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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na Toca de Platão

Hugo Gomes, 10.07.24

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Astrakan 79 (2023)

Catarina Mourão, realizadora e documentarista cada vez mais citada após a aclamação de “A Toca do Lobo”, que - assumindo o tom de investigação, procurou o rasto memorialista do seu avô (Tomás de Figueiredo) - chega-nos, na presença de dois filmes estreados em modo pack promocional, como uma exímia artesã do espaço memória, esse a que o cinema português, nomeadamente na sua área documental, tem conquistado ou até mesmo colonizado através de ensaios e formatos inteiramente maleáveis, e outros nem tanto. O módulo tem encontrado sucesso entre o público resistente deste cinema tão nosso, a “culpa”, que não nasce nem morre solteira, teve como parte do cartório no passo, em jeito de um salto trazido, por Catarina Vasconcelos no seu “A Metamorfose dos Pássaros”, a busca da sua história enraizada num constante e inacabado exercício visual e artístico.

Com Mourão, nomeadamente com “A Toca do Lobo”, a elasticidade do seu artifício pouco sai do “arquivo”, das imagens encontradas e ali alinhadas ao serviço de eventuais interrogatórios, ora ternos, ora esclarecedores e, porque não, também eles crípticos. Daí se nota a sua bravura na descura, uma documentarista com voz, corpo e mente. Com estes dois trabalhos a tomar a sala de cinema como sua, distinguimos duas Catarinas Mourão no processo criativo, e no entanto, são diluídas numa só personalidade e num só método.

O primeiro (e com título que parece ter saído de uma música de Jorge Palma), “O Mar Enrola na Areia” (2019), soa-nos um poema visual de Mello Breyner, a ligação com o Mar presta vénia a essa despertada ligação, mas aparências iludem perante aquelas imagens vintage de convívios balneares em tempos salazaristas, apenas recortados por trechos, palavras, não escritas na areia, mas cujo papel nelas imprimidas higienicamente estabelecem um contacto, não só com o ambiente, como também com o arquivo ali amanhado e montado. É uma busca, como em “A Toca do Lobo”, de uma personagem que hoje vive enquanto lenda verbal. Trata-se do “homem do apito”, caminhante das praias do Estado Novo, de apito na boca e com uma relação ainda hoje por comprovar; há quem fale num sem-abrigo, ou num pedófilo, ou, embarcando na aura de mito urbano, numa espécie de “pai natal” do Verão, e, contudo, num papão. Os relatos de quem o viu ou de quem o presenciou, são esses intertítulos manuais com medo da chegada da próxima onda, eles estabelecem as diferentes visões quanto a esta figura inteiramente entregue a um folclore popular.

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O Mar Enrola na Areia (2019)

Mourão “capturou” 30 segundos da sua presença em antigas bobines, só isso, o restante dos seus quase 15 minutos de duração faz-se pela ondulação de uma poesia imagética, algo nostálgica, de rostos encantados pelo mar e dos seus estados de espírito. Do silêncio trazido por este falso-filme mudo, corresponde-nos cognitivamente, e há que jurar que a sonoridade do batimento das ondas, o vento que sopra dunas acima, dunas abaixo, integra esta composição. É como ouvir um búzio e imaginar …

Já a sua longa-metragem - “Astrakan 79” (2023, ingressado na Competição Nacional do Indielisboa desse ano) - também lidando com mitos enraizados na cultura popular portuguesa, é, formalmente, um atalho para o seu regressar (talvez nunca tenha saído) ao cinema de pesquisa, mas é nos entretantos, sem nunca dispensar esse lado de “descoberta” e de “clarificação”, que resulta numa espécie de reconstituição artística em conjunto com um ato de esvaziar um baú arquivista. Permanece como um ensaio memorialista, até à sua segunda metade, um filme que parte de uma ideia, de uma fabulação, das doutrinas impostas por uma família militante comunista ao seu filho, Martim Santa Rita, e que a sua eventual experiência na União Soviética, em 1979 [Astrakan para sermos exatos], o mergulha num clima de desilusão quanto à “utopia” que lhe fora vendida desde cedo. A sua vivência por lá, assim como o seu retorno a casa, são descritos como temas tabus, engavetados e fechados a sete chaves. Com o segundo tomo, adquirindo um intimismo imediato pela presença do protagonista, 40 anos depois, relatando o que sucedera, e mais que isso, as consequências que tal viagem e percepção tiveram no seu seio familiar. 

Astrakan 79” é, inversamente a “Toca do Lobo”, a perda do fascínio familiar, que com o descortinar do seu mistério percebemos o quão presas, por vezes, estão a essas crenças instituídas, mantendo-se, ditatorialmente, como lemas de união entre eles, e cuja “diferença”, seja ela adquirida de forma for, é ostracizada. Família é nesses termos um regime, “fascista”, “censuratório”, imperando uma só vontade e pensamento. É comunismo soviético, como poderia ser outra ideologia, é a diferença política que antagoniza, e por um lado é valorização da política enquanto cerne de tudo e de todos. Catarina Mourão faz a sua “Metamorfose dos Pássaros”, num encantamento em gradual ruína. Com o seu quê de performativo, e a sua vontade de ir a fundo nos segredos só nossos.

Cinema - Lazarus

Hugo Gomes, 04.07.24

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O Estranho Caso de Angélica (Manoel de Oliveira, 2008)

O cinema existe então para responder a um desejo: ver a vida passar à nossa frente, entendê-la melhor, e vivermos redobradamente. Não seriam as palavras de Oliveira as de uma optimista sobre uma arte cuja morte foi decretada várias vezes? Se o cinema dá vida a tudo o que morreu, como Angélica , a discussão sobre aquilo que traz às nossas vidas nunca encontrou um fim. Todos gostaríamos de poder viver para sempre - nem que seja por uma hora ou duas para sentirmos uma amostra da eternidade. Será essa a razão para continuarmos a ver filmes?

Francisco Valente em “Espelho Mágico: uma história do cinema” (editora Orfeu Negro)

À procura de Fernando Pessoa, enquanto se acha Manuel Guimarães: uma conversa com Leonor Areal

Hugo Gomes, 03.07.24

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Onde está o Pessoa? (2023)

Onde Está o Pessoa?” relembra, e bem relembrado, o jogo visual celebrizado mundialmente “Onde Está o Wally?”. Neste caso, trata-se de um ensaio audiovisual que se incorpora como um filme-documento sobre uma certa nata artística da capital portuguesa. Estamos em 1913, e à saída de um concerto que teve lugar no antigo Teatro da República, uma multidão apercebe-se que está a ser “espiada” por uma câmara do outro lado da rua. A reação desta, que vai desde o evidente desconforto, passando por brincadeiras, até ao pensamento de posterioridade, proporciona à estudiosa académica, realizadora e ensaísta Leonor Areal um delicioso jogo de “quem é quem?”, até que… zás… eis Fernando Pessoa!

Este loop de imagens de poucos minutos fez notícia por ser uma alegada captura do escritor de “A Mensagem” em movimento. Será mesmo ele, ou um sósia?

Leonor Areal conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre este projeto, que faz parte de uma multi-plataforma em homenagem ao poeta – o Arquivo Pessoa – sobrando tempo para abordar “países imaginados”, Manuel Guimarães e os Saltimbancos nunca concretizados.

Gostaria que começasse por falar sobre este projeto, o Arquivo Pessoa.

Este projeto começou há cerca de 30 anos, desde que a ideia surgiu. Depois, levou alguns anos para ser realizado em CD-ROM. Desenvolvi-o no meu mestrado em Comunicação Educacional Multimédia e que converti em CD-ROM em 1997. Consiste numa base de dados de toda a obra atribuída a Fernando Pessoa até àquela data, e numa outra vertente mais de iniciação para leigos e estudantes, que é uma antologia guiada que depois se transforma num percurso labiríntico. Portanto, tem muitas ligações, porque a obra de Pessoa é labiríntica. Em 2008, esse CD-ROM foi transposto para a internet e é o que hoje está no site Arquivo Pessoa Net e Multi-Pessoa Net.

Mas de onde vem esse fascínio por Pessoa?

Estudei Literatura na minha licenciatura e, portanto, conheci a obra de Fernando Pessoa através das aulas e desenvolvi um gosto por ele. Acho que é difícil não se sentir atraído e fascinado por Pessoa, porque a sua obra é tão vasta e complexa que todos nós encontramos nela algo que nos toca, não é? E pareceu-me que o hipertexto, que na altura estava a emergir, era um instrumento de organização das ideias, das imagens e do pensamento em rede que se adequava perfeitamente à obra de Fernando Pessoa. Naquela época, estávamos habituados aos livros com uma estrutura linear, que não podem ser de outra forma. 

Ele mesmo explica que as suas ideias surgem em associações permanentes e iniciam caminhos que depois não consegue terminar, porque desses caminhos nascem inúmeras ramificações. Por isso, ele nunca conseguia terminar as coisas, porque as suas ideias proliferavam imensamente. Assim, pareceu-me que essa maneira como Pessoa descrevia o seu pensamento e a sua obra fragmentária era, especificamente, adequada ao hipertexto.

Com o auxílio das possibilidades de pesquisa de uma base de dados, construí aquela parte mais didática também como hipertexto, em que temos percursos lineares, como os percursos guiados, quando se conta uma história ou se apresenta um conteúdo. Mas depois, esses percursos cruzam-se entre si, e as ligações cruzadas estão lá feitas, de maneira que podemos saltar de um percurso para outro através de uma associação informada, indo de um para outro e, provavelmente, a certa altura, já estamos perdidos no labirinto da obra de Pessoa. Assim, construí essa parte como um labirinto, criando todo o sistema em torno da vastidão da obra pessoana.

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Leonor Areal

Gosto do termo "pessoano". Não sei quanto a si, mas quando olho para a Pessoa, reconheço o seu inegável génio, mas há qualquer coisa de conspiratório no seu percurso, como estivesse dependente e “e se”. No filme do Edgar Pêra, "The Nothingness Club", logo no início, é-nos informado que Pessoa poderia ter ganho o prémio Nobel se não fosse a guerra. Portanto, lanço esta questão; acha que hoje, apesar de ser tão estudado e reconhecido, Pessoa continua, de certa forma, incompreendido?

