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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

FIDMarseille 2022: porque as narrativas clássicas não moram aqui!

Hugo Gomes, 03.08.22

Garden Sandbox

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Provando que a FIDMarseille é um festival impróprio para corações de storyteller clássico, Yukinori Kurokawa retoma ao seu fascínio por “locais” (seis anos depois de “Village on the Village”), criando temáticos passeios, sobressaindo o ente observador perante a narrativa. Em “Garden Sandbox" o que interessa é alimentar curiosidades, partindo do pressuposto que a iniciativa da protagonista se confunde com o mesmo objetivo do filme, o de caminhar pela localidade escolhida, criando uma topografia imaginária dos locais, de pessoas a sítios, de sítios a pessoas.

“A sua curiosidade de viajante se tornará amor”, sugere alguém durante este percurso “salta-pocinhas”, e é de facto a curiosidade a maior ferramenta aliada ao espectador nesta viagem por "recreios de areia”, o vislumbre acima da ficcionalização, e a ficcionalização mental - o que nos é permitido imaginar - como alicerce desta metragem. No fundo é como aquele filme de Jim Jarmusch - “The Limits of Control” (2009) - tudo é deixado à mercê de quem vê do que quem conta. Kurosawa apronta nesse exercício de perspetiva, e a aprofunda quando a sugestão serve para nos alimentar e não saciar. Uma proprietária de um bar, por exemplo, enigmática que nos segreda estar ali e ali estar para cumprir uma vingança. Mas qual vingança? O que sucedeu? Não sabemos, nem sequer a protagonista cuja missão é datar, recolher e reconhecer, o sabe. Ao espectador fiquemos com a imaginação, a saudável ignorância que contraria a nossa omnipresença. Possivelmente não estamos destinados a sermos omnisciente, a saber de tudo e de todos. Devemos viver saudavelmente no desconhecimento, e “abraçá-lo” como percurso das nossas próprias vidas.

Quanto a “Garden Sandbox”, o exercício está lá, o que difere é a impressão deixada em nós, espectadores, perante esse abandono narrativo e de saliência geográfica.

Competição GNCR 

 

The Unstable Objects II

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Na segunda parte do díptico “The Unstable Objects”, Daniel Eisenberg prossegue no seu registo observacional quanto a um seio industrial (ou melhor, vários), para deixar o espectador só com os processos de fabricação, de três diferentes objetos (próteses, luvas e calças de ganga) em três diferentes regiões (Alemanha, França, Turquia).

São no total 3 horas e meia de imagens “mudas” (não existe narração, não existe inteira interação ou pedagogia), de uma repetição voluntária e incentivada (se o efeito do filme é trazer a nós uma sensação quanto à natureza deste trabalho consegue na perfeição) e com voraz apetite de registo. É um exercício wisemaniano no seu esplendor, que nos remete a pensar e repensar sobre este universo, sobre a génese do mundano e das vidas limitadas a um só gesto, como fruto (e símbolo) de uma oleada máquina produtiva. Nesse termo, podemos embarcar por derivações sobre a industrialização, o mercado de trabalho, a homogeneidade da mesma e até mesmo o capitalismo, isso porque, as imagens nos remetem para isso, mais do que o esforço de Eisenberg em anexá-las a um significado pretendido.

Mais um objeto sobre o tempo e de como trabalhá-lo, rico nutriente para os wisemaníacos desta vida, que olham para estes documentos como quem olha para o seu redor. Infelizmente, como gesto cinematográfico, não é de todo inspirado, meticuloso nem esforçado na sua busca. O tempo por vezes trai.

Competição Internacional - Vencedor do Grande Prémio

 

Lucie Loses Her Horse 

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Não somos lagartas, nem mesmo borboletas, mas transformações acontecem através da vida”. Lucie (Lucie Debay) recebe esta frase-motivacional como uma demanda para a sua eventual epopeia pessoal. Partimos do pressuposto que esta contemporaneidade nos invoca a pandemia e confinamentos, bloqueios sociais que estagnaram o nosso próprio desenvolvimento ou “estilhaçaram” a nossa saúde mental, assim sendo as “transformações” referidas tem o seu cheiro a “auto-ajuda pandémica”. Contudo, Lucie, de um momento para o outro, é uma cavaleira, de espada em punho, munida de armadura e crente nos códigos de cavalaria, partindo em buscas quixotescas, angariando aliados (diria melhor aliadas, e precisamente duas) … e nada mais parece brotar daí. Em mais um corte narrativo, as três cavaleiras reunidas encontram-se adormecidas em um palco, uma peça igualmente suspensa no limbo, aguardando, não por Godot, mas pela salvação à sua continuidade, rompendo com quem rompe uma maldição fabulista. Assim, a “Perceval” se reparte em três dimensões - o quotidiano, o imaginário e o encenado - o contacto desta pela vida que se transforma, ou melhor adapta, perante as adversidades surgidas.

O belga Claude Schmitz (“Carwash”) conquista em “Lucie Loses Her Horse” (“Lucie Perd Son Cheval”) um humor próprio e transladado aos diferentes cenários, convertendo todo este jogo de estados numa alusão à nossa condição, portanto desafiada, durante a pandemia. E as artes, aí abaladas, pela sua etiquetada “não essencialidade”, como parece invocar num “ping pong” metalinguístico, temática que orbitam na existencialista da protagonista. Exemplar curioso, mas ambicioso em exercitar modernidades.

