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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Escutemos, porque a fantasia não mora aqui!

Hugo Gomes, 08.10.20

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Elaborar cinema social é quase visto como uma tarefa inglória. Porque em todo o caso há uma subserviência à ideologia política no qual se deixa instrumentalizar, que numa definição mais simples funcionam naquilo a qual chamamos de propaganda. Nunca fugindo da politização, até que o cinema nunca deve ser imparcial (ambíguo pode, imparcial é impossível), o cineasta britânico Ken Loach é um dos grandes exemplos de como a arte narrativa opera como uma arma de tremenda e prolongada luta, nesse caso, a da dignidade da classe operária, por vezes corrompida pela onipresença do capitalismo selvagem.

Num encontro com a imprensa, a portuguesa Ana Rocha De Sousa referiu, assertivamente, não se rever nas comparações, que entretanto, têm sido feitas da sua obra com Loach. A realizadora sublinhou que não tinha em mente esse cinema enquanto compunha “Listen”, e essas ditas paralelizações provavelmente teriam sido suscitadas devido à crueza e crueldade com que ambos abordam as suas respetivas e determinantes batalhas. Porém, é verdade que a sua formação na Escola de Cinema londrina a colocou indiretamente nessa onda de dito realismo social, um exercício quase minimalista nos quadrantes narrativos que tem como foco principal expor um sistema devastador e bárbaro, eticamente falando.

Nesses termos precisos, “Listen” é um filme-denúncia que cumplicia com uma família portuguesa que tenta a sua “sorte” numa Londres longe dos “postais de visita”, e sob o constante olhar predatório da segurança social inglesa. Convém, salientar a sua frontalidade no discurso mesmo que a narrativa esteja retalhada de maneira a fomentar uma prolongada sessão de tortura a estes protagonistas (Lúcia Moniz naquele que é indiscutivelmente o seu melhor papel), impotentes perante um sistema que não os protege e acima de tudo, que não os compreende. Não existe compaixão por estas burocracias questionáveis com ares de BREXIT aludindo permanentemente as suas ditas fundamentações, mas às suas "vítimas" é reservado um trabalho minuciosamente emocional e igualmente expositivo para com o seu “caso de estudo”.

Portanto, a simplicidade originária desse enredo montado pelo somente essencial (basta exercitarmos e refletir qual das sequências é por si dispensável à saúde narrativa para entendermos o quão economizado está esta estrutura) tornam “Listen” um filme a merecer ser ouvido e que o consegue, sem deambulações nem embelezamentos agravados.

A juntar a isso, um final dúbio que assenta que nem uma luva a todo este expoente de (in)justiças, não maquilhando esta extensa dor. Ana Rocha parece estar afim desse choque de realismo, até mesmo na desconstrução da inicial fantasia cinematográfica. Longe do sintético e fascinado pelo natural e austero das relações afetivas, metaforicamente comentado pela personagem Lúcia Moniz, que no início deste processo algo kafkiano, dirigindo-se à sua filha (Maisie Sly) que contempla o redor do seu fabricado biótopo – “É um avião, mas eu prefiro os pássaros.” Contudo, a dor não é acalentada, apenas adormece preparando-se no contínuo da guerra.

Listen: Há filmes que simplesmente precisam ser ouvidos com atenção

Hugo Gomes, 09.09.20

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Um filme-denúncia dissecado por Ken Loach e todos esses cantos e recantos do cinema social. “Listen”, que erradamente tem servido de arma instrumental para guerras antigas, é um objeto curioso das suas próprias desgraças, num desencanto abalável que contrai momentos de pura emoção (muitos deles sustentados pela melhor das melhores Lúcias Moniz). É simples, digamos, sem espinhas, mas apoiado por uma coluna vertebral frágil e mesmo assim seguro da sua força. Curioso para ver esta visão à inglesa aplicada mais vezes no nosso cinema, nem que seja o seu caráter ativista e sem rodeios, sem floreados e à sua vontade, cru. Há qualquer ‘coisa’ em Ana Rocha.

Falando com Rodrigo Areias e do seu "Surdina", o "filme mártir" do pós-COVID-19

Hugo Gomes, 09.07.20

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Realizador, produtor e argumentista, Rodrigo Areias (“A Estrada de Palha”, “Ornamento e Crime”) soube construir, graças aos seus talentosos amigos, uma comunidade cinematográfica que sempre resistiu às adversidades da nossa (inexistente) indústria – a produtora Bando à Parte. Agora, chega um pequeno filme como realizador que nos sussurra alguma esperança nestes tempos de incerteza: "Surdina" é uma das produções portuguesas que tomou o risco de abrir a temporada do cinema após quase três meses de salas fechadas e com isso, adquire um novo significado e uma nova força.