Não acho que Fernando Pessoa seja incompreendido; pelo contrário, acho que ele é cada vez mais compreendido. Até porque essa maneira de pensar, essa dispersão em que ele vivia, essa multiplicidade, até os vários heterónimos que são egos ou alter-egos. Nós hoje lidamos com isso como algo quase inevitável, porque acedemos à internet, começamos num sítio, acabamos noutro, perdemos tempo e deixamos coisas inacabadas…

Como os avatares?

Ele tornou-se de tudo: mítico, um autor projetivo, ou seja, alguém em quem as pessoas projetam as suas próprias ideias e sentimentos, que nem sempre são dele, e até um ícone. Hoje em dia, vemos Fernando Pessoa em camisetas, em objetos decorativos, até em sabonetes. Eu acho que ele alcançou uma notoriedade tão grande. Mas, quando vi isso, pensei: "Isto é tão superficial. O que é que Fernando Pessoa tem a ver com sabonetes?" [risos]. É apenas uma tentativa de vender um produto usando a sua imagem, um desenho com o sujeito de óculos e bigode…

Fernando Pessoa desprendeu-se do seu imaginário literário, tornou-se numa atração e por sua vez uma figura ficcional. Há pouco referia o filme do Pêra, mas também fruto de duas metragens de João Botelho [“O Filme do Desassossego”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”], de Eugéne Green, para além dos inúmeras obras literárias como a do José Saramago [“O Ano da Morte de Ricardo Reis”] …

Simplificadamente: Óculos, bigode e chapéu, e por isso, vendem sabonetes aos turistas. Só para dizer que ele se tornou, de facto, quase um gadget caricato. Até há bandas desenhadas, algumas até bem interessantes e uma quantidade de literatura e filmes sobre ele. Aliás, há uma revista chamada Pessoa Plural, se não me engano, dedicada ao estudo de Fernando Pessoa no cinema. Penso que está disponível online, por curiosidade. O cinema português, em particular, tem uma grande ligação a Pessoa.

Ele está no cinema, na literatura, e há imensos autores que se inspiram nele. Além de Saramago que bem referiu, temos também o Antonio Tabucchi, que escreveu "Requiem".

Que também virou filme …

Sim, Alain Tanner adaptou para o cinema … E há muitos outros autores, no fundo, ele é uma referência …

Sim, mas falo não só dessa adaptação à sua figura como também se separou da sua pele de escritor para se tornar numa figura ficcional em domínio público [risos]. Não sei qual a banda desenhada que se refere mas recordo de uma em que Pessoa era um espião numa das suas vidas duplas [“A Vida Oculta de Fernando Pessoa”, de André F. Morgado e Alexandre Leoni].

Há outra obra engraçada, uma banda desenhada do Miguel Moreira e da Catarina Verdier. Pessoa dá origem a uma quantidade enorme de obras que o questionam, interpretam, que o leem. No cinema, ele tem sido interpretado por vários atores, mas inicialmente adquiriu um aspecto mais grave, pesado e sorumbático. De certo modo, isso é reforçado pelos comentários das pessoas, que perpetuam essa imagem mais austera de Pessoa. Mas isso também tem a ver com os retratos fotográficos da época. Curiosamente, naquela altura, as pessoas não sorriam para os retratos, muitas vezes porque as fotografias eram tiradas em pose, e sorrir poderia resultar numa imagem tremida.

Isso porque o processo de fotografia era muito demorado?

Exatamente. Durante muitos anos, pensei que essa seriedade nas fotografias refletia a seriedade da sociedade da época. Depois, percebi que era devido à necessidade de ficar imóvel para que a fotografia ficasse nítida. Por exemplo, no caso das fotografias de rua, as pessoas muitas vezes eram capturadas em movimento, o que dificultava a obtenção de sorrisos. Temos muito poucas fotografias de pessoas a sorrir ou a rir, e o mesmo acontece com Fernando Pessoa. Não temos uma fotografia onde ele mostre os dentes ou sequer um sorriso. Isso nos transmite uma imagem de gravidade ou tristeza que talvez não corresponda completamente à sua personalidade.

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Fernando Pessoa

Ou até tormento? A sua alma torturada é também mítica.

Sim, mas em relação a isso, ele queixa-se nas correspondências e nos seus poemas. Como toda a gente, ele tinha dias bons e maus, dias mais produtivos e criativos. No entanto, tendemos a congelar uma única imagem dele, uma imagem séria e grave. De certo modo, essa imagem se descongela com este filme, permitindo-nos ver outras facetas de sua personalidade.

Sobre este filme, as primeiras divulgações que tivemos através da comunicação social, foi o de alguém ter encontrado uma suposta imagem em movimento de Pessoa neste trecho. Portanto, começo por perguntar: como foi que o encontrou? Será mesmo ele, como o filme indica?

Sim, eu o encontrei porque fui à procura dele, sem saber que realmente o encontraria. [risos] Achei interessante que tantos homens daquela época se parecessem com o que hoje consideramos o ícone de Pessoa: chapéu e bigode. Todos pareciam iguais naquela altura. Como eu sabia que ele circulava por Lisboa e frequentava concertos, havia a possibilidade de ele estar ali, e igualmente a possibilidade de não estar, como tudo na vida. Fui à procura, pensando que essa pergunta seria interessante como ponto de partida para um filme ou ensaio que pudesse fazer a partir daquelas imagens.

Quando comecei a analisá-las, houve um momento em que o vi e tive aquele insight imediato: “É ele, pronto!”. Mas isso não bastava, tive que verificar e comparar. As fotografias de Pessoa não são muitas, mas os fotogramas desses segundos, cerca de 12 segundos, são muitos, talvez uma centena ou duas, todos diferentes porque ele se move. A partir do trabalho e da análise desses fotogramas, consegui verificar se os traços correspondiam às fotografias conhecidas dele.

Após muito tempo de dúvida, tive a certeza. Aquela certeza intuitiva inicial foi confirmada pela análise. No filme, demonstro isso. Claro que não mostro todo o processo de meses, quase um ano, mas destaco alguns pontos chave que permitem, com bastante segurança, afirmar que aquela é Pessoa. Claro que devemos sempre admitir a possibilidade de erro, mas estou bastante segura. Segura o suficiente para arriscar a minha reputação e dizer: "Acredite em mim, se quiser, eu estou segura."

Naturalmente, é normal que o espectador tenha dúvidas até aceitar a conclusão. Será difícil provar que não é Pessoa, porque se não for, é alguém igual a ele. E o que significa alguém ser igual a alguém?

Mas o que é curioso no seu filme, logo a começar pelo título - "Onde Está a Pessoa?" - é a proposta que apresenta. Ao longo do filme, antes de irmos diretamente a Pessoa, codifica aquela nata artística que saía daquele espetáculo, que atualmente é o Teatro São Luiz, mas que antes se dava pelo nome de Teatro da República. Ou seja, o filme não é apenas um dispositivo para encontrar Pessoa, mas também é quase uma reflexão sobre a elite artística da época. Eles praticamente conviviam e mantinham relações próximas, pelo menos de homem para homem.

Sim, aquilo era o centro de Lisboa, era a comunidade da Brasileira. Todo mundo sabia que os intelectuais se encontravam na Brasileira [café lisboeta]. Era lá que eles trabalhavam, mesmo vivendo em outros lugares da cidade. Todo mundo passava por lá, era o ponto de encontro. Naquela época, Lisboa recebia influências do comércio e da cidade, mas comparada aos dias de hoje, era relativamente pequena. Ali era o coração da capital, onde as pessoas se encontravam.

Se havia um concerto especial ao domingo, como música sinfónica, quem tinha uma certa cultura ou frequência habitual desses ambientes certamente ia. Talvez não houvesse muito mais além disso. Talvez teatro, e já havia os animatógrafos, onde se passavam peças curtas. Então, era natural que eles se encontrassem na Brasileira.

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Onde está o Pessoa? (2023)

Aliás, o concerto que aparece no filme foi um evento esgotado, muito disputado. Para reconhecer as pessoas, precisei fazer um trabalho meticuloso de pesquisa em documentos antigos, revistas como a Ilustração Portuguesa, revistas musicais, biografias, fotobiografias e sites, procurando pessoas que viveram em Lisboa naquela época para verificar se correspondiam às imagens que encontrava. Foi um trabalho que também dependeu de insights.

Por exemplo, por vezes folheava uma revista e de repente via uma ilustração que reconhecia, associando-a a uma pessoa que conhecia da vida real ou do filme. O inverso também aconteceu, procurando no filme pessoas que eu conhecia. Assim, foi um processo que se estendeu ao longo de meses e anos, porque mesmo depois de terminar o filme na forma atual, continuei a descobrir mais pessoas e informações.

Há mais pessoas para além daquelas que apresenta no filme? Descobriu mais alguma após terminar o filme?

Há mais uma coisa. Por exemplo, fiz algumas descobertas depois de terminar o filme (porque os filmes não podem ser feitos e refeitos), o que é um trabalho contínuo e exigente. O percurso não termina com o filme, ele continua.

Quanto ao filme, já descobri muitas coisas. Por exemplo, encontrei a Florbela Espanca, que na altura não a identifiquei. No entanto, um espectador que saiba disso hoje poderá possivelmente identificá-la quando ela aparecer.

Julgo ter lido Florbela Espanca nos exemplos dados no press release do filme, mas não recordava de a ter visto.

Pois é, mas isso faz parte das conversas, não é verdade? Posso dizer onde a Florbela está. Talvez se lembre. Há um momento no início em que digo: "O casal feliz.”, é ela. Eu estava atenta, mas é verdade que não esperava descobrir todos esses famosos. Para mim, eles eram todos anónimos, como qualquer multidão, seja hoje ou em outra época. Estava mais curiosa para entender o comportamento das pessoas diante da câmara, como elas se mostram interprerlativas. Queria capturar esses momentos de vida entusiástica. Depois, aos poucos, foram surgindo os famosos que encontrava. O primeiro que tocou particularmente no meu percurso foi o António Silva. Foi o primeiro que vi.