Competição GNCR - vencedor do Prix Du Groupement National Des Cinémas De Recherche

 

A Vida São Dois Dias

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Um enredo de tom telenovelesco (se não fosse o facto do elemento gémeos terem sido sequestrados por tal universo) oscilando entre Rio de Janeiro e Lisboa, duas cidades solarengas, duas cidades propícias a um magnetismo cultural e literário. Escritores absurdos e acidentais, ou quem faça da sua vida a vender raridades de capa e contracapa, peões deste jogo de “faz-de-conta” só com prioridade no “que se conta”, mas uma ‘coisa' é certa no cinema de Leonardo Mouramateus (novamente aliado ao ator e argumentista Mauro Soares), a capital portuguesa perante os seus olhos é definitivamente a sua perspetiva quanta à cidade, a sua experiência enquanto brasileiro em constante migração por esses dois “mundos” delineada nesta sua segunda longa-metragem.

Mas quanto a  Lisboa, foi assim desde a sua estreia em grande com “António Um, Dois, Três” (2017), é assim nas suas curtas e experimentos, e é novamente desta forma que nos ligamos com esta “A Vida São Dois Dias”. Mouramateus transformou Lisboa numa cidade sua. Esta é a Lisboa de Mouramateus, não um mero folheto turístico, é a cidade de alguém. A juntar a outros que moldam a cidade ao seu olhar (Pedro Costa, Manuel Mozos, João Pedro Rodrigues, são alguns dos exemplos de quem faz de Lisboa um cenário diferente e contínuo), o realizador ostenta a sua marca, a sua sensibilidade, o seu mapa, somos apenas convidados a juntar-se ao seu indiciado passeio. O que está em causa não é uma Lisboa vista para quem a repentinamente visita, mas quem viu nela uma nova oportunidade de alterar o seu quotidiano.

Fora a cidade, “A Vida são Dois Dias” é uma comédia de equivocadas leituras, que embebede da natureza do “livro ficcional” do qual constitui o “macguffin” da sua intriga como uma farsa, um embuste para quem procura encenações exatas da realidade ou para quem instala-se no conforto do virtuosismo. O cinema de Mouramateus é um cinema de experiências, sensibilidades e de impressões, cuja tradução dessas resulta em algo abstrato e em certo jeito desajeitado.

Competição Internacional - Menção Especial

 

Na brasilidade da ternura

Hugo Gomes, 18.07.22

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Amigo Secreto (Maria Augusta Ramos, 2022)

Truffaut avisou: “Criticar um filme é criticar pessoas e isso eu não quero mais fazer”. Mas havia ainda algo de necessário na arte de analisar longas-metragens, na arte de ressaltar a dimensão que os filmes têm como tecido vivo, depois da Nouvelle Vague. E também, depois das ressacas de 1968. E, também, após suspiros pós-modernistas. E depois da videoarte, frente ao avanço da streaminguesfera. No Festival de Cannes de 2018, quando a tese semiótica “Le Livre d'image” garantiu ao suíço Jean-Luc Godard uma Palma de Ouro especial, ouviu-se a Croisette lamentar: “O cinema morreu depois que o realizador de ‘Alphaville’ parou de acreditar nele”. Era um lamento pertinente sobretudo ali, onde a Netflix perdia de vez, à força das decisões de Thierry Frémaux de não se render a um gigante do rentabilíssimo negócio de transmitir imagens em movimento por meio da www, em plataformas digitais.

Diante desse torvelinho histórico, do engasgo de Godard, uma vez mais, a crítica se fez e se faz necessária e urgente, mesmo com suas idiossincrasias. Uns gostam de “Top Gun: Maverick” (eu, por exemplo) e consideram esse blockbuster de US$ 1 bilhão uma exegese da técnica; outros lhe atiram torpedos stalinistas, reduzindo-o uma propaganda armamentista, refutando suas virtudes homéricas. Em Portugal, há quem cante loas ao “Bem Bom” das Doces e há quem amargue o seu lado pop. São veredas que se bifurcam pela natureza humana de um ofício (talvez, um saber) - criticar filmes - que ocupa a árdua tarefa de escrever para o Futuro a partir do Presente, contextualizando para o Amanhã aquilo que se pensa e aquilo que se sente no Agora, no Hoje. Críticas são tabuleiros onde enxadristas movem Torres e Bispos da Estética na representação de um “Game of Thrones” onde a memória disputa terreno com a ignorância do imediatismo, da intolerância e da fake news. No caso brasileiro, existe uma nuvem medieval no ar. Lá, o povo compreendido entre o Oiapoque e o Arroio Chuí fala em “Fator Minion”, numa jocosa referência à franquia “Despicable Me”, comparando os caças bolsonaristas aos asseclas de Gru.

Fazer crítica no Brasil de 2022 é correr sobre o arame farpado da bipolarização, escapando das armadilhas abertas por pruídos lacradores de patrulhas ideológicas, evitando absolutismos. Há sempre alarmes políticos à esquerda e à direita prestes a zumbir frente à escrita de textos sobre qualquer fenômeno fílmico daquele país (no caso, o meu berço). Isso vale para artigos sobre o sucesso popular de “Medida Provisória” (com seus 460 mil pagantes); ou sobre a produção de filmes baseados em BDs controversas (mas corajosas), como “O Doutrinador”; passando pelo atual barulho gerado por Maria Augusta Ramos com seu “Amigo Secreto”. Um barulho ligado à sua precisa triagem dos desacertos da Operação Lava Jato. Há muita tensão no ar no Brasil, em tempos em que aguardamos novas eleições presidenciais. E é natural que fiquemos tensos, depois de um golpe, do impeachment de uma líder eleita democraticamente e do recrudescimento do conservadorismo. E é natural que essa tensão reflita na crítica,de alguma forma. Mas esta não deixa de exercer seu papel de celebrar artesanias e autoralidades, como se vê agora na estreia do necessário “Carro Rei”, de Renata Pinheiro. Os faróis que iluminam o diálogo crítico se acenderam para o potente filme da diretora de “Amor, Plástico e Barulho” (2013) passar, consolidando seu estado natal, Pernambuco, como pátria de invenção. Da mesma forma, a crítica esteve atenta para lembrar os dez anos de ausência do mestre Carlos Reichenbach (1945-2012), garantindo-lhe espaços em múltiplas URLs para celebrar suas jóias, como “Alma Corsária” (1993).