Colaborando com o escritor Valter Hugo Mãe, apresenta-nos uma superação à moda vimaranense do viúvo (pelo menos assim o pretende ser) Isaque (António Durães), que tenta lidar com a comunidade em que se insere e parece estar constantemente contra a sua forma de luta. Conversei com Rodrigo Areias sobre a importância deste seu filme nos tempos pós-COVID-19, as dificuldades que a sua produtora, assim como grande parte do cinema nacional, enfrentarão no futuro e a musicalidade como sua marca autoral.

Como surgiu a ideia para "Surdina" e, acima de tudo, como nasceu esta colaboração com Valter Hugo Mãe?

Na verdade foi há alguns uns anos, quando li o seu romance “O Remorso de Baltazar Serapião” e que gostei muito. Contactei-o, mencionando uma possível colaboração. Ele respondeu-me com entusiasmo. Depois encontrámo-nos na sessão de estreia do “Corrente” [2008] no Curtas Vila do Conde, onde ganhou o prémio da competição nacional e o do público. Na altura, o Valter disse-me que gostou e a partir daí trabalhámos juntos na concepção deste trabalho.

Depois conjugou-se o facto das origens de ambos serem vimaranenses. A família dele, quer paterna, quer materna, é oriunda de Guimarães, assim como a minha. E como tal, concordamos em abordar este concelho como metáfora desses meios pequenos. O filme recebeu uma nova interpretação com esta pós-pandemia. Há uma mensagem de esperança, progressão e, sobretudo, superação. Voltou a vê-lo depois disto? Encontrou esse novo e adquirido significado?

Quando a [distribuidora] NOS nos pediu para “reabrir” os cinemas com “Surdina”, achei, obviamente tendo em conta a dificuldade que é levar as pessoas às salas nesta altura, que fazia sentido, até pela própria mensagem de esperança que o filme traz. Principalmente para uma geração que, durante esta pandemia, de certa forma é a mais visada e a mais prejudicada. Por isso encontrei nisso um motivo de alento para lançar o filme neste período crucial. Anteriormente, no pré-pandemia, não necessariamente, mas agora, sim, olho para ele de outra maneira.

E quanto à banda sonora? Gostaria que me falasse do trabalho com Tó Trips e sobre esse constante invocar de bandas sonoras de outros seus filmes. Neste caso, “Ornamento e Crime” [2015] pode ser ouvido e “visto” a certa altura. Como se conjuga este seu universo de sonoridades?

Na verdade, somos todos amigos, uns dos outros. O era para ter entrado na banda sonora da “A Estrada de Palha” [2012], mas acabou por não integrar, na altura não foi possível. Enquanto isso, o e os Dead Combo trabalharam noutras produções do Bando à Parte, até com filmes de animação. No “Ornamento e Crime”, o protagonista comprava um vinil do “Tebas” e neste filme, como até havia a questão dos pássaros e da gaiola, achei por bem que o disco do “Ornamento e Crime” tivesse um "cameo" musical. Sendo que, para o próximo … quer dizer, o próximo será um filme de época, por isso não será … mas futuramente será possível mencionar a banda sonora do “Surdina” noutra produção. De certa forma, é uma invocação constante.

A primeira parte desta pergunta, poderá ser respondida com a primeira parte desta resposta. O trabalhou connosco várias vezes, até mesmo como artista gráfico, porque ele normalmente faz quase todos os cartazes dos filmes do Bando à Parte. No fundo, falamos regularmente um com o outro, como disse, somos amigos. Mas antes da produção do filme, o já fazia parte do processo, por exemplo, na própria candura, já haviam notas da composição a serem trabalhadas por ele. Só a partir do guião! Tó fez sempre parte da génese do projeto.

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Uma curiosidade: uma parte do filme decorre dentro de uma, digamos, tasca, onde servem vinho em taças...

Sim, aquilo existe [risos]. E bebe-se mesmo vinho. Aliás, vinho verde tinto que é típico aqui da região, naquelas taças. Enquanto rodávamos o “Surdina”, a ASAE, obedecendo às suas leis “puritanas”, fecharam cerca de seis estabelecimentos como aqueles. Só não fecharam aquele que está no filme porque fica em frente à GNR [risos]. Por isso, acho que ninguém vai fechar aquilo [risos].