Sim, o homem fardado!

Bombeiro, de fato. Então, vejo o homem com aquela farda e penso: "António Silva!”. Volto atrás, exatamente como fiz na minha investigação, quase da mesma maneira como as coisas aconteceram. Claro, tive que condensar um pouco.

É curioso ver no seu filme, a relação das pessoas, desta época, em relação a uma câmara. Hoje a nossa interação é completamente diferente …

Sim, comportavam-se como crianças …

Exato …

Isso suponho que tenha a ver com a novidade que era uma câmara a filmar pessoas na rua. Hoje em dia, ninguém pararia para ver ou até...

Hoje, a maioria evitaria a câmara …

Naquela época, a novidade por si só devia ser suficiente para deixar as pessoas fascinadas. Quando as filmagens eram feitas, o que não era muito frequente, era costume apresentar esses filmes nos animatógrafos ou em outros locais. Provavelmente as pessoas que estavam presentes eram filmadas sem saber exatamente para quê, mas esperavam ansiosamente para verem a si mesmas na semana seguinte.

Estas imagens datam do ano 1913, décadas depois do primeiro “filme” português …

Sim, o realizado por Aurélio Paz de Oliveira em 1896 [“Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança”]. Naquela época [em 1913], ocasionalmente viam-se filmes estrangeiros, além de curtas-metragens, onde as pessoas iam principalmente para ver aquela ‘coisa’ espantosa que era a imagem animada. O cinema naquele tempo encantava e intrigava, assim como hoje a inteligência artificial nos intriga. No entanto, hoje em dia temos que lidar com ‘coisas’ que nos assustam, talvez, a mim assustam um pouco.

Havia uma sensação de novidade naquela época, era isso que queria dizer. As atitudes das pessoas podem revelar ou refletir isso. Embora muita coisa daquela época já não se consiga explicar exatamente, pois eram filmes mudos, e por isso, nós não sabemos o que as pessoas diziam. Estou à espera de que alguém com dotes de leitura labial me possa ajudar a decifrar.

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Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta (2017)

Saímos agora do filme … poderia-me falar um pouco sobre “Cinema Português - Um País Imaginado”, o seu livro-tese?

Então, esse livro, que foi publicado há aproximadamente 12 anos, foi baseado na minha tese de doutoramento, concluída cerca de 14 ou 15 anos atrás. Ele realiza uma análise abrangente de um período da história do cinema português, geralmente situado entre 1950 e 1980, com algumas variações devido à natureza fluida do tempo, da história e da vida em geral. Para efeitos metodológicos e para concluir a tese de maneira robusta, foi necessário estabelecer limites claros.

O livro tem como corpo somente as longas-metragens de ficção ambientadas na contemporaneidade, refletindo o mundo atual, e não em filmes históricos. Além de analisar as representações gerais, explora os temas e o contexto cultural desses filmes. Examina como Portugal é retratado ao longo do tempo e como esse retrato evolui nas produções cinematográficas. Não se restringe apenas a uma análise das representações, mas também investiga a evolução do cinema em si, a sua linguagem e estética, o que reflete diferentes maneiras de pensar e de ver o mundo.

Vim cerca de 200 filmes integralmente para conceber essa tese. [risos]

Essa relação com o país que estamos a ver, e com o mundo, é muito interessante. Você realizou um filme chamado "Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta", sobre Manuel Guimarães, realizador com uma visão muito ligada ao neorrealismo da época. Poderia-me falar sobre esse filme como também sobre Manuel Guimarães, que me parece um cineasta que, por mais tentam resgatar a sua obra, nunca conseguem plenamente.

Mas há muita gente hoje em dia que aprecia o Manuel Guimarães! E eu os aprecio bastante [os filmes]. Eles têm sido revisitados ao longo do tempo. Houve um período nos anos, se não me engano, 80 ou 90 … talvez nos anos 90 [em 1997], em que a Cinemateca fez um ciclo dos filmes do Manuel Guimarães, exclusivamente dedicado: "A Travessia do Deserto", um título muito adequado. Essa foi a travessia que ele enfrentou nos anos 50, quando tentava fazer cinema interessante tanto socialmente quanto cinematograficamente, mas enfrentava a censura e a falta de recursos. Mesmo assim, ele conseguiu produzir algo significativo.

Por outro lado, ele faleceu em 1975, após a Revolução. Por isso, a sua sequência de carreira não se deu como esperado. Mais tarde, começaram a surgir os DVDs, uma coisa mais recente, talvez nos anos… 2009, 2010, mas posso estar errada em relação às datas.

Não estou a duvidar da sua dedicação a Manuel Guimarães, sei fez curadoria à exposição [com pesquisa de Carlos Braga, Miguel Cardoso e Rafael Prata.] que aquando no mais “recente” ciclo do cineasta na Cinemateca [em 2015]. O que refiro é este esquecimento que parece ainda envolver Guimarães, por exemplo, deu-se um gesto de reavaliação de António Macedo que parece, hoje em dia, ter dado frutos em relação à sua deixada obra.

Devo dizer que fiz um grande esforço para recuperar Manuel Guimarães, pois acredito que era um bom cineasta e que, se a sua obra não é perfeita, foi devido às condições adversas e às lutas que teve de enfrentar. Todos os seus filmes foram censurados, exceto o último [“Cântico Final”, 1976], que não foi cortado, mas que ele não conseguiu terminar porque morreu. A obra é um reflexo de uma vida difícil, e considero isso de grande valor. O que restou das suas intenções ainda possui qualidade, apesar de tudo.

Tenho uma teoria, que não posso comprovar, mas acredito que existe uma certa rejeição a Manuel Guimarães por ele ser visto como comunista ou esquerdista. Ele, de facto, tinha afinidades com os neo-realistas comunistas, como Alves Redol, por exemplo, e com Manuel da Fonseca.

Ele tinha desejo de adaptar a “Seara de Vento” do Fonseca, certo?

Sim. Ele tinha um projeto de adaptar o livro, que nunca chegou a realizar. Projetos havia muitos naquela época terrível. Hoje em dia também há muitos projetos; embora os tempos não sejam tão terríveis, continuam a ser desafiantes, de uma forma ou de outra. Faz parte do sonho, no fundo. Em vez de vermos isso como obstáculos, devemos ver como sonhos. Era o que Manuel Guimarães fazia. Ele usava, aliás, muito essa palavra, "sonho".

A mim, parece-me que existe um preconceito, uma rejeição inicial por ele ser esquerdista ou por estar associado a isso. Não sei se é, mas é o meu palpite.

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Saltimbancos (Manuel Guimarães, 1952)

Mas em relação ao seu documentário - “Nasci com a Trovoada”?

Então, esse filme era um projeto do Manuel Guimarães, que ele queria realizar como filme autobiográfico. Nos seus documentos, que listava os filmes que pretendia fazer e sobre os quais falava em cartas aos amigos, havia alguns esboços. No início, não escreveu sequências e planos, mas redigiu algo que corresponde a uma voz off, uma voz interior na primeira pessoa.

Utilizei esses documentos e outros materiais pessoais dele, além dos seus filmes, para construir essa autobiografia póstuma. Portanto, é uma falsa autobiografia, mas como é tudo feito com materiais dele, fui muito purista: tudo o que está ali é Manuel Guimarães remixado por mim.

E o que é feito desse filme?

Não consegui distribuir o filme nem que a televisão o passasse. E acho que a RTP tinha a obrigação de passar um documentário que é sobre o cinema português, como tem passado tantos outros. Tinha essa obrigação moral e estatutária, digamos, de serviço público, de passar filmes portugueses, especialmente os que são sobre a nossa história e cultura. A RTP deve isso ao cinema nacional.

Foi dado algum motivo a essa rejeição?

Houve muitos emails de um lado para o outro, conversas e negociações. Chegaram a dizer que sim, mas o sim nunca se concretizou. Acabei por desistir, de certo modo. Desisti de insistir ou de persistir, mas tenho o filme disponível para quem quiser ver. Para divulgar o filme, gosto de mostrar aos interessados.

Mas voltando à reavaliação de Manuel Guimarães, falou-me do seu quadrante político-ideológico, mas também se associa a fraca adesão do público português ao seu trabalho pelo facto de os anos 50 terem sido uma década difícil para o nosso cinema. Guimarães começou nessa altura a dar os primeiros passos na realização e fez isso lindamente com "Saltimbancos", três anos antes de "La Strada" de Fellini.

Já que menciona isso, é interessante que recentemente escrevi um ensaio onde li e analisei os projetos de filmes do Manoel de Oliveira, aqueles que ele teve nas décadas de 1930, 1940 e 1950, mas que não pôde realizar. Todo esse espólio está atualmente disponível na Casa do Cinema no Porto e fui lá consultar esses guiões. Há um deles que se chama "Saltimbancos", que li atentamente e comparei com o filme do Guimarães.

Esse projeto é de '44 ou '45, não tenho a certeza, mas esse meu texto já está publicado. Para além desse guião, tem planificação, orçamentos, tudo mesmo ‘preparadinho’, só que o filme nunca foi realizado. Era um projeto muito duro, muito neorrealista antes do tempo, e com muitas semelhanças na crueldade humana retratada em “La Strada” de Fellini, lançado 10 anos depois. É impressionante.

Isto é durante a Guerra que ele faz este projeto, portanto, são formas de olhar para o mundo e de construir uma visão, uma história dentro desse mundo, com preocupações, neste caso, acerca da sociedade, do tratamento dado às crianças e da vida errante e difícil dos saltimbancos.