Desde os anos 1950, vozes trovejantes catapultaram a crítica brasileira ao Valhalla da relevância, como foi o caso de José Carlos Avellar (1936-2016). Como resenhista do Jornal do Brasil, curador de festivais e agitador cultural, Avellar dedicou sua vida e sua escrita a propor conexões entre os países da Pangeia Latina, escrevendo sobre Jorge Sanjinés, Miguel Littín, Lucia Murat e Jefferson De com ardor, para estabelecer pontes entre suas filmografias. A Mostra de Tiradentes alcançou a potência que tem ao ser redesenhada por um crítico, Cléber Eduardo. E segue hoje com grandes intelectuais - como Lila Foster, Francis Vogner dos Reis, Tatiana Carvalho Costa, Camila Vieira e Felipe André Silva - em seu timão. Mas há sempre que se estar atento e forte para ranços ideológicos, como as sequelas da ditadura que nos podou o interesse em entender “cinema de gênero” para além das catacumbas do terror, limitando sobretudo nossa relação com a fantasia nas telas, por haver nela um traço de códigos hollywoodianos (é o que alguns dizem). No Brasil, o fantástico vira sociologia num sopro e igrejas burguesas enaltecem registros de pobreza que estão mais próximos de uma catalogação etnográfica do que da poesia. Mas, ainda assim resistimos. Pensamos. E, sem perder a ternura, provocamos.

 

Texto da autoria de Rodrigo Fonseca, crítico de cinema, dramaturgo e pesquisador, integrante da equipa do C7nema e titular do blog P de Pop do jornal O Estado de S. Paulo

Século XXI: a sobrevivência estóica do “blog” cinematográfico

Hugo Gomes, 13.07.22

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Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002)

A relativa perda de abrangência dos “blogs”, particularmente os de cinema, nos últimos anos, diz menos do caráter de sobrevivente daqueles que ficaram do que os tempos de superabundância no qual vivemos: há filmes produzidos numa quantidade impossível de serem distribuídos e divulgados adequadamente; há canais de expressão para o “cidadão comum” numa escala nunca antes imaginada.

O cinema vive uma crise de superabundância, onde milhares de filmes, muitas vezes sem um horizonte maior do que uma exibição num festival de cinema ou umas poucas sessões num centro cultural, são produzidos. Isso significa que a maioria está fadada a um circuito minoritário, algo que não anula a sua relevância mas, certamente, reduz o espetro do público de um “blog” de cinema que pretenda dedicar-se ao cinema alternativo.

Neste sentido, a democratização geográfica permitida pelo “streaming”, potencializando uma multiplicidade de proveniências que o circuito de salas, dominado por três ou quatro companhias nunca permitiu, não ajudou em igual medida na inclusão do espectador em formas narrativas distanciadas do tradicional story telling”. De qualquer forma, em termos temáticos, possivelmente encontram-se algumas ousadias mais do que o dito “cinema alternativo”, pressionado pelas agendas da “representação” e da “inclusão”.

Já o dito “cinema comercial'', tampouco, está seguro e vem enfrentando crises que parecem não ter fim nos últimos anos - primeiro a pirataria, depois o “streaming” e, para colmatar, uma imprevisível pandemia que afastou as pessoas das salas por dois anos. Em países como Portugal, esse afastamento deixou sequelas: os níveis de frequência às salas nunca retornaram. O cinema pode assim, cada vez mais, confundir-se com a televisão - o que representaria a sua derrota estética definitiva. 

Ao mesmo tempo se, como dizia Eduardo Coutinho, notório por “dar voz” aos humildes que não a tinham, “ao expressarem-se as pessoas legitimam-se a si próprias”, não são menos múltiplos os formatos e canais com que hoje “cidadãos comuns” conseguem entrar num terreno que antes era espaço privilegiado da imprensa “oficial” (leia-se, dos grandes grupos de comunicação). Isso, como sempre, trouxe o melhor e pior ao mundo: de um lado significa que pessoas inteligentes e capazes que não encontraram espaço no mercado consigam dar vazão aos seus conhecimentos e interesses; mas, de outro, certamente, trouxe uma explosão de conteúdos que têm como marca maior a superficialidade.

A crítica, por seu lado, pressupõe um juízo de valor mas, como dizia François Truffaut na sua introdução de “Os Filmes da Minha Vida”, o cinema é a única arte (basta pensar na literatura ou na música), onde qualquer um acha-se à vontade para considerar-se um crítico. Essa “confiança” é tal que até livros sobre o tema são escritos por amadores bastante limitados.

Assim, no meio do maralhal, o “blog” de cinema é um estoico sobrevivente.

