"Play Misty for Me"
Jessica Walter (1941-2021) em "Play Misty For Me" (Clint Eastwood, 1971)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Jessica Walter (1941-2021) em "Play Misty For Me" (Clint Eastwood, 1971)
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A tentação de reduzir Clint Eastwood a um “velho”, trazendo à memória o episódio da conversa com a cadeira vazia de Obama durante a campanha presidencial de 2012 ou os filmes de teor patriota que têm, sobretudo, conquistado uma facção mais conservadora e militarista, é um ato de pseudo-sobrancelharia intelectual. Mais que nunca, o veterano cineasta de 89 anos aborda a nossa atualidade, desafiando-nos a olhar com outros olhos não apenas as nossas jornadas morais, políticas e sociais. Eastwood é um homem disposto a dar o peito às balas pelos seus heróis americanos e a defendê-los contra as tiradas democratas e de um Mundo atento que se autocensura. Isto não serve para perdoar a falta de redenção que um filme como “American Sniper” ou a miopia da narrativa global de um “The 15:17 to Paris”, mas também não nos importamos de também servir de alvo perante aqueles que desejam encostá-lo a um canto pelo seu posicionamento político.
Em “Richard Jewell”, o cineasta presta-se ao mesmo dispositivo utilizado num “Flags of our Fathers” ou “Sully” para desconstruir a imagem heroica e lavá-la perante a turbulenta relação entre esse arquétipo e uma sociedade desconfiada, inquisidora e acusadora. A história e resistência moral de Richard Jewell dialoga diretamente com a nossa atualidade, mas sem a imperiosa urgência que é hoje requisitada. Basta ver aquilo que compõe a figura, o mesmo que levou o FBI a catalogá-lo como o suspeito número 1 de um atentado terrorista: aquele perfil correspondente a um “loner”. Interpretado por Paul Walter Hauser (poderá ser uma das surpresas nas nomeações aos Óscares, aposta nossa), o “herói” é tudo aquilo que se afasta da imagem tradicionalmente heroica e, ao mesmo tempo, das solicitações desta “Nova Hollywood”, e perversamente, consolida os elementos estereótipos de um "trumpista": branco, amante de armas, militarista, patriota e mais preocupado em provar a sua heterossexualidade do que a sua inocência.
Contra os princípios hoje estabelecidos (e porque não generalizados), ele é o mártir e, sem escapatória, a testemunha de um facto real que Eastwood invoca para abordar os tempos em que a exigência de sangue se sobrepõe aos tempos da Justiça. É aqui que entramos num território mais cinzento e minado do filme, com a personagem de Olivia Wilde, uma jornalista que consegue o "furo" que automaticamente se converte na crucificação de Jewell: Eastwood transforma-a num exemplo, revestindo-a de uma má índole questionável nos tempos do #MeToo e pouca vista no cinema de hoje.
A certo ponto, existe um diálogo de confrontação entre o advogado de Jewell (Sam Rockwell, a caminho da terceira nomeação consecutiva para as estatuetas?) e a repórter “metediça” sobre o seu papel neste processo de "inquisição". Tendo em conta o contexto atual, Eastwood não é o "velho" que discursa para fantasmas, mas alguém a fazer um sermão camuflado para os "media" e a sua constante manipulação, não fosse ele um republicano assumido que vê cada vez mais os meios de comunicação a tomar lados politizados e ideológicos. Mesmo assim, a crítica é de pavio curto: fica a sensação de que Eastwood extrai a moralidade deste caso para castrar a dimensão que o jornalismo tem, o do “Quarto Poder”, que acusa de ser corrompido pelas amoralidades capitalistas.
Para além de tudo isto, nesta sua demanda pelo resgate de um incompreendido e difamado herói norte-americano, “Richard Jewell” mostra a intenção de manter vivo no cinema um classicismo técnico e narrativo, apoiado intencionalmente nas emoções destas personagens e os efeitos gravitacionais do enredo. Pelo meio, há deliciosos momentos de execução que provam que o realizador está longe do selo de “velhote”, desde o entusiasmo com que filma a dança da macarena (de forma a localizar a ação nos anos 90) ou a montagem paralela e retalhada com que coloca, lado-a-lado, a investigação e o passo de um maratonista.
Concorde-se ou não se concorde com o que se vê, um novo filme de Eastwood é, e sempre será, uma celebração cinematográfica.
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Antes de avançar para este regresso de Clint Eastwood à sua díptica tarefa (direção e representação), queria-me deslocar a uma das teses de Slavoj Zizek, que também integrou o documentário “The Pervert’s Guide to Ideology” (Sophie Fiennes, 2012). Aí, o filósofo exemplifica a ideologia por detrás da franquia Starbucks. O que ele indica é que ao comprar café nestes balcões, estamos também a comprar a sua ideologia, isto porque estes produtos mais caros que os dos concorrentes vêm com a promessa de solidariedade. Por exemplo, uma percentagem desse valor reverte a uma causa (seja ela qual for, desde a alimentação de crianças africanas a salvar uma floresta tropical). Essa engenhosidade torna a que um ato de puro consumismo (da nossa parte) não ostenta qualquer indício de culpa, porque o consumidor é abrangido na ideologia de que na aquisição destes cafés está a contribuir para a ajuda de algo – abstraindo-se com isto do pensamento consumista no ato que pratica.
