. Já se sabia que a ocupação daquele espaço era temporária e que, posteriormente, ali ficaria um projeto desportivo. Não é isso que está em causa. O que realmente se perdeu foram os princípios do projeto, as suas linhas estruturais, que não foram levadas adiante.

Hoje temos mais pessoas em situações sem abrigo do que tínhamos naquele momento. Portanto ... terminou não porque deixou de ser necessário, mas porque deixou de haver interesse, vontade política para que ele continuasse. A Teresa Bispo costuma dizer que tudo isto são decisões políticas, como é que se lida, como é que se gera estas situações. É muito curioso porque no filme há uma técnica que explica isso numa assembleia, em que uma pessoa em situação de sem-abrigo sai mais caro de estar num centro de reabilitação.

Agora, de forma pertinente, gostaria de saber se me podem falar sobre a questão da distribuição, que tem sido, aliás, tema de uma conversa recorrente nos últimos dias nos círculos cinéfilos. A Terratreme funciona quase como uma distribuidora independente também. Queria perceber os desafios que enfrentam na distribuição dos vossos filmes, porque, há umas semanas, estreou um filme português distribuído por uma grande distribuidora, mas que, segundo o ICA, teve apenas 70 espectadores e já não está em exibição nas salas. Em comparação com os filmes que vocês distribuem, que fazem muito mais espectadores (e vida em sala), sendo uma distribuidora pequena. Gostava de saber se estão presentes nesta questão da distribuição dos filmes e como é o desafio de ser uma distribuidora.

Nós tornámo-nos uma produtora que também faz o trabalho de distribuição dos nossos filmes, e já fizemos um ou outro filme que não poderia ser produzido por nós, um pouco... empurrados para essa função. Ou seja, não nascemos como distribuidores. No entanto, isso surge de um conjunto de constatações e uma delas tem a ver com a precariedade do circuito de distribuição em Portugal. Existe um circuito de distribuição, mas ele é bastante limitado: há dois grandes operadores, algumas, muito poucas, salas independentes, e depois um circuito considerável de cineclubes e outras estruturas que fazem programação de cinema. Essas estruturas mostram filmes, mas não atuam como uma sala de cinema comercial, porque não mantêm os filmes em exibição durante uma semana, que é um critério obrigatório para que os estúdios de cinema considerem a distribuição de um filme. O que temos é uma realidade diferente.

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Campo (Tiago Hespanha, 2019)

No caso dos filmes que fazemos, ou conseguíamos que fossem distribuídos por um dos operadores — o que é extremamente difícil, também devido ao tipo de cinema que fazemos, gerando um desencontro — ou desistíamos de os distribuir. Como o objetivo de fazer filmes é mostrá-los, e só faz sentido se forem vistos, decidimos começar a tentar, por nós próprios, criar essa rede. Queremos construir as relações necessárias para fazer um filme circular, criando um circuito o mais abrangente possível, embora cada filme tenha a sua própria especificidade.

O que temos vindo a observar ao longo destes 15 anos em que estamos na produção de filmes, desde o início, é que realmente há cada vez menos espectadores nas salas comerciais. Mas é um erro pensar que não há público para estes filmes, porque, quando vamos aos cineclubes, aos cineteatros, a uma série de estruturas que fazem programação de cinema, vemos que as sessões são bastante compostas. O problema é que é difícil pedir a um cineclube, seja na cidade ou no interior, para exibir um filme durante uma semana inteira.

Outro ponto é que não há público suficiente para encher uma sala durante seis dias seguidos, portanto... Enfim, tentar encaixar este tipo de cinema num modelo de distribuição importado, que é um modelo comercial baseado numa série de características que todos acabámos por perceber que não funcionam, não é viável. Portanto, andamos sempre a tentar lidar com esta realidade.

Para nós, é extremamente importante estrear os filmes em sala, em cinemas, porque fazemos filmes para o cinema. É muito pouco gratificante mostrar um filme sem as condições adequadas: sem uma projeção de qualidade, sem um bom som, sem a presença das pessoas. Por isso, é crucial conseguirmos exibir os filmes nas salas de cinema. E é igualmente importante o que estamos a fazer agora: a partir do momento em que conseguimos estrear um filme, isso abre a possibilidade de os meios de comunicação darem visibilidade ao filme. Isso é essencial para que o filme seja conhecido e para que as pessoas se desloquem às salas para o ver.