 

*Texto da autoria de Roni Nunes, jornalista, editor do site CulturaXXI, colabora com o C7nemaSapo Mag

Takes Festival Política 2022: relembrando as pessoas nem que seja por escrito

Hugo Gomes, 04.05.22

Alcindo 

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Há um cuidado redobrado em tecer uma crítica que seja a um documentário da natureza deste "Alcindo'', filme que começou por ser um projeto de mestrado é agora convertido numa assumida produção de remexer consciências. Partindo do brutal assassinato de Alcindo Monteiro - vítima do ódio radicalista de um bando de skinheads decididos a causar o caos no Bairro Alto, naquela fatídica noite de 10 de junho de 1995 - Miguel Dores tenta interligar mais um punhado de casos anteriores e posteriores para prevalecer a sua tese de racismo estrutural. Contudo, é naquele momento em que o advogado de defesa da família de Alcindo, mapeando aqueles bairros de Lisboa com os dedos, descrevendo todas as vítimas e os desacatos envoltos até chegar à figura-chave e o homicídio cuja sua resolução iria mitigar a expansão da extrema-direita nos próximos anos, que encontramos o dito filme.

Neste caso, possivelmente iludido com o método académico de apontar para pista A, B e sucessivamente até a sua teoria não possuir mais ponta alguma de questionabilidade, Dores conseguiria dizer tudo aquilo que pretendia em poucos tópicos, aliás focando somente no crime, a sua investigação e o seu julgamento. Ao invés disso, é um puxar de acontecimentos, numa estrutura “salta-pocinhas”, dando a sensação de chover no molhado quanto ao tema.

Esta seleção, corte e concisão, não impediria de “Alcindo” ser um “dois em um”, um relato de um crime hediondo que envergonha um país ainda seguro da sua “hospitalidade” (no qual confunde com empatia e por sua vez uma prova à nossa sistemática abjeção racial), ao invés disso navega “não por outros mares”, mas por outras correntes com esperanças da vinda de ventos de cariz emocional. Ou seja, para uma tese no pretexto de abordagem a um caso criminal, Miguel Dores cede ao sentimentalismo como perfeita arma de empatia, só que esquece da exatidão desse mesmo arsenal.  

 

O Teu Nome É

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Em paralelo com "Flee", de Jonas Poher Rasmussen, o nosso “O Teu Nome É” subscreve a animação como um velcro concentrado de histórias e delas sublinha a sua Humanidade além das fronteiras do real.

Funcionando como um documentário que reúne depoimentos de simpatizantes e agressores do caso Gisberta Salce Júnior (transexual brasileira torturada durante vários dias por 14 adolescentes num edifício abandonado, acabando por morrer, em 2006), Paulo Patrício tenta descortinar mais do que uma verdade, desvendar a consciência perante esse crime e as repercussões do mesmo. É um embate de olhares, de gestos e de trincheiras perante um só monumento - à memória de Gisberta - e através desses ditos e feitos costurar uma teia de relações a algo mais subconsciente que os corpos. A animação transveste o que poderia ser uma estética de reportagem / investigação, atribui uma nova pele, novas expressões e dinamismo ao credo. O que para muitos poderá ser uma distração, para outros é o processo de retirar Gisberta do rótulo de “mais um caso”, auferindo-lhe uma vida para além da sua morte.

A animação assume o seu papel, e acima disso, reivindica o seu direito de existência fora do conceito de “miudagem” e no panorama português, o qual, mesmo sob a alçada de grandes mestres a níveis mundiais (José Miguel Ribeiro, Abi Feijó, Regina Pessoa e a ascendente Laura Gonçalves), continua a ser renegado à segunda liga pelas mais variadas instituições, personalidades e cultos intelectualizados.

 

A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha

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O atual cenário político tem impulsionado o cinema brasileiro a expressar as suas reflexões, críticas e descontentamentos, seja na ficção por discursos diretos ou metáforas distópicas, seja no documentário, com principal enfoque ao "impeachment" de 2016.

Nesse sentido, a juntar a exemplares como o cru “O Processo” de Maria Augusta Ramos (2018) ou o embelezado “Democracia em Vertigem" de Petra Costa (2019), chega-nos “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha” do jornalista Pablo Lopez Guelli, título apropriado de um slogan presente em várias manifestações de extrema-direita brasileira (ou somente fruto do medo instalado por um demonizado “comunismo”), um prisma focado na tendenciosidade da imprensa brasileira, e como estas influenciam a política brasileira assim como as vontades coletivas. Tendo depoimentos de Noam Chomsky e de Glenn Greenwald, um dos fundadores do jornal online The Intercept, o filme de Guelli esquematiza o oligopolismo dos media ao longo da sua história, especializando nos cruciais tópicos que levaram à ascensão de Jair Bolsonaro à presidência. Através desse desencantamento inquisitor, esboça o paradoxismo da nova presidência em que as “fakes news” e outros meios alternativos de propagação de “notícias” (entre aspas para não existir dúvidas) adquiriram uma emancipação frente à incentivação da imprensa oficial brasileira.

Por sua vez, o documentário, persistindo numa estrutura esperada do seu formato (imagens de arquivo, manchetes de jornais e “talkings heads”), tende em glorificar os meios independentes (que se assumiram como "mídia ninja”), não com isso especificando as diferenças destas com as veículos de manipulação noticiosa. “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha” sabe apontar o dedo mas é pouco esclarecedor na sua abordagem.   

Takes Monstra 2022: Morrer ou sobreviver, porque a animação é mais do que um instrumento para crianças

Hugo Gomes, 07.04.22

Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente

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Matar eu sei, e mato muito bem”. O cartoonista brasileiro Angeli fez da sua conhecida irreverência um extra mortal, a capacidade de dispensar afetivamente as suas personagens, conduzindo-se a um estatuto de Deus perante elas. A criação para que no momento exato, desfira o golpe de misericórdia. Angeli é convertido em personagem de stop-motion em “Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente”, animação com traços intimistas do artista que embarca na sua plena crise artística, como também a sua relação (ou aparente desapego) com as personagens que geraram do seu imaginário, incluindo o punk anarquista do título até ao seu pesar em forma de Rê Bordosa.

