"A Bíblia foi o primeiro Avengers da História", falando com Gianni Zanasi, realizador de "Troppa Grazia"
Gianni Zanasi dirigindo Alba Rohrwacher e Hadas Yaron em "Troppa grazia" / "Lúcia Cheia de Graça" (2018)
“Lúcia Cheia de Graça” (Troppa grazia”) poderia facilmente ser uma comédia ou um filme de fé à moda norte-americana, mas Gianni Zanasi trabalhou como uma tragicomédia existencial de uma topógrafa que, mesmo não acreditando, começa a ver a Nossa Senhora. Uma obra que reúne os mais variados e reconhecíveis elementos bíblicos em prol de um conto universal sobre a busca da verdade e da ética, esta, subvalorizada nos dias de hoje.
Conversei com Zanasi durante a sua vinda à 12ª Festa do Cinema Italiano em Lisboa. O realizador, sempre bem humorado, falou sobre a (não) crença da religião e a importância desta numa sociedade cada vez mais despreocupada.
Esta é a sua primeira vez em Lisboa?
Sim.
E como está a ser a sua estadia?
De facto, está a correr bem. Aliás, fiquei curioso com um pormenor desta cidade – vocês têm esquilos. De início julgava que fossem ratazanas, grandes por sinal. Nunca tinha visto esquilos na minha vida [risos].
Há sempre uma primeira vez [risos]. Em relação ao filme "Lúcia Cheia de Graça", como surgiu a sua ideia?
A ideia surgiu sozinha. Tive uma “aparição”, quer dizer, imaginei uma cena em que a Nossa Senhora aparecia a esta personagem, Lúcia. Mas encarei aquela imagem, algo mais do que uma simples aparição, uma encarnação de alma. Lúcia é uma pessoa real, passando por uma fase difícil da sua vida. Uma mulher que, chegando ao estado adulto, esqueceu a diferença entre viver e sobreviver. São duas coisas bastante distintas. Ela ficou tão presa ao seu quotidiano que se esqueceu de sentir o que está além disso. E nessa crise existencial, ela enfrentará as suas próprias dificuldades tendo como impulso algo impossível, o aparecimento de Nossa Senhora.
E quanto à escolha de Alba Rohrwacher? Ela foi a sua primeira escolha para o papel de Lucia? Houve casting?
O filme poderia ser muitas coisas, uma delas era uma brilhante sitcom. Mas acima de tudo queria causar uma sensação muito forte no espectador para que este questionasse: “e se isto me acontecesse?”. E por isso queria um ator que vivesse esta situação de um modo muito verdadeiro. Tendo em conta essas capacidades, a Alba foi a única atriz que tinha em mente para o papel de Lúcia. Aliás, num encontro com ela afirmei que só iria fazer este filme se ela aceitasse o papel.
Achei uma decisão, de certo modo, bastante ousada de colocar Hadas Yaron, estrela de muito cinema judaico, como “Fill the Void” ou “Félix et Meira”, como Nossa Senhora.
Escolhi a Nossa Senhora não pela religião, nem pelas ligações, mas pela qualidade da atriz. Vi a Hadas na “Fill the Void” e desde então achei-a perfeita para o papel. Porque da mesma forma que Alba, Hadas era uma atriz capaz de trazer veracidade às emoções. Era isso que pretendia. O curioso é que durante a rodagem, ela foi discretamente me perguntar: “Gianni, quem é a Nossa Senhora?” [risos].
E o facto dela não saber quem era a Nossa Senhora, tornou-se um detalhe muito importante para a construção desta personificação. É normal este desconhecimento, visto que a figura da Nossa Senhora não surge na religião hebraica, porém, esta situação foi importante para trazer uma abordagem mais livre da “personagem”, e não apenas restringindo-a um símbolo religioso.
E como explicou a ela quem era a Nossa Senhora? Fiquei curioso [risos].
Tecnicamente, é a Mãe de Deus. Mas também … tecnicamente … não sabe bem quem é o pai. Porém, o marido dela, José, aceita a situação. Por isso, é uma família bem moderna, mesmo sendo antiga, e muito humana.