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Manoel de Oliveira

Falava-se disso na época nos jornais, e, por volta de 1945, surgiu o romance "O Circo" de Leão Penedo, que depois foi adaptado pelo próprio escritor para o "Saltimbancos" de Guimarães. Portanto, na mesma altura, havia um escritor em Lisboa e um cineasta no Porto a abordar o mesmo assunto. Além disso, existem representações de "Saltimbancos" na pintura, embora não se saiba se essas datam da mesma época. Às vezes, há ideias que andam no ar, são preocupações comuns. Fellini, mais tarde, em outro contexto, também abordou temas semelhantes.

Só para concluir sobre Manuel Guimarães, fiz aquele documentário ”Nasci com a Trovoada” apenas com materiais de arquivo. No entanto, também realizei cerca de vinte entrevistas com pessoas que trabalharam com Manuel Guimarães. Se não tivesse encontrado o arquivo na Cinemateca, teria utilizado apenas as entrevistas, mas não consegui juntar ambos os elementos. Assim, metade do filme das entrevistas está montado, enquanto a outra metade aguarda há 10 anos. É isso que pretendo fazer a seguir.

O meu corpo, os meus géneros ...

Hugo Gomes, 26.06.24

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Chegamos a mais um trio de curtas emparelhadas como uma sessão única, utilizando a sua temática unificadora como “desculpa” para a sua aliança. “Ovnis, Monstros e Utopia: Três Curtas Queer” [“Entre a Luz  o Nada”, “Sob Influência”, “Uma Rapariga Imaterial”] reúne três obras, fruto de três produtoras diferentes [“Primeira Idade”, “Promenade”, “Terratreme”], mas cujas vertentes artísticas parecem saltitar de filme para filme. Enquanto o seu cuidadoso lançamento em junho assinala o içar da bandeira arco-íris e o punho certeiro em nome do Pride, como soa ordenar este calendário temático.

Contudo e quanto aos filmes, mesmo entrelaçados no selo queer, é curioso encontrar uma voz antagónica a essa mesma categorização, e é dela que gostaria de partir. Odete, atriz , performista e personagem principal de “Sob Influência” de Ricardo Branco - e também participante do festival de “Entre a Luz e o Nada” de Joana de Sousa, e compositora musical de “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho -, brindou-nos com um questionário habitual, sempre pontuado pela produtora Promenade nas suas redes sociais. É um hábito na sua conta de Instagram: os atores e agentes artísticos desta casa são desafiados a enumerar cinco coisas que adoram e cinco coisas que odeiam, curiosamente, Odete assinala o termo “queer” na lista dos ódios. 

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Não entendendo bem o seu contexto, mas junto-me a ela, não em odiar [palavra demasiado forte], mas em questionar essa gravidade orbital trazida pelo uso da palavra queer. Mesmo conhecendo a “estética queer” no cinema - uma prolongação do camp com mais requinte visual - neste caso, oponho a categorização como um catálogo, um sectarismo que vai contra aquilo que as três curtas parecem/desejam manifestar – o romper de barreiras (leia-se géneros, sexualidades, códigos pré-socialmente estabelecidos).

Quanto às curtas propriamente ditas, os três elementos impostos no título da sessão são referências simbólicas, signos presentes em cada uma delas, ou por um lado, alegorias e personificações. Comecemos então com os “Ovnis”: “Entre a Luz e o Nada”, o lado intergaláctico de uma rave organizada em edifícios ao abandono, um filme sensorial que se apresenta como o segundo trabalho de Joana de Sousa, reconhecida no meio como ex-programadora do Festival Doclisboa (2015 - 2023). 

Dos três, é o mais convencional na dita estética queer, impondo uma brincadeira de luzes, purpurinas, constelações e música techno que se avançam em sonhos coletivos e em loop. Parte dessa brincadeira para se impor como uma mostra de uma fauna única deste mesmo universo, consolidado numa festa à moda daquilo que Portugal faz bem, seja em juventudes inquietas [“Verão Danado”], seja em territórios cavernícolas [“Ruby”], são convívios marginalizados, algo escapistas para com a uma realidade que os aterroriza, e os obriga a “banalizarem-se”. “Entre a Luz e o Nada”, o festim (quase) nu possui não só essa evasão de uma normalidade, como um culto de apelo a forças maiores que elas próprias, uma vinda extraterrestre quem sabe, que os liberta das suas amarras e a apresenta num único corpo, uma utopia [calma, já lá vamos!]. Joana de Sousa brinca aos misticismos como uma nova religião.

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Monstros”: não dos saídos do armário, mas daqueles cujas garras nos sacodem para forma dos nosso parâmetros, aqui, Odete, a tal protagonista contra o termo Queer, é emborcada de alucinógenos que a empurram para fora do seu terreno, da sua realidade, torna-se um corpo alheio, abananado, deambulando para lá onde for. “Sob Influência”, de Ricardo Branco (também assistente de realização de “Entre a Luz e o Nada”), faz a sua fuga pro vai desse estupefaciente e o coloca a mente e o corpo de Odete na demanda da sua alegoria, é um “objeto” perdido e simultaneamente encontrado no limiar da sua fronteira (convenhamos, há um elemento abstracto conformidade com a alusão de não-pertença, Odete não pertence a etiquetas, géneros, nem seja o que for, povoa na sua exclusividade como a sua plena característica). 

Branco brinca a outros géneros, o do cinema, com sugestões de um terror psicadélico e de criaturas escuras como breu, voyeuristas e famintas, tudo envolvido num exercício de “nem carne, nem peixe” mas com atributos estéticos e produtivos que colocam “Sob Influência” num quadrante de um sonho acordado, e drogado. 

Contemplamos então a “Utopia”: “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho, o dos três o mais conseguido esteticamente, mas o mais ambíguo na sua temática / abordagem. A história tem tanto de fantástico-erótico como onírico-febril, um encontro mesmerizante entre Tiago (João Duarte Costa) e uma “rapariga” de nome João, que reside numa isolada casa no meio da floresta. Existe um choque inicial que nos guia à parcialidade do cinema de João Pedro Rodrigues, dos travestis caçadores-de-gambuzinos em “Morrer como um Homem” (2009) ou das amazonas agressoras de observadores de aves em “Ornitólogo” (2016), mas é nesses cantos e recantos obscuros do feral e do silvestre que se esconde sexualidades a ser exploradas nos confins da empestada civicionalidade que termina essas comparações. 

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Odete em "Sob Influência" (Ricardo Branco, 2023)

João Pedro Rodrigues não é tão favorável às mulheres como Godinho encanta neste registo com sonho de diluir géneros, corpos e genitálias, e isso torna-se evidente na sequência de sexo erotizado e hipnótico em que a tal rapariga de nome João assume e encorpora três carnes, distribuídas em três géneros (João Abreu, Aurora Pinho e Mafalda Banquarte), quebrando os limites do seu erotismo direccionado, nesse termo relembra o “faz de conta” de Bertrand Mandico na sua fantasia surrealista “Les Garçons sauvages”, ao trocar os papeis dos géneros e com isto desafiando o sexualismo dessas imagens e desses corpos. 

Só que “Uma Rapariga Imaterial” termina exatamente nesse registo erotizado e prossegue com uma agenda escancarada de revolução, contrapondo os “eles” contra os “outros”, os normalizados, os males do mundo materializados. Aí, a confusão instala-se, invocando e desinvocando todos os temas e mais alguns, propagando uma ideia de utopia (a cena final resume-se a isso). Infelizmente, o resultado é o contrário: uma distopia, um confronto sem decretos e declarações convictas.

É uma pena que um filme que desbrava as ervas-daninhas da sexualidade através de uma montagem perfeccionista e encantatória (a cargo de Francisco Moreira, responsável pela montagem de “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos e “Alva” de Ico Costa) se deixe deslumbrar pela necessidade de transmitir uma mensagem imperativa, ou múltiplas mensagens, num ativismo algo tosco. A subtileza dos primeiros minutos era mais do que suficiente.

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Uma Rapariga Imaterial (André Godinho, 2023)

O Tempo, trabalho e melodia em "Soma das Partes": falando com o realizador Edgar Ferreira

Hugo Gomes, 23.06.24

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Seis décadas, sessenta minutos de filme, é o que se resume a esta composição documental que se dá pelo nome de “Soma das Partes”, um projeto que vénia faz ao percurso histórico da Orquestra Gulbenkian, salientado as suas importâncias sociais, políticas e artísticas. 

Um trabalho informativamente rico, integrado por dezenas de entrevistados, solistas, maestros, todos juntos com batutas e instrumentos na mão, sonorizando este “tic-tac” - da sua fundação em 1962 por Madalena Perdigão, até à nossa contemporaneidade -, numa pauta de imagens de arquivo e performances em forma de brilharete, um aperitivo para todos aqueles que estão alheios a este universo, e que mesmo assim musicado para todos os públicos. 

Já nos cinemas: “Soma das Partes”, um filme de história e das suas historietas, dirigido por Edgar Ferreira, o condutor – apesar da sua negação – que nos recebeu na própria Fundação Gulbenkian para uma conversa sobre a sua composição e que, adivinhem, terá acompanhamento futuramente…

Questiono-lhe, este filme foi um encomenda ou uma proposta sua à Fundação?

Este filme nasce da necessidade de comemorar os 60 anos daquele que é um dos agrupamentos mais importantes da Instituição e, nessa altura, convidaram-me para fazer o documentário.

E havia alguma estrutura pré-estabelecida pela Gulbenkian?

Não. Não houve uma conversa prévia com o serviço de música. Logo nessa conversa inicial surgiu a ideia de "60 anos, 60 minutos", e tal ficou decidido. Começámos a trabalhar nesse conceito e em como poderíamos fazer um documentário que tivesse paralelismo com a música, sugerindo um determinado ritmo ou compasso, e que conseguisse contar toda a História da Orquestra gulbenkiana, desde o seu início até à formação que se conhece hoje.

E como foi essa gestão de tempo, principalmente nas entrevistas que insere?