Para qualquer adepto do trabalho do cartoonista na igualmente irreverente revista “Chiclete com Banana”, o trabalho assinado por Cesar Cabral, apresenta-nos uma descida existencial a essa mente que como todos os artistas soa-nos perturbada, e que o seu ato predileto, o de “matar” personagens interpreta-se como um forçado crescimento tendo em conta que estas suas criações são parte do seu “eu”. Porém, este é um filme que desafia o próprio Angeli, colocando-o em xeque com a questão das questões: o que adianta crescer se isso implica perder um pouco de nós? Laerte, outra importante cartoonista do panorama brasileiro, deixa aqui a sua presença neste delicioso híbrido de tom rançoso para com a restante Humanidade. Nos debates que decorrem em tom de urgência atual, os limites de humor vão ao encontro da personalidade destes humoristas de satirizar os antagonistas da sociedade assim como os hipócritas da mesma.  

 

Even Mice Belongs to Heaven

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Há qualquer coisa de Antoine de Saint-Exupéry neste “Even Mice Belongs to Heaven” da dupla Jan Bubenicek e Denisa Grimmová, um tom adocicado e igualmente sábio que se aproxima da obra-mestra “O Principezinho”, conseguindo manobrar pelas ópticas das diferentes faixas-etárias. Ora, para quem acreditar piamente que este conto adaptado [do livro de Iva Procházková] em stop-motion - de uma rata e uma raposa que se reencontram no Paraíso e que a partir daí estão destinados a encontrar o seus próprios e respectivos caminhos (o sentido da vida verdadeiramente) - se resume a um filme exclusivo e de linguagem unicamente dirigida para o público mais infantil, perderá com isso a estrutura de um ensaio de superação que contraria facilitismos sensíveis por detrás da sua camada aparentemente imatura.

É uma história sobre a morte, aliás, sobre a perda direta e indiretamente, sem eufemismos nem suavidades, trazendo tais territórios e os tratando sem contradições. Porque há que lidar com as nossas perdas, sendo a partida destas a base da nossa maturidade, mas acima de tudo é a naturalidade com que encaramos a mais derradeira das perdas, a nossa existência, lição encoberta numa sociedade que parece esconder a sua mortalidade. Temas e abordagens constantemente negligenciadas para os mais novos, em resposta de uma preservação ainda maior do simbolismo da inocência (ou ingenuidade) na infância.

Hoje, desejamos atrasar até à extensão dos dias a Morte como tópico, dando a este universo infantil uma sensação anti-despedida, nada deixa ser vencido tudo tem uma solução. A grande fatia de filmes de super-heróis, por exemplo, tem-se sobretudo esquivado desse derradeiro destino encontrando alternativa ao fim dessas mesmas personagens, priorizando os seus atributos comerciais, mas cujo seu sucesso tem contributo para uma indiferença com a morte desde os “verdes anos” nesta geração de espectadores. Já não se fazem “Bambis”, mas "Even Mice Belongs to Heaven” é um recomendável antídoto.   

 

Flee

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Podemos pensar que o género do documentário é um género dependente das imagens alicerces ao seu tema, ou seja a necessidade da sua ilustração como autenticação dos factos, o que aponta-nos para uma determinada questão - o que fazer quando as imagens estão ausentes? O cambojano Rithy Panh tem contornando essa via através de uma figuração às suas memórias ou as dos outros com o utensílio de modelos, instalações artísticas ou cemitérios instantâneos. São as “Imagens que Faltam”, alusão à sua aclamada obra de 2013 [“The Missing Picture”] que tão bem serve como mote da sua carreira. Já “Flee”, de Jonas Poher Rasmussen, a “falta de imagens” tornam-se na sua maior arma, condensando as memórias de Amin (refugiado afegão que se abre no seu divã para contar a sua história de vida e de sobrevivência), a uma animação de rotoscopia que deixa fluir esse aspecto memorialista sem nunca confrontá-lo com real (neste caso a imagem), mesmo que as de arquivo surjam ocasionalmente para temporalmente contextualizar.

Enquanto isso, Rasmussen reafirma o universo da animação para lá do “entretenimento infantil”, e sim, um motivador de narrativas, um engenho criativo para que o cinema não reduza à sua estandardizada formalidade. Apesar disso, não podemos fugir a um simples factor, o cariz humanista com que “Flee” emprega no estatuto “refugiado”, palavra que tem-se colado a uma definição pejorativo e de fácil uso político, e ao mesmo tempo apontado para esse coletivo e concentrar numa história individual com os seus individualismos. É na base da empatia de um só indivíduo que basta para estimular uma optimização nossa enquanto seres humanos. “Flee” é, em todo o caso, um filme humano sem nunca vergar pelo panfletarismo ou a militância. De compaixão e de paixão, é do que é feito este cinema.    

