A abstração do Mal
Entramos em 2024 com grande expectativa para conferir aquilo que afinal “esconde” Jerry Lewis em "The Day the Clown Cried" [1972], uma produção sobre um palhaço aprisionado num campo de concentração nazi, encarregado de "entreter" crianças a caminho das câmaras de gás. Segundo consta, em relatos que transformaram-se em lendas para lá de Hollywood, Lewis sentiu-se incomodado com o material e decidiu "engavetá-lo" até não ser mais visualizado até o ano de 2024.
Esta trivia não só figura como uma lista de desejos para um dos filme mais antecipado do ano, mas também traça um paralelismo com o Holocausto, que, em termos cinematográficos, se metamorfoseou e distanciou do seu tabu de imagens proibidas. Em certo dia, Alfred Hitchcock, habituado ao macabro e à perversidade, decidiu igualmente "ocultar" tais imagens - essas, as primeiras captadas pelas tropas aliadas no campo de Bergen-Belsen o qual estava encarregado de montar sob a forma de panfleto anti-guerra - alegando que só poderiam ser usadas enquanto armas morais para impedir a repetição de tais atrocidades. O trabalho montado em questão, assegurado pela no Imperial War Museum, apenas seria revelado ao Mundo em 2014, no Festival de Berlim (em Portugal, pelo Doclisboa), sob o título de “German Concentration Camps Factual Survey”. Alain Resnais aproveitou essas imagens para inseri-las numa categoria à parte, de "não-imagens", uma atitude de não-embelezamento e de nem-atribuição a representações para além daquelas, fantasmagoricamente exercidas, com o uso da nossa memória, expressando as preocupações deixadas pelo filósofo Theodor W. Adorno, que declarou Auschwitz como o fim da poesia na terra.
Até Hollywood negava essas mesmas imagens, com os horrores fora de cena exibidos como uma epifania ética em "The Stranger" (Orson Welles, 1946), ou Anne Frank filmado por George Stevens (1959) capturada e prosseguida por um fúnebre The End; apenas as versões posteriores ficcionalizaram os seus últimos dias no campo de concentração. Portanto, as ficções nesses malditos terrenos abriram a porta para o abjeto, conforme verificado por Jacques Rivette no drama de guerra "Kapò" (Giles Pontecorvo, 1960) – uma romantização do Holocausto que alguns enfatizaram, enquanto outros o catalogaram como filme maldito. Ainda hoje, muitos cinéfilos recusam-se a visualizá-lo, mas o mal já estava feito, a ficcionalização entrou pelos portões desses hectares de dor e sofrimento.
Com "The Schindler’s List" a tornar-se material de Óscar, o território cinematográfico banalizou-se; os horrores desses milhões converteram-se em circos de lágrimas e sangue à medida que os anos prosseguiram, destacando um gradual afastamento desses fatídicos períodos e uma crescente abstração. Hoje em dia, é fácil encontrar Auschwitz, em alturas uma palavra proibida e carregada de mau presságios, num rótulo de banalização temporal, os romances literários, muito deles fabricados, que sobre-aproveitam a memória, espaço e época como bestselling, ou o campo em si, como atração turística fervorosa nestas constantes corridas ao acesso guloso e apatias virtuais [espreitar “Austerlitz” de Sergei Loznitsa]. Portanto, fica-se com a questão, como (re)filmar o Holocausto, mais precisamente neste novo século?