O filme é feito em co-argumento com a Andrea Lupi, que fez as entrevistas aos 23 entrevistados. Quando tivemos uma conversa prévia, explicitei a minha proposta de demonstrar o tema do tempo, visto estarmos a comemorar o marco temporal da própria orquestra, e explorar as suas diferentes perspetivas: o tempo da música, o tempo da interpretação, o tempo dos maestros, a própria longevidade do agrupamento ou mesmo o tempo das obras que tocam, que têm entre 200 e 300 anos, e que ainda assim permanecem resistentes à erosão da passagem do tempo.

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Edgar Ferreira / Foto.: Elsa Mónica Alexadrino

Com esta estrutura definida, as perguntas que fizemos seguiram essa ideia. Incluímos, sempre que possível, questões relacionadas com o tempo, para nos dar diferentes perspetivas sobre a temática, que depois espelhámos ao longo da narrativa do documentário.

Respondendo especificamente à sua pergunta, com essas entrevistas, havíamos angariado muito material, abrangendo diferentes décadas. Perguntámo-nos se estaríamos a ser demasiado redutores ao restringir-nos a uma estrutura tão rígida que nos obrigava a deixar determinadas partes de fora. O exercício foi: vamos tentar condensar tudo o que queremos dizer num curto período de tempo e perceber se conseguimos fazê-lo ou não.

Fizemos a primeira década, depois passámos para a segunda e assim por diante, mas a dúvida persistia. Houve décadas em que partimos de um pré-argumento com 40 minutos, que tinham que ser concentrados em 10. Como foi feito esse exercício? Na edição, muitas vezes utilizamos a complementaridade do discurso dos entrevistados para conjugar – alguém começa uma frase, outro termina; alguém enuncia um conjunto de obras, outro acrescenta – permitindo que cada entrevistado retomasse o discurso, não se restringindo apenas àquela pequena parte. Respirações, interjeições, tudo o que não era essencial para o entendimento do documentário foi retirado. Adjetivação dupla: "é bonito e elegante", não, basta "elegante". O elegante já contém a beleza, então ficámos apenas com esse adjetivo.

Dessa forma, conseguimos incluir todas as temáticas que nos interessavam em cada uma das décadas. O documentário adquiriu uma cadência e uma rapidez de desenvolvimento inesperadas.

O facto de ter “conduzido” e trabalhado o tempo neste documentário, sente-se com isso próximo dos propósitos de um maestro / condutor?

Não me atrevo a fazer essa comparação porque não tenho domínio suficiente no ato de dirigir uma orquestra. [risos]

Não refiro à arte de dirigir uma orquestra, refiro mesmo a essa ginástica e ensaio de tempo …

Posso dizer algo complementar: a ideia de termos uma marcação de tempo no filme não é nada de novo, já foi feita inúmeras vezes, mas, regra geral, essa marcação de tempo é em contagem decrescente, o que gera ansiedade quanto ao fim. Aqui é o inverso, temos uma contagem crescente, uma soma, não uma subtração. Acrescentamos à história deste agrupamento, não na expectativa de um fim que resolva o filme. Em vez de sentir expectativa ou ansiedade sobre o fim, há um sentimento de crescendo, continuidade e progressão.

Eu tinha dúvidas porque, quando sentimos a passagem do tempo, nem sempre é por um bom motivo; estamos à espera de algo, e isso reflete-se no documentário. Ou seja, para o espectador, ver que o tempo está a passar pode ser prejudicial, mas devido à elevada cadência, o que acontece, ou a sensação que pretendemos obter, é que quando chegamos ao fim de uma nova década, ficamos curiosos por saber o que vem a seguir. O que vamos ouvir a seguir? Isso combina com o momento final que de alguma forma nos transmite o que é comum num movimento de uma orquestra ao longo de 60 anos.

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Maria João Pires em "Soma das Partes" (2023)

Mas essa decisão de colocar um cronómetro no seu filme, não teve medo de transmitir uma ideia contrária ao espectador?

Como estava a dizer, tive essa dúvida. Acho que no resultado final não sinto. Em qualquer momento poderia ter optado por retirar, mas não o fiz porque senti que este cronómetro faz sentido existir no filme. Ao contrário de fechar, esta contagem permanece, é um movimento contínuo.

Quanto aos entrevistados? À sua seleção? Houve alguém que recusou o convite?

Ninguém recusou o convite, houve dificuldades em reunir com alguns deles, seja por motivos de agenda. Estamos a falar de pessoas com agendas muito preenchidas, concertos a nível internacional. No caso dos maestros, dirigem orquestras em todos os cantos do globo, semana após semana. Alguns solistas, como Maria João Pires ou Evgeny Kissin, dão igualmente concertos pelo mundo inteiro com frequência, e reunir todas as entrevistas no mesmo espaço, no Grande Auditório, foi uma tarefa difícil, requerendo alguma logística.

Como funcionou essa abordagem com os entrevistadores?

Com a Andrea, falávamos previamente sobre a questão do tempo, e depois falávamos antes e durante cada entrevista, tendo algumas perguntas-guia para direcionar os conteúdos que pretendíamos obter, especificamente para aquela área ou para aquilo que aquela pessoa nos poderia dar. Houve esse exercício. A conversa fluía naturalmente e, normalmente, eu e a Andrea discutíamos na entrevista: "Que tal perguntarmos isto também?". E, se houvesse disponibilidade, essa pergunta era feita.

Em relação à investigação?

Tenho trabalhado com a Gulbenkian com alguma regularidade, e é um privilégio poder estar neste meio com os músicos e tudo o que isso envolve. Tendo a oportunidade de trabalhar com o serviço de música, vou conhecendo parte da história. Do diálogo com os músicos e técnicos, vou conhecendo histórias, coisas que aconteceram ou estão a acontecer, momentos importantes que, de alguma forma, marcaram a vida da Orquestra Gulbenkian

Quando comecei o documentário "Soma das Partes", já tinha em mente temas que para mim eram bastante evidentes: a música contemporânea, a Madalena Perdigão, que está na génese dos três agrupamentos da Fundação Calouste Gulbenkian: Orquestra, Coro e Ballet.

À medida que o documentário foi se desenvolvendo, adquiri conhecimento de outros episódios até então desconhecidos para mim, seja por via de pesquisa, seja de menções feitas pelos entrevistados nas nossas conversas. Como as entrevistas foram espaçadas, ao obter uma resposta, permitiu-nos investigar um pouco mais sobre o tema e, se achássemos pertinente o seu desenvolvimento e aprofundamento, fazíamos isso com outro entrevistado a seguir.

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Houve algum episódio dentro desta “Soma de Partes” que o fez repensar na estrutura do documentário? Por exemplo, enquanto espectador, senti curiosidade em saber mais sobre o afastamento de Madalena Perdigão da Fundação.

A Madalena Perdigão merece um trabalho exclusivo sobre ela. Este documentário não é sobre ela, é sobre a Orquestra. Achei importante mencioná-la, porque obviamente está ligada à história da Orquestra, mas houve um momento em que tivemos que deixar essa questão de lado. Estaria mais preocupado, como havia afirmado há pouco, se aqueles dez minutos correspondentes a uma década não fossem suficientes para esquematizar todos os acontecimentos desse período e se tornasse redutor, refém de uma estrutura inicial que nos impedia de atingir todo o potencial prometido. E as décadas foram-se resolvendo, uma a uma, e no final sinto que não ficou nada de fora que eu achasse que deveria estar no documentário.

Mas em relação a esse filme sobre Madalena Perdigão. Seria o realizador indicado para essa tarefa?

Gostava muito, mas ... só o tempo dirá. [risos]

Fale-nos desse outro projeto seu, o “Coro: 60 Anos do Coro Gulbenkian”?

É um projeto que tem um ponto em comum com o filme da Orquestra, que é a passagem por 60 anos de existência …

Ou seja, não terá 60 minutos?

... e as semelhanças terminam aí. O documentário do Coro permitiu-me conceber algo distinto do que fiz com a Orquestra e só faria sentido fazê-lo dessa forma. Isto está relacionado com a forma como abordo cada projeto. Tem que ser desafiante, tem que me propor algo de novo, que não me faça sentir que estou a replicar um modelo ou esquema do que fiz anteriormente. Tendo dois agrupamentos que pertencem à mesma instituição e que estão a comemorar o mesmo arco temporal, achei que tinham que ser dois projetos inteiramente distintos.

Sobre o título “Soma das Partes”? Este é alusivo à composição do documentário, seis décadas a 10 minutos cada, dando no seu total 60 minutos de duração, ou é uma referência à estrutura da orquestra, ela uma formação de vários músicos, talentos, instrumentos e classes musicais?  

É as duas coisas. A resposta está na pergunta. [risos] E daí, sendo natural, que é um nome comum, sempre utilizamos essa expressão "A soma das partes é maior que o todo", e isso não deixa de ser verdade neste caso, tanto nos elementos que compõem uma orquestra, no som que acabam por produzir, na perseguição pela excelência que está na génese da iniciativa da Madalena Perdigão até à formação atual, como também é maior do que o próprio tempo que foi experienciado pela Orquestra.

Debates sobre Cinema Português, para que vos quero?

Hugo Gomes, 20.06.24

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Na rodagem de "Revolução (Sem) Sangue" de Rui Pedro Sousa, até à data o filme português com mais espectadores em 2024

Desta vez tenho que tirar o chapéu a Jorge Mourinha por esta pertinente (mais disto, por favor) crónica influenciada pelos debates (nada enriquecedores) dos Encontros do Cinema Português, promovido pela NOS Cinemas. O último deste segmento que presenciei foi o de 2020, que após despachar filmes portugueses sem eira nem beira, culpavam os filmes pelos seus fracassos e o facto de uma representante da NOS (julgo ser a mesma que Mourinha referencia no seu texto), afirmar que a distribuidora / exibidora é um empresa que vende "filmes para millennials" (é que nem sabem sequer o que é um millennial), o que prova que há um problema nestas chefias.