Mas todo este “Surdina” é de uma realidade reconhecida e ao mesmo tempo mística, pelo menos para quem vem da cidade.

Para mim, o filme é muito próximo da minha realidade. Mesmo aquelas vizinhas são pessoas que conheço. São representações de duas irmãs, uma já morreu, a outra até está viva. Bem viva, porque filmávamos a quatro casas ao lado da senhora e chegou a emprestar-nos os vasos para essa mesma cena. Aquilo foi um processo meio de espelho. Algumas pessoas são reais, não são atores, como por exemplo, a velhota da mercearia, a senhora da padaria ou o homenzinho que está à porta da tasca. São pessoas reais a serem atores, obviamente, a fazerem de si mesmos, e achei por bem convidá-los a fazer parte do filme de forma descomprometida. Mas para mim, “Surdina” é toda uma realidade muito próxima.

No Festival Ymotion do ano passado [em Famalicão], falou no seu painel sobre o espírito de auto-ajuda e por vezes familiar de Bando à Parte, que vem atenuar as dificuldades constantes de produzir cinema em Portugal. Julgo que disse algo como “os financiamentos não subiram e os valores mantêm-se os mesmos, o custo de vida é que aumentou, o que significa menos dinheiro”. Como vê essa resistência nestes anunciados tempos escassos da pós-pandemia?

Neste momento, os custos aumentaram radicalmente. Não somente os de "vida", como também os de produção, que tiveram uma subida substancial. Por razões óbvias e de saúde pública é preciso ter uma série de outros cuidados, que são muitos complicados, face à nossa precária situação cinematográfica nacional.

Só para dar um exemplo do que estamos a viver hoje, visto que sou produtor. No “Não sou Nada”, o novo filme do Edgar Pêra, enquanto produtor tomei a decisão de alugar um hotel, ter toda a equipa alojada e fazermos uma quarentena cinematográfica. Uma segurança, no fundo, porque as regras impostas à atividade cinematográfica não são suficientes para garantir a segurança das pessoas. Não é só [uma responsabilidade] legalmente minha, em termos de produtor, mas moral.

Quanto aos custos, um filme que, à partida, terá menos capacidades financeiras, passará a ter mais dificuldades. Só para ter uma ideia, serão mais de 100 mil euros de custos automáticos só na questão da COVID-19. Estamos a falar de mudanças na nossa vida diária e da produção normal. É lógico que a situação se torne mais difícil.

Em certa parte, a estreia de “Surdina” nas salas converteu-se numa espécie de consolação?

O filme estava previsto estrear a 16 de abril. Na verdade, este é um filme com um parco financeiro da Telefilmes, uma coisa feita com os TVCine. Ou seja, a NOS já estava envolvida no processo desde a sua génese. Por isso, o filme é feito com um sexto do orçamento de uma longa-metragem normal, mas já estava prevista a sua estreia em sala, isso estava determinado. Agora, neste momento, a questão que se colocava era se teríamos coragem para o lançar agora, ou esperaríamos para ver como isto se desenrolaria.

Em relação à retoma, tem de ser algo relacionado com toda uma estratégia coletiva. Nós produzimos vários filmes, muitos deles esperando estreias em festivais, que se acumulam com mais outros filmes e a encavalitarem-se uns nos outros, seria uma situação muito complicada. 

Outra questão, que discuti com a NOS, foi a de que alguém deveria ter a coragem para arrancar. Porque se toda a gente adiar, se todos nós tivermos medo dos números que se vai fazer, então não se estreia filmes. E não estrear filmes levanta todo outro problema. É um ciclo vicioso, esse de estar à espera que algo aconteça. E como acredito que temos de ser nós a tomar uma decisão e não ficar somente à espera… pronto… é isso.

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Digamos que “Surdina” vai ser um mártir?

Sim. Mas não será só o “Surdina”. Haverá muitos outros filmes que sairão prejudicados com a falta de números nesta altura. Mas de certa forma, alguém tem que contribuir para que esses números possam crescer e voltar a uma “dita” normalidade. E é aí que esta questão dos cine-concertos serem importantes para esta nova realidade [com a música de Tó Trips: a digressão arranca no Cinema Trindade no Porto, com sessões às 19h30 e às 22h00 de 9 de julho; passa por Centro Cultural Vila Flor em Guimarães dia 10; pelo NOS Amoreiras de Lisboa a 15; e em Aveiro a 16; outras salas pelo país serão anunciadas mais tarde].