 

La Traversée (The Crossing)

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Enquanto “Flee” remete-nos ao individualismo na condição de “refugiado”, nunca escondendo as suas origens para bens identitários da sua personagem (Amir vive da sua nacionalidade e dela parte para o seu debate existencial), “La Traversée” / “The Crossing” de Florence Miailhe especifica um país não identificado para restringir-se a um planificado exemplo de história-base desse mesmo campo. Sabendo que nos é avisado desde a abertura da obra que o filme abordaria um relato na primeira pessoa e de vivências em si marcantes para a autora, não podemos deixar de sentir uma estrutura Dickeana de infortúnios e desventuras, ora fabulistas, ora próximas às vivências de milhões. É um “coming-to-age” no limite das suas forças, sem com isso desligar-nos ao grande papel do filme em questão, a sua estética, desenhos à mão que ilustram esta jornada de jovens deslocados das suas origens, rodeados por “lobos famintos” que se aproveitam do seu miserabilismo. Nesse aspecto, é uma aposta arriscada que encontra interesse no seu artesanato, mas que se distancia do calor humano destas personagens. O belo fica, mas tudo soa passageiro, e até certo efeito, como a vida, onde as possibilidades são efêmeras, reféns da vontade do tempo.  

 

My Sunny Maad

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Com 'Swallows of Kabul', o recente 'Flee' e agora o seu ‘My Sunny Maad’, ficamos com a ideia de que a melhor forma de chegar ao Afeganistão é por via da animação?” Perguntei à realizadora e animadora Michaela Pavlátová (do oscarizado “Reci, reci, reci …”), confrontando-a com este “agrupado” de coincidências. A resposta que obtive não foi esclarecedora. Coincidências, será isso mesmo, ou a impossibilidade de retratar um país algo abstrato, que oscila entre mudanças sociopolíticas, e que atualmente vive essa regressão deixando o ocidente e o seu desejo de ocidentalização em um estado impotência? Questão que faço sem esperar resposta alguma, contudo, é com filmes como este “My Sunny Maad” que percebo a quão próxima a animação é para nós.

Inspirado no livro “Frista” de Petra Procházková, o enredo começa e prossegue num “olhar estrangeiro”, uma infiltração a uma família afegã que não é mais do que o espelho da sua sociedade. Nomeadamente “My Sunny Maad” é uma denúncia às diferenças entre homens e mulheres nessa contemporaneidade, pressentindo ser a história de uma mulher europeia que cai na “armadilha” do “exotismo” do seu marido, acabando por se aprisionar a esses costumes que a minimizem enquanto ser humano. Porém, é aí que a “porca torce o rabo”, Pavlátová não tem intenção de elaborar um panfleto unicamente focado no direito das mulheres, pintando elas como vítimas nas mãos de “homens-bestas”, a sensibilidade dela encontra-se sobretudo no retrato desses mesmo elenco masculino, brutos ou dóceis incompreendidos, ou acima de tudo, vítimas da sociedade onde inserem. Rompe maniqueísmos, conquista-se o espectador pela cativação com este mesmo e disfuncional grupo familiar. 

"A Nuvem Rosa": Não olhem para cima!

Hugo Gomes, 10.01.22

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A realizadora e argumentista Iuli Gerbase garante que a rodagem de “A Nuvem Rosa” aconteceu entre 2017 e 2019, sendo que qualquer semelhança com eventos posteriores seja a mais pura coincidência. E é um facto que este filme seja vítima-fenomenológica, o tempo lhe atribuiu um significado bem diferente, de conotações mais contemporâneas do que somente um figurativo modelo do mundano.  

Quando misteriosamente uma nuvem de cor rosada paira sobre o mundo, matando instantaneamente quem a respira, um novo mundo nasce através dessa permanente ameaça, ou melhor dizendo, adapta-se. Cada vez mais restringidos aos seus espaços domésticos, a Humanidade tenta evoluir perante esse limite cénico, tentando reconfigurar o seu quotidiano, ora de promessa temporária, face à pacificação do seu redor. “A Nuvem Rosa”, primeira longa-metragem de Gerbase, não se assume como um ensaio cataclísmico (quem sabe não era um retrato do Brasil de hoje, agora distorcido pelo tempo), ao invés de focar na destruição do Homem e da sua pisada, aponta a lente para o acidental casal, Giovana e Yago (Renata de Lélis e Eduardo Mendonça), atraídos por um “one night stand” que, longe de saber, viria a perdurar até a um encontro de uma nova definição de família.

Mesmo não tendo sido a inicial intenção, “A Nuvem Rosa” perfeitamente veste a pele de colectânea pandémica, apressando e aproximando a um novo movimento fílmico, não um estilo artístico e criativo, mas a relação para com um cinema pós-pandémico, constantemente à nossa realidade, não estética, mas intimista coletiva. Tal como a Segunda Grande Guerra, que culminou num outro tipo de gesto cinematográfico (ou o 11 de Setembro que alterou o campo semiótico do cinema norte-americano), o COVID19 demarcou uma linha separadora entre um cinema que olhava para o futuro como garantido, e um cinema de resiliência, tomado na construção do nosso “novo quotidiano” e do cotão aí surgido. Mais um vez, sublinhando a sua ignorância quanto a eventos futuros, Gerbase encostou-se na inconsciência … que pertinente inconsciência!  

Fakes news”, charlatanices esotéricas, a construção de um “novo normal”, a repugna e resistência para com o mesmo, a saúde mental, a nossa dependência virtual que mais tarde desaguará na nossa carência emocional, até mesmo nas transformadoras lides com o sexo na sociedade, e o voyeurismo cada vez mais normalizado e entranhado nas nossas suplicias, está tudo lá, basta procurar no meio daquele confinamento. “A Nuvem Rosa” é, contextualizando com o nosso presente, um antecessor de "Don't Look Up” de Adam McKay, uma tragédia à nossa fúria humana e uma sátira moralista ao nosso caos amoral. Exercício de reflexão resultante de um exercício de outras e distintas reflexões.

Sérgio Tréfaut reencontra o "Paraíso": "Conseguir mostrar este filme aos que sobreviveram foi muito importante."