Sobre o cinema português e o seu público, o tema mais complexo do que encostar as produções à delegacia ou paternalizar os espectadores com os “que eles querem ver”, traduzindo-os por comédias de teor televisivo. Ou mais grave, um representante da RTP a tratar filmes com conteúdos e a maldizer dos “festivais”.Há muito por onde começar e são poucos os parágrafos para acabar, mas uma ‘coisa’ é certa, tivemos obras de Manoel de Oliveira em pleno anos 90 que fizeram mais espectadores que “Soares é Fixe”, portanto, como explicar isto sem ser o de apontar o dedo aos mesmos?  

Atores? Sempre a mesma coisa!

Hugo Gomes, 19.06.24

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Luís Miguel Cintra em "Ilusão" (Sofia Marques, 2014)

Fico horrorizado quando vejo que há escolas para ser ator de cinema porque acho que ser ator de cinema, ser ator de teatro, ser ator de televisão é, basicamente, sempre a mesma coisa. É a construção de gestos, de frases, de atitudes, de situações, etc., pela imaginação do ator. Como é que essa imaginação depois se comporta, que ordens dá ao corpo e à voz …? Depende da inteligência, da sensibilidade, da imaginação de cada um.

Luís Miguel Cintra, entrevistado por José Manuel Costa para o livro “Luís Miguel Cintra: O Cinema” das Edições da Cinemateca

Atravessemos o "Pedágio": uma conversa com Carolina Markowicz

Hugo Gomes, 13.06.24

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Pedágio (2023)

Seguimos o caminho casa-pedágio / pedágio-casa sob o olhar cínico e, em certa parte, caricatural de Carolina Markowicz nesta sua segunda longa-metragem - “Pedágio” - uma co-produção luso-brasileira que aborda as terapias de conversão gay praticadas pelas igrejas pentecostais sob um mote de “high moral ground”. Aqui, o ator português Isac Graça nos é apresentado como o pastor deste “circo” montado na hipocrisia moral, signo humano que a realizadora perpetua ao longo da sua obra de passo acelerado. “Pedágio” (2023), designação brasileira para portagem, chega aos nossos cinemas, um ano depois da sua estreia no formato longa com “Carvão” (2022), também sobre aparências e ambiguidades morais, o qual repete a sua protagonista, Maeve Jinkings.

Carolina Markowicz passou por Lisboa para apresentar o seu mais recente trabalho em sessões especiais, algumas delas ligadas à programação do Indielisboa, festival que sucede à sua estreia mundial nas telas de Toronto e San Sebastian. Nessas andanças, arranjou um breve tempo para conversarmos sobre o filme e a sua periferia. Fica o aviso … alguns “pedágios” foram atravessados aqui. 

Quero começar com o ínicio de tudo. Sobre “Pedagio”, de onde surgiu a ideia para o filme? 

A ideia do filme surgiu de uma certa inquietude que tinha em entender pouco... No Brasil, há uma cena política muito forte, cheia de escárnio para com a população LGBT, que é absolutamente surreal, protagonizada por pessoas que detém muito poder na nossa sociedade. Por exemplo, houve uma ex-ministra dos Direitos Humanos [Damares Alves], que agora é uma das senadoras mais votadas, que afirmou num vídeo que as crianças não podem ter bonecas da “Frozen”, porque é lésbica.

Também, um dos deputados mais votados do Congresso, de um dos maiores estados, colocou uma peruca verde e fez um discurso anti-população trans. Outro pastor, também deputado, com um grande quórum de votos, começou referir os sinónimos dos seus órgãos genitais. Ou seja, acontecimentos ridículos, patéticos, e que inacreditavelmente não descredibilizam essas pessoas. Sempre tive muita inquietude em entender como é que essas pessoas não são colocadas no ridículo onde deveriam estar. É simplesmente inacreditável; não conseguia acreditar que alguém comprasse, ou pior ainda, acreditassem no que eles estão a pregar, e eles mantêm e até aumentam os lugares de poder onde se encontram. 

Como também, a ideia nasceu do turbilhão disso tudo, porque para mim - por mais que, obviamente, os lugares tenham esse conservadorismo flutuante, essa polarização - as pessoas estarem preocupadas com a sexualidade alheia é tão anacrónico. Estamos em 2024 e isso é tão presente. Então, acho que essa grande questão não só brasileira é também mundial …

E isso está a aumentar …

Exato. Além disso, existem as bolhas mais progressistas, só que, com tantos problemas reais no mundo, as grandes “procupações” é se alguém está a ter relações sexuais com homens ou com mulheres. Todos esses elementos contribuíram para uma grande sopa de ‘coisas’ importantes, portanto, pretendia colocar isso no filme e retratar com uma certa ironia essas pessoas que são levadas demasiado a sério. E daí surgir esta história, desta mãe e deste filho. 

Na verdade, para mim, o personagem principal do filme resume-se nessa relação, que é problemática, como qualquer relação normal, mas também sem demonizar essa mãe, que é o produto de uma sociedade que lhe ensinou que o filho deveria ser de determinada maneira. Como tal, ela acha que fez algo errado.

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Carolina Markowicz / Foto.: Carlyle Routh 

Essa questão da relação gostaria de abordar novamente, porque para mim também foi uma característica muito acentuada no seu filme. Mas voltando ao tema central do “Pedágio” … vamos apontar o “coração” do filme nas chamadas terapias de conversão. Experienciou, ou foi atrás da existência dessas terapias no Brasil? Como elas funcionam? Qual o seu modo de operar?

Sim, fui. Pesquisei muito, falei com muitas pessoas, visitei muitos lugares, li muito a respeito, etc. Contudo, o filme não retrata essas terapias de forma literal, com a violência que realmente ocorre, não tinha a intenção de fazer um filme sobre a violência que acontece, que provoca coisas horríveis, inclusive suicídios, situações realmente muito graves e negativas. A minha ideia não era retratar uma violência gráfica nessas pessoas. Não era o que pretendia. Queria virar a câmara para o ridículo de quem pratica isso, de quem acredita nisso, por ser absurdo alguém achar que tem o poder ou que deveria procurar algo como tivessem a combater uma doença.

Queria entender e pesquisar, mas o meu objetivo nunca foi reconstruir elas são, literalmente, no sentido da seriedade e gravidade delas. Mas, sim, abordar essa ideia de terapia de conversão, que é algo que vivemos diariamente no mundo. Um político ou um presidente [Jair Bolsonaro] dizer que preferiria ter um filho preso que a um filho gay, ou uma pessoa qualquer com uma peruca verde a fazer declarações ridículas sobre o que é ser homem ou mulher, é algo que enfrentamos e que estamos a lidar diariamente.

… ou até mesmo dentro de casa.

Sim, até mesmo dentro das nossas casas. 

É que nesta relação, falo obviamente da mãe, é todo um espelho dessa sociedade - “Não, você tem que aprender homem” - ou a tentativa de arranjar qualquer trabalho que seja correspondente à imagem masculina.

Exatamente. 

Mas essa questão das terapias de conversão, algo que você mencionou, é que captou o ridículo da situação. No entanto, os relatos que temos, especialmente vindo dos Estados Unidos, são de uma violência, seja psicológica ou física, indescritível. O que você retratou é o ridículo dessa idealização; nós rimos daquilo.

Exato. Nós rimos da ideia de terapias de conversão, sem negar o facto de alguém querer mudar algo que você é, é bastante violento. E também como você disse, já temos muitas obras que mostram isso, portanto não queria trabalhar em algo que já tivesse visto, e quanto à violência, bem sabemos que é, não havia necessidade de sublinhar mais. 

A minha intenção era ter um outro tom ... Porque o humor é também violento de uma certa maneira. Por vezes é mais efetivo até do que reiterar algumas coisas, então, colocar essas pessoas nesse lugar ridículo, tanto de quem faz aquilo quanto de quem acredita, parece ser mais interessante enquanto linguagem. Não estava interessada em fazer mais um filme sobre cura gay, e mostrar alguém em sofrimento, queria revelar o quão ridículo e absurdo é alguém querer mudar alguém ou fazer alguém sofrer por essa pessoa ser gay? Para mim, essa era a questão mais interessante a ser abordada.

Gostaria também de perguntar porque, e como, escolheu a mesma atriz com quem havia trabalhado em "Carvão", Maeve Jinkings, e se há planos de colaboração numa terceira longa-metragem no futuro?

A concepção dos dois filmes meio que se cruzaram, e foram feitos em tempos muito próximos. Comecei a escrever o "Carvão" em 2016 e, sei lá, um ou dois anos depois, prossegui para o "Pedágio". Quando comecei a escrever a primeira longa, já imaginava o papel pensando nela, quando segui para a segunda, também pensava na Maeve, mas não queria que fosse a mesma protagonista; queria visualizar outra pessoa, mas não consegui.

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Carvão (2022)

O que aconteceu ao certo é que ela já estava integrada no “Carvão”, depois seguiu-se a produção do “Pedágio” que seria filmado ainda antes da pandemia, só que conta da mesma, e consequentemente as questões de orçamento, etc, toda essa situação fez com que o filme não pudesse ser filmado no período pretendido, foi uma reviravolta louca. Nesse momento, ela ficou vinculada ao "Pedágio", assim como "Carvão". Não conseguia parar de visualizar ela enquanto Suellen [protagonista de “Pedágio”]. Então, liguei para ela um dia e disse: "Cara, tenho uma coisa para te falar. Sinceramente, eu não queria te fazer este convite, mas vou ter que fazer. Você leria o roteiro? Porque não paro de te imaginar como essa personagem, mas não queria ter a mesma pessoa protagonizando os dois filmes, porque são duas mães. Os filmes são muito diferentes, mas são duas mães."

Ao qual respondeu: "Nossa, eu não me incomodo nem um pouco”. Fez uma piada, “não me incomodo nem um pouco de repetir diretor, não sei o quê." Aí ela leu e amou o guião. A partir daquele momento, quando começamos a conversar sobre a personagem, passou a ser impossível tirá-la da minha cabeça. Já a tinha convidado, e ela passou a estar vinculada a "Pedágio" também. Isso foi antes de filmar "Carvão". 

Filmamos "Carvão", foi ótimo, a nossa parceria foi incrível. A relação, o entendimento da linguagem, foi realmente muito incrível a relação que construímos profissionalmente. Três meses depois, filmamos "Pedágio", e já tínhamos uma relação de confiança e entendimento artístico muito forte.