A reação dela?
“Percebi.” [risos]. Hadas Yaron vem de um sítio bem especial, que é Telavive, Israel, o qual sente na pele o conflito religioso. E por isso, ela despreza qualquer forma de extremismo religioso. Todavia, ela percebeu que a figura que lhe propunha poderia ser transcendente da somente doutrina religiosa.
Deixe-me perguntar algo. Gianni, é um homem religioso?
Não. Não acredito em Deus. Respeito quem tem crença, mas simplesmente não acredito. Para muitas pessoas, tal faz uma certa espécie. Eu tenho uma amiga-atriz que contou uma história da sua infância, em que a sua mãe descobriu que ela não acreditava em Deus, sendo que esta deu-lhe um sermão, achando impossível existirem pessoas sem crença. A minha amiga respondeu: “Mãe, eu acredito em Deus. Eu acredito no Al Pacino“. [risos]
E como uma pessoa não religiosa, como é para si a importância da religião nas questões morais?
Penso que a religião é uma espécie de conto. A Bíblia foi o primeiro “Avengers” da História, e teve um discreto sucesso. Pessoalmente creio que a força da Religião está no poder da história, e as figuras religiosas que temos desde a nossa infância têm um potencial, e esse potencial é o que leva a história que estas representam. E a figura da Nossa Senhora aborda questões que são muito fortes e muito relacionadas com o quotidiano. Isso coloca várias questões, quer aos religiosos, quer aos laicos. (…) Hoje, com a vida que levamos, na qual estamos constantemente distraídos da nossa própria existência, já não temos mais em consideração os mistério da vida e da morte. E também um discurso de verdade. No filme, a Nossa Senhora traz um discurso de verdade.
Imagino que hoje, se a Nossa Senhora aparecesse diante de nós com um recado de extrema importância, éramos capazes de ignorá-la em prol de uma partilha de Facebook.
Costuma-se dizer que numa segunda vinda de Jesus Cristo, ele seria novamente crucificado, tendo em conta o Mundo que hoje vivemos.
Acredito que na situação atual de Itália, se Jesus Cristo regressasse não conseguiria sequer entrar no país. [risos]
Julgo que se "Lúcia Cheia de Graça" fosse produzido nos EUA, seria um “faith based movie” (filme de fé). Aliás, quando a Lúcia começa a ver a Nossa Senhora recorre a um psiquiatra, e nunca a um padre ou exorcista.
Sim, tentei salientar, que apesar dos elementos, ‘Lucia’ não é um filme religioso. É um filme sobre a procura da verdade, qual seja a forma.
E como reagiria se o filme fosse vendido como um filme de fé?
Não sei bem como reagiria. Seria, de certo, uma desonestidade se isso fosse feito.
Em relação aos debates de Cinema vs Streaming, o que tem a acrescentar?
Conheço um sitio belo, que guarda memórias de um século de História. Esse lugar chama-se Cinema. E o mais próximo disso são os nossos sonhos. Porém, tudo muda, nada é imutável. E não seremos nós a colocar-nos no meio de uma mudança tecnológica ou simplesmente das nossas vidas e da forma de ver audiovisual. Mas também acredito que teremos sempre necessidade de um refúgio escuro ornamentado por imagens gigantes, das quais não conseguimos esquecer: uma sala de Cinema.
E se a Netflix propusesse produzir o seu filme?
Depende. Acredito que daqui a algum tempo os filmes da Netflix terão estreias simultâneas, na plataforma de streaming e em sala de cinema. Será uma mudança das suas políticas. Mas a diferença não está na Netflix, nem em outros serviços. Está no poder que as histórias possuem e que merecem ser contadas em qualquer ecrã. Até porque, quando tinha 10 anos, alguns dos filmes que marcaram a minha vida, vi na TV.
Novos projetos?
Estou a trabalhar num novo projeto, mas sou pior que as mulheres grávidas, e como ando nisto há 3 meses, prefiro não dizer nada.