Talvez seja por este dilema moral, ético e estético (os três podem muito bem associar-se) que destacamos "The Zone of Interest" de Jonathan Glazer, que, com livre base no livro de Martin Amis (1949 - 2023), se desdobra como filme-conceito. No entanto, e sob este termo, deixo-vos outra questão: o cinema de Glazer não é todo ele um cinema de conceito? Assinante de obras favoritas como "Birth" (2004) ou "Under the Skin" (2013), ele é um dos discípulos tardios do perfeccionismo e da estrutura kubrickiana, e é através dele que vislumbramos algo que se assemelha a uma instalação, uma peça performativa de galeria. Contudo, é na sua abstração que o filme se apresenta a este Novo Mundo. Aqui, lidando com a família de um oficial nazi, mais concretamente a de Rudolph Höss (Christian Friedel, "Amour Fou"), que divide os seus dias como qualquer outra família de alto estatuto, e cujos interesses são sobretudo da preocupação da sua comunidade familiar. Uma "agradável" moradia, cumprimentos dos altos comandos da SS, se não fosse o facto de estarmos perante o comandante do campo de concentração de Auschwitz, um dos responsáveis pela perversidade e atrocidades ali cometidas, a sua capacidade de experimentação na arte do extermínio é largamente elogiada pelo regime.
A juntar a esta "comunidade", temos a esposa (Sandra Hüller), comprometida como a "mulher de casa", cuidadora dedicada do seu imenso jardim, um reflexo do seu carinho especial. Por vezes, revelando mais amor à sua botânica caseira do que aos seus "rebentos", que pavoneia pelo seu pátio e estufas através de brincadeiras "faz-de-contas", colocando estes enfants num território fora da sua realidade. Afinal, a realidade é uma questão de perspetiva. Esta moradia, na qual passamos tempo em dramas conjugais ou a seguir o cão nas suas errantes caminhadas a um destino incógnito (como Godard havia decretado em "Adieu au Language" o desejo voyeurista de ser o cão, ou de ver através dos seus olhos: "Eu sou, Eu sigo"), situa-se à porta de Auschwitz. Apenas o muro separa esses dois mundos distintos, aparentemente desassociados.
Em "The Zone of Interest", nunca vemos o campo na sua totalidade, nem a "caixa de pandora" lá radicalizada; apenas parte da sua estrutura, maioritariamente ignorada pelo palco principal. Os horrores, esses, são relegados para um plano terciário, presenciam-se através do som que deles ruge e dos clarões que iluminam noites ensurdecedoras de agonia. Nós, espectadores, sabemos o que por lá se esconde, o que se manifesta, mas mesmo assim, é na companhia de Höss, na sua confidencial insónia, fumando pausadamente enquanto reflete nos seus dilemas, salienta-se carreiristas (com interação com o espaço familiar), e contempla a pirotecnia do outro lado do muro como quem observa pirilampos bailando ao redor de túmulos.
Tudo aqui é uma massa uniforme, a banalidade do mal a dar lugar ao mal banalizado, a abstração hoje tida nesta nossa contemporânea raivosa e tumultuosa. Hoje, com pés de barro, sentimos distantes os campos de concentração; por mais museológicos que se tornem, transfiguram-se em locais "instagráveis", em 'poisos' lunares para que qualquer indivíduo coloque ali a sua bandeira ("Eu estive aqui", assinala-se). Em parte, somos como aquela família, cuidamos da nossa vida, viramos costas ao que está a ser executado a metros dali. Não é ignorância, é indiferença. É a abstração da longinquidade da qual nos apropriamos como "pós-verdade".
Mica Levi, a colaboradora musical de Glazer (a sua partitura em "Under the Skin" é o que solidifica o filme, "change my mind"), mantém-se como maestro de um minimalismo animalesco, acompanhamento com a escuridão que ocasionalmente apodera da tela e nos 'agarra', sem nunca nos acolher verdadeiramente, até porque a distância, aquilo que tenho falado palradamente, é preservada através desses acordes. Estamos a penetrar num tempo de outras intenções, e por aí fora. O filme reivindica esse salto constantemente. Aquelas personagens são figuras de uma História morta, a romantização é apenas espectral, interagida com o nosso presente. Em certo ponto, parecem saber isso, dirigindo o seu olhar à escuridão com o videntismo dessa modernidade que não sonharam.
Embora "The Zone of Interest" permaneça como um filme fechado, às voltas na sua tumba, é uma experiência que vem iluminar o possível retrato do Holocausto no "agora". Portanto, é um diálogo connosco, nós, espectadores, testemunhas, ou melhor... cúmplices.