Hugo Gomes, 22.09.21

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O cinema de Sérgio Tréfaut não é politicamente isento, devemos salientar isso. Há nele uma fervura política que se sustenta de braço dado com a História, o contexto que torna a sua obra num reencontro entre passado, presente e, possivelmente, o vislumbre do futuro.

Multi-premiado realizador de trabalhos como “Viagem a Portugal”, “Lisboetas” e “Raiva”, já está nos cinemas "Paraíso", o seu emotivo retrato de uma comunidade de anciãos, “órfãos” da sociedade contemporânea, que se reúnem no ex-jardim presidencial de Rio de Janeiro para, simplesmente, cantar. Uma comunhão de vozes, experiências e repudias ao último sopro de vida. Estes “velhotes”, que guardam uma “raiva danada”, encontraram nesta melodia partilhada um fulgor de vida.

Infelizmente algo lhes foi retirado: abandonados por um sistema que não os consegue inserir no plano, o realizador resgata as suas vozes e memórias, contando as suas histórias e ritmos esperançosos.

Sem querer desvendar muito, gostaria de começar pelo final, um filme sobre música, dança e vontade de viver que nos deixa, subitamente, desolados logo ao início dos créditos finais. Tendo em conta aquilo que vimos no cartão, questiono-o como está a sua relação com o Brasil neste momento?

Acho que, como grande parte da população, há uma certa sensação de impotência. Somos pigmeus perante a política. Países democráticos como Portugal podem pensar que o Brasil tem o que escolheu, o que não é bem assim. A Assembleia é composta por 30 a 35 % de partidos que ditam os valores e depois temos 70%, ou quase, de deputados mercenários. 

Nesse sentido, Jair Bolsonaro continua no poder, mesmo que existam centenas de pedidos de impeachment contra ele e de cometer diariamente atos que são criminalizáveis, e insultos às demais instituições, como o Tribunal Federal, Tribunal Eleitoral, etc., porque comprou essa parte de deputados. Para alguém se manter no poder, tem que negociar constantemente com esses mercenários, esse “centrão”. Lula tinha uma capacidade negocial, fazendo acordos com inimigos, que causaram graves problemas ao longo do tempo. A Dilma tinha essa capacidade diminuída, era um desastre de negociação, sendo que, no seu segundo mandato, os mesmos que eram os seus aliados e a elegeram votaram num impeachment em que não acreditavam. 

Ou seja, a presidenta foi vítima de um golpe de estado, que o próprio Michel Temer confirmou em espaço televisivo, porque não conseguia negociar com essa facção de deputados. Bolsonaro comprou-os, aqueles que atacou durante a sua campanha eleitoral. Por outras palavras, o que se passa atualmente no Brasil é difícil compreender à luz democrática, principalmente em países europeus.

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Sérgio Tréfaut na rodagem de "Paraíso" / Foto: Beto Felicio

Resgato essa impotência, talvez seja a descrição exata para aquilo que sentimos no final do filme. E que sente no final dessa experiência?

A impotência para com a morte das pessoas? Claro, qualquer um sente essa impotência. Quando temos um presidente que trata a COVID-19 como “gripezinha”, que luta contra os confinamentos, define a vacina como desnecessária e adverte que quem a tomar se converte em “jacaré”. Um Ministério da Saúde que constantemente tenta adiar a administração dessa vacina e membros desse governo que tentam ter benefícios de um dólar por vacina. Nós, cidadãos, sentimo-nos impotente face ao horror.

Podemos encarar “Paraíso” como um filme político?

Paraíso” não foi um filme que tenha sido feito com um programa político, ele foca a sensibilidade de uma população. Ele torna-se importante politicamente porque mostra como eram felizes as pessoas que o governo brasileiro deixou deliberadamente morrer. A frase mais dita pela Presidência da República era “morre quem tem que morrer”, ou seja, o filme torna-se político no sentido em que diz que “pessoas com 70 ou mais anos de vida têm o direito a serem protegidas, à felicidade”. Não há essa de "quem morre tem que morrer", apenas morre quem o Governo incompetentemente deixou.

E quanto ao título? Uma provocação?

O título teve origem numa imagem dada ao Novo Mundo ao longo dos séculos. O Brasil foi definido como um "Paraíso", mais à frente como um "Paraíso Perdido", depois os índios é que viviam no "Paraíso", a Amazónia é o "Paraíso"... Para além da questão pandémica, havia também uma destruição permanente deste "Paraíso", do território indígena à Amazónia, tudo, ao longo do século XX. Recentemente, Caetano Veloso esteve em Lisboa e cantou uma das suas músicas, dos anos 1970, chamada “Um Índio", que soava aos nossos ouvidos como ficção científica. É uma música muito bonita, mas que abordava a exterminação da última cultura indígena. Hoje em dia, essa letra deixou de ser ficção científica para passar a ser profética. Por isso, este título "Paraíso" é toda uma referência a uma História, cultura, livros, filmes que mencionam algo que existiu no Brasil, mas que tende a ser destruído. O que começa com este microcosmos de pessoas de idade avançada.

Saindo do espectro político, o filme apresenta-nos a música como um caminho para uma felicidade tardia. Uma das testemunhas declara ter sido impedida de cantar e dançar pela família e pelo marido. Só após a viuvez é que pôde integrar estes convívios. Ou seja, uma nova oportunidade para quem a vida é ainda mais inconstante.

