A beleza é uma mera substância venérea
The one and only thing you cannot forget, You are One.”
Em "The Substance", há uma obsessão ostensiva pela sua mensagem, refletida numa estética exagerada, barulhenta, constantemente em choque e satiricamente glamourosa. Estreado no último Festival de Cannes, em Competição, o filme parece ter sido abençoado pelo sucesso de “Titane” de Julia Ducournau, galardoado com a Palma de Ouro em 2021, que abriu caminho para o subgénero do “body horror” no tradicional certame. Assim, "The Substance" brinca com corpos, próteses e metamorfoses, tudo à mercê de um elixir da juventude num cenário hollywoodiano onde a lei não é do mais forte, e sim a do mais "belo". Coralie Fargeat (sete anos após “Revenge”, uma espécie de "I Spit On Your Grave" feminista) encena o trágico canto do cisne de muitas estrelas de Hollywood, que não só têm de lidar com o envelhecimento, mas também com o biotopo de uma indústria que rejeita a ordem natural. É uma sucessão de fenómenos e através de fenómenos, ingrato, cruéis e trocistas, onde Hollywood, a fábrica de sonhos que num estalar de dedos vira comboio-fantasma, reservando-se apenas para os mais experientes, sem equações infalíveis.
Demi Moore, "regressada" dos mortos — ela nunca esteve nesse reino, apenas orientada em produções mais … digamos, discretas — é o exemplo perfeito de uma “abandonada” pela indústria que a agraciou em tempos e aqui, na pele de Elizabeth Sparks, uma antiga estrela, tanto do cinema como das passarelas, o esquecimento gradual está alinhado com o seu inglório envelhecimento, o que a leva a ser descartada por produtores, “cães babados” em encontrar uma nova ninfeta. Sparks encontra numa empresa misteriosa, "The Substance", a solução para os seus problemas: uma injeção que reativa as suas células e cria um novo "eu", literalmente, um corpo jovem e fresco que se alterna com o antigo a cada sete dias. Claro, há um contrato com procedimentos rigorosos a seguir, mas, como bem sabemos em tradição fílmica, a violação de tais acordos traz sempre consequências. Uma Dorian Gray de maiôs.
"The Substance" é, no papel, inventivo o suficiente para justificar a sua exploração ”body horror”, deveras gritante, mas na prática concentra-se numa sobre-literalidade ao denunciar os "agressores", ou seja, os homens, todos sem exceção ridicularizados, sejam na sua caracterização de paródias-em-forma-de-gente, seja na decisão de filmá-los, na repugnância sonora gerada pelos seus maneirismos, quer pelos planos angulares com que centra Dennis Quaid, produtor ambicioso e vampiresco de nome Harvey (sim, percebemos a “referência” só pelo carácter, não precisávamos de especificar o “alvo”). Este exagero na construção dos antagonistas jura ser tendência contemporânea, especialmente no que toca à crítica ao Poder patriarcal e aos super-ricos em tantos estratagemas cinematográficos aí cometidos (“Triangle of Sadness”, “The Palace”), por outras palavras, há um certo medo em lidar com estas críticas e o caminho da satirização obtusa é uma amenização, mesmo que violenta só que nunca aguçada, a esse revanchismo. Contudo, a deformação humana destes rastejantes abre caminho para a deformação física que as protagonistas (Demi Moore e o seu alter-ego rejuvenescido Margaret Qualley) irão sofrer como parte da traição do trato.
Fargeat brinca com géneros, recarrega a fundo num terceiro ato grotesco, hiperbólico, desfaz todas as rarefeitas subtilezas do seu subtexto, deixa-se ir, em queda livre, ao lúdico e ao gratuito do seu lado mais trash, entre Tromas a Peter Jacksons de “verdes anos”, de Lovecraft a um piscar de olhos ao muito ignorado “The Society” de Brian Yuzna, com pós de prilimpimpim à simetria cénica de Stanley Kubrick [“Shining” grita em todos os corredores] até mesmo “Carrie” de De Palma. As referências estão lá como uma loja de guloseimas aos salivados do género. É uma orgia. Mas antes de ela acontecer, é a estética do imediato, do impressionável, como Nicolas Winding Refn recitou no seu “The Neon Demon” (desnutrido em dietas de neons, convém diferenciar).
É um objeto frankensteiniano, com Demi Moore no brilho e na sujidade, mas estampada num filme com mais vontade de ser algo, que não sabe ao certo do que é, vergando pelo fácil, enquanto cinema, enquanto discurso.