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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A beleza é uma mera substância venérea

Hugo Gomes, 14.09.24

The Substance - HERO.jpg

The one and only thing you cannot forget, You are One.

Em "The Substance", há uma obsessão ostensiva pela sua mensagem, refletida numa estética exagerada, barulhenta, constantemente em choque e satiricamente glamourosa. Estreado no último Festival de Cannes, em Competição, o filme parece ter sido abençoado pelo sucesso de “Titane” de Julia Ducournau, galardoado com a Palma de Ouro em 2021, que abriu caminho para o subgénero do “body horror” no tradicional certame. Assim, "The Substance" brinca com corpos, próteses e metamorfoses, tudo à mercê de um elixir da juventude num cenário hollywoodiano onde a lei não é do mais forte, e sim a do mais "belo". Coralie Fargeat (sete anos após “Revenge”, uma espécie de "I Spit On Your Grave" feminista) encena o trágico canto do cisne de muitas estrelas de Hollywood, que não só têm de lidar com o envelhecimento, mas também com o biotopo de uma indústria que rejeita a ordem natural.  É uma sucessão de fenómenos e através de fenómenos, ingrato, cruéis e trocistas, onde Hollywood, a fábrica de sonhos que num estalar de dedos vira comboio-fantasma, reservando-se apenas para os mais experientes, sem equações infalíveis.

Demi Moore, "regressada" dos mortos — ela nunca esteve nesse reino, apenas orientada em produções mais  … digamos, discretas — é o exemplo perfeito de uma “abandonada” pela indústria que a agraciou em tempos e aqui, na pele de Elizabeth Sparks, uma antiga estrela, tanto do cinema como das passarelas, o esquecimento gradual está alinhado com o seu inglório envelhecimento, o que a leva a ser descartada por produtores, “cães babados” em encontrar uma nova ninfeta. Sparks encontra numa empresa misteriosa, "The Substance", a solução para os seus problemas: uma injeção que reativa as suas células e cria um novo "eu", literalmente, um corpo jovem e fresco que se alterna com o antigo a cada sete dias. Claro, há um contrato com procedimentos rigorosos a seguir, mas, como bem sabemos em tradição fílmica, a violação de tais acordos traz sempre consequências. Uma Dorian Gray de maiôs

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"The Substance" é, no papel, inventivo o suficiente para justificar a sua exploração ”body horror”, deveras gritante, mas na prática concentra-se numa sobre-literalidade ao denunciar os "agressores", ou seja, os homens, todos sem exceção ridicularizados, sejam na sua caracterização de paródias-em-forma-de-gente, seja na decisão de filmá-los, na repugnância sonora gerada pelos seus maneirismos, quer pelos planos angulares com que centra Dennis Quaid, produtor ambicioso e vampiresco de nome Harvey (sim, percebemos a “referência” só pelo carácter, não precisávamos de especificar o “alvo”).  Este exagero na construção dos antagonistas jura ser tendência contemporânea, especialmente no que toca à crítica ao Poder patriarcal e aos super-ricos em tantos estratagemas cinematográficos aí cometidos (“Triangle of Sadness”, “The Palace), por outras palavras, há um certo medo em lidar com estas críticas e o caminho da satirização obtusa é uma amenização, mesmo que violenta só que nunca aguçada, a esse revanchismo. Contudo, a deformação humana destes rastejantes abre caminho para a deformação física que as protagonistas (Demi Moore e o seu alter-ego rejuvenescido Margaret Qualley) irão sofrer como parte da traição do trato.

Fargeat brinca com géneros, recarrega a fundo num terceiro ato grotesco, hiperbólico, desfaz todas as rarefeitas subtilezas do seu subtexto, deixa-se ir, em queda livre, ao lúdico e ao gratuito do seu lado mais trash, entre Tromas a Peter Jacksons de “verdes anos”, de Lovecraft a um piscar de olhos ao muito ignorado “The Society” de Brian Yuzna, com pós de prilimpimpim à simetria cénica de Stanley Kubrick [“Shining” grita em todos os corredores] até mesmo “Carrie” de De Palma. As referências estão lá como uma loja de guloseimas aos salivados do género. É uma orgia. Mas antes de ela acontecer, é a estética do imediato, do impressionável, como Nicolas Winding Refn recitou no seu “The Neon Demon” (desnutrido em dietas de neons, convém diferenciar). 

É um objeto frankensteiniano, com Demi Moore no brilho e na sujidade, mas estampada num filme com mais vontade de ser algo, que não sabe ao certo do que é, vergando pelo fácil, enquanto cinema, enquanto discurso.