Exatamente, não acho que o filme seja pessimista. “Paraíso” fala-nos de uma realidade, que é a realidade daquelas pessoas, de que é possível ser-se feliz numa idade avançada. Por vezes, quem não é de tal idade vê-se mergulhado em comprimidos contra a sua própria depressão, quando a terapia musical e o simples convívio funcionariam como um tratamento mais barato e eficiente para essa solidão crónica. Anteriormente, tinha feito um filme sobre o canto alentejano intitulado “Alentejo, Alentejo”, onde cheguei a essa mesma conclusão, que a população idosa também cantava e era feliz desta maneira. Trata-se de um método terapêutico, este de estarmos em contacto com a nossa raiz musical. “Paraíso” é um filme positivo sobre a felicidade. O único pessimismo que existe é a consequência da pandemia, que entra num contexto histórico que vai ao encontro do próprio processo da noção de paraíso.

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Nesse sentido, encontrou uma nova, ou talvez a genuína, vibração no “Não Deixem o Samba Morrer”, de Alcíone, uma das canções mais populares aqui interpretadas.

Uma das ‘coisas’ que gosto nestas personagens é que, por vezes, elas são intérpretes mais poderosas e perfeitas do que algumas celebridades da música brasileira. A maneira como essa senhora, Cléuza, com os seus 85 anos, canta o “Não Deixem o Samba Morrer”, é como se brotasse da terra o canto, a pura legítima representante de um país, mais do que, por exemplo, a Maria Rita com a mesma canção. O que me fascina em “Paraíso” é que estas personalidades são anónimas e igualmente grandiosas. Nisso, estamos perante a verdadeira natureza do filme.

Um dos momentos que gostaria que me falasse é a performance de Ilka, a centenária com um desejo sobrenatural de cantar “10 Anos”, isto contra a decadência do seu corpo e da sua mente.

Sabe que a ‘coisa’ mais mágica que me aconteceu após o filme ter terminado foi o facto de ter organizado uma projeção no jardim para todas essas pessoas, e entre elas estava essa Dona Ilka, com os seus impressionantes 102 anos [risos]. Ela assistiu completamente vidrada à projeção e, no final, só queria abraçar-me e beijar-me. [risos] Foi muito emocionante. Algo muito forte que aconteceu nessa projeção é que aquelas mesmas pessoas não encararam aquilo como uma sessão de cinema, mas como uma das suas reuniões ao ar livre. No final de cada canção, aplaudiam, como se tudo tratasse de um espetáculo. Um comovente e muito bonito espetáculo. Conseguir mostrar este filme aos que sobreviveram foi muito importante.

«Paraíso»: canta-me "baixinho" para o meu ouvido essa cantiga "esquecida"

Hugo Gomes, 06.09.21

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Nas proximidades da noite escura, o jardim do Palácio do Catete (Rio de Janeiro), antiga sede presidencial, enche-se de anciões de várias idades com o intuito de celebrar a vida através das mais antigas canções de amor. Até certa altura, alguém cantarola com uma emoção contagiante e igualmente apelativa para que não se deixe o “Samba morrer”, a música de Aloísio e Edson Conceição ganha um duplo sentido aqui, uma invocação aos tempos que não “correm mais” e ao mesmo tempo à doce memória de uma juventude acabada e vencida. 

Sérgio Tréfaut (“Lisboetas”, “Raiva”), mais do que filmar, acompanha esta “raiva de velho danado”, como afirma Nicola, jocoso para com o seu permanente cansaço, proveniente do fardo que o corpo havia tomado. São vidas passadas, vidas sonhadas e vidas no limiar do fio das suas existências que comungam num Brasil, que o próprio realizador faz questão de relembrar, não existe mais. Políticas evidentes, a pandemia que os interceptou e a distância aprofundada entre as nações e indivíduos, os tais muros que nos impedem de olhar para o outro lado, o país de outrora, um outro país, somente e apenas preservado na lente (neste caso a lente de Tréfaut como o testemunho de uma extinção a decorrer). É um objeto simples, este que escuta os seus relatos, as suas rimas e sobretudo as suas melodias, não interessa o talento aqui, somente a sabedoria, ora apropriada, ora conservada, como aquelas letras esquecidas e igualmente sussurradas no ouvida da centenária Ilka, cuja vontade de cantar é mais forte do que o esforço de lembrar. Não minto, há toda uma emoção reunida, e uma triste derrota vinda dos corpos decadentes e das vozes que suspiram pelas suas áureas épocas.   

Acima de tudo, Tréfaut deu-nos um filme sobre a velhice, sobre o fim das nossas vidas, captadas como um festival, um alegre hino àquilo que nos resta viver. Nesse sentido, há uma congeneridade para com uma das grandes obras da nossa contemporaneidade - “Before We Go” de Jorge Leon - filme esquecido e sem campanha alguma que nos envolveu no centro de um bailado dos mais tristes corpos. Desta vez, a humildade é salientada pela simplicidade com que Tréfaut insere estes seus “velhotes”, não deparamos nestas bandas intelectualização, superioridades, nem mesmo a “pirraça” dos “verdes anos”. É uma homenagem. Uma sincera e bonita homenagem. 

Por vezes, o Cinema é assim, tão despido, mas tão emotivo. Viva o Brasil!

Não é só um edifício ... é História reduzida a Nada!

Hugo Gomes, 30.07.21

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Do outro lado do Atlântico há um edifício que arde, não é um edifício qualquer, é uma cinemateca, a Cinemateca Brasileira. Nela não estão apenas filmes, estão a História audiovisual de um país, que tal como acontecera há uns poucos anos com o Museu Nacional de Rio de Janeiro, as chamas consomem um país cada vez mais divorciado da sua própria identidade, desprezando os seus valores culturais e o seu legado. Dia triste, não só para o Brasil, mas para todo o Mundo, ao testemunhar Património a ser reduzido a cinzas.