Voltando a “The Mule” (“Correio da Droga”), a história de um florista nonagenário, Earl Stone, que aceita trabalhar para um cartel de droga como transportador (aquilo que nos EUA é designado de “mule”), é possivelmente uma derivação dessa tal teoria do branqueamento consumista, porque em certo caso, a obra de Clint Eastwood joga com a ambiguidade moral. Ou seja, o bem gerado por ilícito. Aqui o protagonista contribui para a comunidade em que se insere (seja por exemplo, a associação de veteranos), ou na rendição dos seus pecados passados (redimir o tempo perdido com a sua família), tudo isto com o dinheiro conquistado através destas transações ilegais. Earl tem o conhecimento dos seus atos e é nisso que o pensamento de Zizek encaixa na perfeição, só que longe das demandas de expansão capitalista, o que está em causa é a ética, a sua natureza e compostura.
"The Mule" entra nesse mundo em que a personagem principal cai no “goto” do espectador sem nunca ceder aos caminhos da martirologia pura, o final é um exemplo perfeito desse engodo, onde a culpa de todo este jogo de enfoques morais encontra a sua pátria (cedendo depois a um belíssimo travelling enquanto os créditos tomam posição no ecrã). Contudo, antes disso, não é só a droga que faz jus a essa teia de valores, alguns que até desafiam a intenção algo “Trumpista” que a América vive e das últimas glorificações aos “heróis” americanos de Eastwood. Earl convive com os seus traficantes, come, bebe e interage com estes de um jeito quase castiço, o que drena toda uma composição a um território de terceira-idade amistosa. E por momentos, até os antagonistas demonstram essa sensibilidade humanista, cedendo também às complexidades dos tons cinzentos.
Pois, é que Eastwood como “espião duplo” (atrás e à frente das câmaras) comporta-se como um cineasta diferente, pregando os bons valores da família ao mesmo tempo que procura uma redenção ao seu conservacionismo, quer ideológico, quer até cinematográfico (o realizador é um grandes herdeiros e sobreviventes do classicismo hollywoodiano). “The Mule” enviusa diretamente com os anteriores “Gran Torino” (a redenção), “Absolute Power” (a família), “The Bridges of Madison County” (a validade do romance) e até com o infame “Space Cowboys” (pós-envelhecimento), no sentido em que quebra o formalismo desse academismo genético tão próprio de Eastwood e procura uma sensibilidade doutrinal nos, e fora, dos seus planos.
Sim, é um cinema de velhos (no cinema protagonizado por Eastwood existe também uma autorreflexão que acompanha o estado do Mundo, neste caso a tecnologia e a sua dependência como perpétua menção), diversas vezes direcionado aos cinéfilos de outrora, mas na realidade encontramos aqui a jovialidade que muitos não possuem. Para isso, aproprio-me de uma das frases, saídas da terna Dianne Wiest, para representar a relação deste veterano com a cinefilia, e vice-versa: “You are the love of my life, and the pain of my life.”
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Um dos episódios mais impressionantes da História da Aviação aconteceu em 2009, quando o piloto norte-americano - Chesley "Sully" Sullenberger - concretizou com êxito uma arriscada aterragem no Rio Hudson. Estamos a falar do US Airways 1549, um avião comercial que trazia a bordo 155 almas, porém, devido ao heróico feito de "Sully" que atuou no momento certo, nenhuma delas se perdeu. Uma "boa notícia em Nova Iorque, principalmente com aviões", como é referido a certo momento nestas adaptação de Clint Eastwood, tem recebido um extremo frenesim mediático. "Sully" foi automaticamente elevado a estatuto de herói, tendo até sido nomeado pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes.
Mas passando para o filme propriamente dito, Clint Eastwood remexe novamente na História norte-americana para analisar um dos seus heróis recentes. Contudo, este “Sully” está mais próximo de “Flags of our Fathers” (“A Bandeira dos Nossos Pais”) do que o equívoco de “American Sniper” (continuo a acreditar que o filme não foi fruto de Eastwood), o qual procura uma definição concreta de heroísmo, posicionando a câmara para os homens comuns que os "imortalizam". Enquanto que no filme de 2006, o retrato dos soldados que içaram a bandeira dos EUA na ilha de Iwo Jima, os ditos "heróis" questionavam-se perante uma sociedade sedenta pelo estatuto, em "Sully" é a própria sociedade que questiona a natureza do nosso herói, sendo este o conflito que prossegue toda a narrativa, desaguando no limiar existencialista do protagonista.
Tal como sucedera com o fracassado “Flight”, de Robert Zemeckis, é a busca dos factos e responsabilidade acima de qualquer fator humano, mas “Sully” apresenta-nos um "punhado" dessa última dose com Tom Hanks a funcionar como um ator "capriano", a erguer toda a trama em cima dos seus ombros mesmo que para isso torne descartável todo o conjunto de personagens secundárias. No fim percebe-se, que os veios analistas não chegam a ser profundos, as marcas não nos levam ao seu extremo e o classicismo moralista é a solução para uma dedicada homenagem.
Talvez tenha sido “American Sniper”, que fora o embate com um realizador anónimo, que fez com que “Sully” converter-se numa experiência acima da média, mesmo assim interiorizada no cinema norte-americano academista. Mas é Clint Eastwood que se encontra na batuta, quer que se ama, ou odeia, é esse fator humano que conta.
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