Não sei se ela vai fazer os próximos filmes, mas ela é uma atriz muito capaz. Penso, assim como na Aline Marta, que fez os dois filmes também, fazendo a enfermeira em "Carvão" e a amiga dela em "Pedágio", são atrizes muito boas, com uma sintonia artística para comigo, o que me fascina. Consigo enxergar nelas as novas vidas que criarão quando as vemos no cinema. Então, não sei dizer especificamente se ela vai ou não fazer, mas possivelmente, ela, Aline, Camila Márdila, Pedro Wagner, Thomás Aquino, atores que gosto e com quem já trabalhei e que gosto muito de trabalhar, repetiria sem dúvida. Ela, com certeza, é uma delas.

Pelo visto funcionou, tendo em conta o curto prazo entre a produção dos dois filmes, em "Carvão" tem uma postura mais "bicho do mato", enquanto "Pedágio" assume uma personalidade completamente diferente. 

Mas o que é interessante nesta relação entre mãe e filho [interpretado por Kauan Alvarenga, o qual trabalhou com a realizadora na curta “O Órfão”, em 2018], é que, em momento algum, encontramos uma epifania, uma consolidação ou redenção, aquele momento chave que a partir daí “tudo correrá bem”.

Por exemplo, falando em conversão, recordo de um filme norte-americano com a Nicole Kidman, “Boy Erased” [de Joel Edgerton], onde existe um momento em que a sua personagem faz com nós espectadores simpatizamos, ou perdoamos ela. Em “Pedágio”, sabemos o que a mãe está a fazer ao seu filho, e ao mesmo tempo percebemos que o filho também não demonstra grandes sentimentos para com ela Aqui, a relação é um eterno work in progress, o que a torna mais verdadeira e humana.

Diferente desse filme que mencionaste, que apresenta uma linguagem que, sinceramente, não corresponde à minha visão nem às histórias que me cativam, pois penso que se trata de enredos que, de certo modo, ficam por resolver. Penso que uma relação de tamanha complexidade é algo subtil e, simultaneamente, um eterno trabalho em progresso. Esta relação é um constante trabalho em desenvolvimento, não é algo que se resolve numa epifania, como disseste, onde tudo magicamente se acerta ou desmorona. Eles são mãe e filho e, acima de tudo, amam-se. Isso fica claro em vários momentos, como quando o namorado dele pergunta: "Por que precisas da tua mãe se não dependes dela?" E ele responde: "Porque a amo." É algo que nem ele próprio consegue explicar totalmente, mas que está lá.

Por exemplo, no final do filme, quando estão juntos e ela olha para ele, não é um olhar de orgulho, mas também não é fácil perceber exatamente o que o olhar transmite.

Para mim, é assim: esta história vai continuar. Como vai continuar? Se ela vai aceitar, se não vai, existe um processo, e é esse processo que me interessa, porque acredito que é isso que humaniza os personagens. É verdade: discutimos com alguém, ficamos chateados por algum motivo, ou amamos alguém, e isso precisa de tempo para assentar, para compreender, para nos habituarmos, ou não. Faz parte das nossas relações esses altos e baixos, esses caminhos por vezes tortuosos, que nem sempre resultam num final resolvido e feliz.

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Pedágio (2023)

Há momentos em que ela diz, até ao seu namorado, que ama o filho e que faz tudo por ele. Então, vou focar-me muito nessa dinâmica, porque acredito que essas pessoas veem aquilo como uma doença.

Sim, também acredito que essas pessoas veem aquilo piamente como uma. Elas são ensinadas a pensar assim, são produtos de uma sociedade que lhes inculca que, se não tiverem um desempenho social perfeito, há algo de errado com elas. Sendo uma mãe que criou e está a criar um filho, qualquer erro é atribuído a ela.

Penso que isso, aliado a várias pequenas ‘coisas’ do dia a dia, como os colegas de trabalho a gozar, cria um sentimento de sensibilidade forçada. Esse sentimento, que é o que move as pessoas, é muito forte, é quase como se ela fosse uma outsider numa sociedade onde todos seguem normas e se encaixam em papeis pré-estabelecidos, reconhecidos e entendidos como corretos. Cada um tem o seu lugar.

Portanto, para ela, aquilo é um ato realmente bom pelo filho. Ela acredita que está a consertar o filho e, consequentemente, a sua própria vida, para que não seja mais julgada como uma pessoa que falhou. Sim, é uma sequência.

E a Igreja, nomeadamente as pentecostais evangélicas, no Brasil, tem contribuído para isso.

Com certeza, não quis estabelecer especificamente que tipo de igreja era. A ideia também foi trazer um pastor diferente, que não fosse aquele pastor mais velho, com cultos tradicionais que já vimos várias vezes, e sem caracterizar exatamente que igreja é essa. Mas, claramente, é uma igreja pentecostal.

Não me refiro apenas aos evangélicos. Todos os religiosos conservadores têm questões com a homossexualidade e a maioria deles condena-a. Existem algumas frentes de igrejas evangélicas que são dissidências muito esparsas e específicas, com outro ponto de vista, mas no geral, contribuem para o conservadorismo, o preconceito e a violência, porque o resultado disso não é só a ridicularização ou os insultos, mas uma violência física real. O Brasil é um dos países que mais mata a população LGBT+ no mundo, então essa questão é muito forte.

A igreja, os pastores, e o que pregam, com certeza, contribuem muito para que isso continue a ser uma prática na sociedade. E não se pode colocar a culpa apenas na religião evangélica, mas ela é mais proativa e tem uma disseminação muito grande entre as pessoas.

Como também no Brasil, essas igrejas estão muito associadas ao poder político …

Exatamente. Os pastores praticamente determinam quem será eleito, pois instruem os fieis a votarem apenas em certas pessoas. Está tudo muito interligado com o conservadorismo. Mesmo que alguns políticos sejam mais progressistas, muitas vezes não podem se posicionar como tal, pois correm o risco de perder o eleitorado de uma certa parcela da população, que é orientada por esses pastores. É uma loucura!

Além disso, há políticos que não são progressistas de fato, mas precisam manter uma postura conservadora para garantir o apoio dessa base influenciada pelas igrejas. Essa dinâmica perpetua um ciclo de conservadorismo e preconceito, dificultando ainda mais a mudança social e a aceitação de questões como a diversidade sexual e de gênero.

Falando apenas do pastor evangélico, gostaria de abordar a presença de Isac Graça, pois, tal como mencionou anteriormente sobre a questão do ridículo destas terapias, o papel do ator parece contribuir nesse sentido. Além disso, gostaria que falasse sobre a sua entrada no projeto: foi um exigência da coprodução portuguesa [O Som e Fúria]?

Entendi, não foi um pedido de jeito nenhum, foi uma escolha totalmente artística. Inclusive, até uma semana antes de começar as filmagens, eu estava procurando atores no Brasil, mas não conseguia visualizar exatamente como seria aquele pastor. Eu não queria apenas repetir um tipo de personagem que já havia visto antes. Estava um pouco desesperada em busca de uma luz.

Foi nesse momento que o Luís Urbano [produtor da O Som e Fúria] e a Karen [Castanho, produtora da Biônica Filmes] me apresentaram a possibilidade do Isac. Achei que fisicamente ele poderia representar algo entre pastor e coach. A persona dele era muito interessante e então conversei com ele a respeito do papel. Ele entendeu-o perfeitamente, desse pastor como alguém que realmente acredita naquilo que faz, para quem não há nada ridículo. Para ele, é uma tarefa muito séria, muito eficaz, e o faz pelo bem da Humanidade …

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Pedágio (2023)

Ele trata tudo como uma pseudociência …

Totalmente, para ele é uma ciência. Essa seriedade me fascinou junto com a persona dele, foi como se algo clicasse na minha mente, e por isso convidei o Isaac para fazer o filme. Mas não foi uma imposição de coprodução de forma alguma.

Algo que observei, tanto em "Carvão" como de forma mais pronunciada em “Pedágio”, é o facto de muitas personagens adotarem um discurso moralista em relação às outras, revelando-se moralmente hipócritas. Temos o exemplo da colega da Suelen [Aline Marta] e a sua relação com o adultério, isso também se aplica à questão da mãe e, possivelmente, ao próprio pastor. Não sei se isto é claro, mas há uma sugestão de que o pastor também seja gay.

Assim, gostaria de perguntar se há uma intenção deliberada de destacar essa hipocrisia moral nos seus filmes.

Sim, sem dúvida. Isso é um dos elementos que mais me interessa no tipo de cinema que faço e que desejo fazer, o de questionar essa hipocrisia inerente a todos nós, em diferentes graus. Considero isso uma característica humana fascinante. As ações que tomamos, as palavras que dizemos e os papeis sociais no qual somos obrigados a desempenhar, muitas vezes de forma violenta, são temas que também exploro em "Carvão".

A questão religiosa também é crucial, onde em nome de Deus, tudo parece ser permitido, inclusive as maiores violências. Tal cria um paradoxo profundo e irónico. Portanto, vejo um espaço rico para explorar a hipocrisia humana.

Lembro-me de uma ocasião especial durante a apresentação de "Pedágio" em Roma, que ilustra bem esse tema. Estávamos com um guia turístico pela cidade, e ela contava a história de uma ponte antiga em Roma, adornada com pequenos monumentos que representavam a cabeça de um papa da época, ou algo do género. Não sei exatamente qual era o papa, mas sei que as pessoas que estavam construindo a ponte se desentenderam. Então, para castigar aqueles que estavam brigando, o papa, que acreditava que as pessoas deveriam entender-se e não ceder ao conflito, mandou cortar a cabeça dos dois. Depois, contratou novas pessoas para continuar a construção da ponte.

Isso para mim é simbólico, diz tanto sobre a psique humana, sobre o poder de julgar, de ser o arauto, o bastião da sabedoria, podendo decidir sobre o bem e o mal, e ainda assim cometer atos de maldade. É tão inocente, de certa maneira. 

E quanto a novos projetos? Senti durante a nossa conversa o avanço de algo …

Estou a escrever um novo projeto, que também será uma coprodução portuguesa. Estou muito feliz com isso, pois adoro o Luís Urbano, que se tornou um grande parceiro, e sou apaixonada por Portugal. Adoro estar aqui!

Este novo projeto será uma história que aborda as ironias da vida, agora focada numa família rica de São Paulo. O enredo começa com a descoberta de uma filha ilegítima após a morte do patriarca, desencadeando uma série de eventos na família e na empresa desta. É uma história com humor ácido e drama, ou melhor, um verdadeiro drama com toques de humor ácido.

Estou a desenvolver este projeto e vou até ao Porto para o segundo módulo do Torino Script Lab, que estou a frequentar. Enfim, este é o meu próximo projeto. Espero ter o argumento concluído até ao final do ano e estou ‘super’ entusiasmada com isso.

Um pianista que sofre como um país

Hugo Gomes, 10.06.24

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Como lidar com a história recente portuguesa no nosso Cinema?”, questão colocada por um colega crítico, à porta de um visionamento qualquer, que tinha como ponto de partida o evidente fracasso de bilheteira que “Soares é Fixe”, da autoria de Sérgio Graciano, revelou ser. A conversa tendeu a apontar a inaptidão do filme em “adaptar” um dos momentos marcantes da área político-social de Portugal pós-25 de Abril, seguida pela comparação com outras cinematografias europeias na sua própria relação com a história do século XX e XXI. Conclusões? Nada foi obtido, apenas um lamento de quem … e não está sozinho nessa demanda … se indigna perante tal tratamento em nome do “cinema popular”. 

O fiasco funcionou como uma resposta de que existe um público, mesmo que normalmente desligado do seu nacionalizado cinema, nunca totalmente abraçado aos trabalhos gerados a “três pontapés”. Tal pergunta-desabafo desafiou-me a olhar para outros exemplos de história recente virados ao cinema, e felizmente, notei artesãos mais capazes em retratá-la que, apesar de não contrariar o panorama geral, dão-nos lições de moral aos “Soares é Fixe” desta vida. Um dos realizadores bem-intencionados nessas jornadas de olhar para dentro e para o horizonte passado é definitivamente Luís Filipe Rocha.

Convém salientar que 2024 é um ano de ‘renascimento’ para o cineasta, que popularmente conhecemos pelo pequeno êxito “Adeus Pai” (1996) ou do também muito divulgado “A Outra Margem” (2007), um palco completo à excelência performativa que era o ator Filipe Duarte (1973 - 2020). Com uma exibição feliz do seu raríssimo “Sinais de Vida” (1984), uma introspecção-homenagem a Jorge Sena numa experimentalidade biográfica enviesada numa breve retrospectiva à sua obra, na Cinemateca de Lisboa, o restauro do seu “Fuga” (1978), projetado em algumas sessões especiais, uma edição de luxo em DVD de “Cerromaior” (1980) e, por fim, o lançamento do seu mais recente trabalho - “O Teu Rosto Será o Último” - sete anos após do seu documentário “Rosas de Ermera”. Este último é uma adaptação do livro homónimo de João Pedro Ricardo, uma narrativa persistente num paralelismo para com as transformações de um país que se libertaria das amarras da sua opressão expressa em 40 anos de poder salazarista, e de uma guerra que cicatrizou a sua sociedade.

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Basta testemunhar a primeira sequência: um grupo de homens (e um padre à mistura, para distanciar os ‘servos de Deus’ dos ‘serventes de Deus’), que acompanham os televisados avanços da Revolução dos Cravos, cujo o olhar atento aos eventos é interrompido pelo chamamento de uma canja na sala de jantar. Seguem para a refeição e debatem sobre o sucedido, numa tertúlia recheada de certezas, dúvidas, conspirações, apelos e injúrias em modo comic relief. Não fomos introduzidos concretamente a estas personagens, e sinceramente, tal sequência soa-nos de uma inútil existência, a não ser pela perpetuação de dois factores, que mais tarde apercebemos apoiar: o contexto histórico-temporal que a narrativa adequará (pós-25 de Abril), e a insinuação, mesmo que discreta, de que o que veremos é uma intenção de aliar-se a esse percurso “revolucionário” (e contra-revolucionário) e manifestar-se como um drama de revisão a um país. 

Segue-se então o nosso enredo: uma das personagens daquela trupe será o avô (Pompeu José) do nosso protagonista, Duarte (Vicente Wallenstein em fase adulta), que desde criança descobre um dom, uma destreza (ou talento) para o piano. Os pais (Rita Durão [a mãe] a convencer-nos que 2024 é o seu melhor ano em muito tempo) estimulam essa aptidão, inscrevem-no no Conservatório e, sob a atenta proteção do seu tutor (Adriano Luz), ele prossegue à luz de uma eventual consagração. Fala-se no mais “beethoveniano dos beethovianos do seu tempo”, gaba-se a sua sensibilidade musical, o seu entendimento e conexão com as partituras e os seus autores, o qual coleciona no seu pequeno quarto-refúgio, mas na progressão do seu crescimento, algo “estranho” acontece. Duarte começa a renegar o seu dom, o qual converte-se numa tinhosa maldição.

Traumas são bandejados como interação para com este sofrimento artístico proveniente de Duarte, que por sua vez nos leva ao melancolismo da sua figura, numa mistura de medo do fracasso à perda da sua identidade. Luís Filipe Rocha construiu um filme sob o signo dessa degradação, não ostenta fantasias além daquelas que o seu avô, em jeito de ‘contador de histórias’, o delicia com as aventuras do seu amigo de longa data, Policarpo. O espectador tem a certeza, devido ao tom manifestado, que não estamos envolvidos num conto de “sonhos superados” e sim num reflexo de uma infelicidade maior e daí, talvez lendo por “linhas tortas”, evidenciamos a história de uma difícil libertação pós-25 de Abril. 

Do medo do risco, do estrangulamento de talentos e aptidões em prol de valores nunca esquecidos após anos e anos de martelação, dos “brandos costumes” e da escapada para um terreno sem avanços - “O Teu Rosto Será o Último” é sobre um país de cinzas. Duarte é apenas um sintoma, e Luís Filipe Rocha é dotado em captar os aromas dessa história recente e em cometer a sua crónica. Filme de pianistas e de cordas entrelaçadas, que tão bem afigura-se como resposta à combalida gesticulação da dita história recente de “Soares é Fixe” e de muitos outros congéneres.

"Nha fala" ... porque a Reboleira não é para todas as músicas

Hugo Gomes, 08.06.24

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Havia da nossa terra dar-nos um fruto como esta Eliana Rosa, contudo, o feito da terra fértil está para lá de Cabo Verde, a “Manga d’Terra” como se vende e cantarola num sonho seu, e que Basil da Cunha (nesta sua terceira longa-metragem) o resgata como título. Só que o fruto foi importado, com a sua vinda, os seus sonhos, a sua ingenuidade, o brilho e cor, um bando deles que se amontoam após a tocada primeira nota. Porém, nota-se uma traição, coletiva digamos, nós, enquanto país, somos incapazes de receber esses delírios, encarando como isso mesmo. Nesse território, Eliana Rosa não passa de um número, de um corpo isento de alma para ser incompreendida, a crueldade ao seu redor a guiará a decepção atrás de decepções. 

Novamente filmando nos bairros sociais da Reboleira, Cunha prossegue no seu plano de evasão, tendo cúmplice esta cabo-verdiana de adocicada voz, cujas dores resolvem-se por via de melodias que faz no interior do seu imaginário, um confortável abraço perante o seu fascínio pelo género musical. O filme seguiu-se como uma curta em resposta ao holofote de luz fundida que o realizador cometera em relação à presença feminina, até então, dos seus filmes. Consciente da sua fragilidade, solicita a ternura dorida de Rosa, num trajeto anti-trajetos do vendido sonho americanizado da ascensão musical. Portanto, a nossa protagonista que escapuliu de Cabo Verde com o intuito de encontrar em luzes lusitanas um palco seu, comete o maior dos erros humanos, a ignorância, aliada à inocência de quem uma prosperidade lhe é vendida com um estalar de dedos. Ainda na esperança de uma oportunidade que seja, feita fura-vidas pelo bairro, em contacto com as diferentes figuras do seu biotipo, desde homens crueis que a olham de cima para baixo enquanto iguaria de supermercado, a mulheres conformadas e unicamente vividas em relacionamentos tóxicos (surtos quase psicológicos fazem delas inimigos mais imprevisíveis que o esperado oportunismo dos homens), e por fim, a sociedade, intolerável e injusta … como bem sabemos. 

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Mas o que de esperançoso, mesmo que saídos seja a via, que “Manga d’Terra” colhe, é o facto de Basil da Cunha exercer o que havia cometido nas anteriores obras, propor uma escapatória à realidade das suas personagens, e neste caso usufruindo os efeitos clássicos associados ao género musical, no qual Rosa declara fascínio após presenciar na tela de um televisor (neste filme, por mais que uma vez, a televisão, como a janela do mundo para lá do bairro) a festividade cinematográfica desse universo. Quando a música entra e a voz da nossa trágica heroína aquece para o primeiro acorde, a sua realidade se transforma, torna-se num escape como se dita a tradição do musical, as cores manifestam contagiando o cenário como um onírico concerto (o ‘comparsa’ Patrick Tresch domina na sua posição de diretor de fotografia), aí Rosa é uma estrela, a estrela que sonhara, e Cunha, mais uma vez, com o seu artifício cinematográfico aponta a porta de saída às suas personagens, o fora daquela realidade que os impregna e os reduz a menos do que são. 

Manga d’Terra”, convém afirmar, é mais uma fábula suburbana que tudo faz para dignificar os seus protagonistas, nem que seja pela mais doce e confortante canção - “Tudo vai correr bem!” -, a incerteza, talvez, mas pela tela desejamos acreditar piamente.