É óbvio que a maior parte dos cine-concertos foram cancelados tendo em conta as regras de segurança e saúde pública que vêm sendo alteradas ao longo destas últimas semanas, mas efetivamente os cine-concertos trarão mais pessoas para verem o filme, mais promoção, e mais, espero eu, boca-a-boca. Nesse sentido, seremos sempre mártires, porque até os cine-concertos só podem ter 50% da lotação, e a última vez que embarcámos nestas iniciativas foi com “A Estrada de Palha”, em concertos de The Legendary Tigerman e a Rita Redshoes, que tiveram todas as sessões esgotadas. Agora, será com metade da lotação e nem metade dos cine-concertos agendados poderão arrancar!

Quanto a novos projetos? Esta pandemia obrigará a repensar rodagens e produções agendadas?

Neste momento, temos muitos filmes a serem preparados, grande parte deles ficaram parados na pré-produção. Quanto às rodagens, teremos este novo do Edgar Pêra que começaremos a rodar já em agosto. Depois, honestamente ainda não sei se as previsões de filmagens de outubro ou novembro se mantêm ou serão adiadas para o próximo ano. Neste momento, as decisões terão que ser tomadas sem grandes antecedentes, se não as nossas previsões vão todas por água abaixo. Temos que ir fazendo “coisas”. Não dá para ver.

«Surdina»: Sussurrando nos nossos ouvidos, a esperança de mais um Dia

Hugo Gomes, 08.07.20

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Já se tornou corrente mencionar que o “tempo destrói tudo”, como se de um slogan de conveniência e de irredutível verdade se tratasse, mas, aqui, o tempo parece ter também os seus dotes de restaurador. Falar de “Surdina” atualmente é referir um hiato crucial desde a sua estreia agendada nas salas nacionais (em abril) até ao seu definitivo lançamento, após três meses de confinamento. Como tal, uma realidade drasticamente alterada perante uma crise de ordem mundial iluminou esta longa-metragem assinada por Rodrigo Areias (“Ornamento e Crime”, “Hálito Azul”) com uma nova luz.

O luto ficcional de um homem, Isaque (António Durães, com os seus ares de Anthony Quinn), que acobarda-se perante a real situação que vive, adquirindo com isto uma mensagem de esperança e superação das imensas adversidades que nos prendem a “bestas” enclausuradas que grunhem desalmadamente. Obviamente que o cuidado visual, sonoro e metaforizado deste suposto retrato da “portugalidade” ainda existente nos cantos e recantos vimaranenses, é fruto da dedicação e união da equipa da resistente produtora Bando à Parte, do seu realizador (cada vez mais focado em dinamizar o panorama cinematográfico nacional) e de um escritor visado a argumentista (Valter Hugo Mãe), num sustento esforço de invocações memorialistas.

É um “recuerdo” com ares de bucolismo, um retrato vivente de um país ainda refugiado no seu quotidiano costumeiro e tradicional, e dos maneirismos típicos que são restringidos à sua ruralidade. Quase como um filme-comunidade, Rodrigo Areias consegue com a sua maturada candura, uma resistência revitalizadora e desprendida perante os futuros incertos, sincronizado com a banda-sonora de Tó Trips, uma nota para a mais evidente marca autoral do seu cineasta. Aqui, as sonoridades da sua carreira dialogam umas com as outras, conectando-se através de uma corrente, uma partitura sob a composição constante, para ser ouvida e “vista” sem encriptações.

Um pequeno e agridoce filme para abrir o nosso apetite ao desconhecido.

Se não passa na “rádio Tuk-Tuk” é porque nunca existiu

Hugo Gomes, 24.02.20

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“Nós e os espanhóis é que inventamos a globalização, e hoje é a globalização que nos lixa”

Afirma o condutor de tuk-tuk (João Patrício) num dos seus enésimos trilhos turísticos por uma Lisboa, que segundo o próprio, vive na sombra daquilo que fora e que se debate quanto à sua identidade. Paulo Abreu (“I Don’t Belong Here”) concretiza em “Alis Ubbo” um mapa sobre as diferentes metamorfoses da capital portuguesa, desde a sua germinação nas margens do rio “Tagus” [Tejo] sob a assinatura fenícia (o título do filme advém da primeira e oficial designação) até à idealização de um quinto império, uma utopia harmoniosa apenas centrada no imaginário de Fernando Pessoa.

A curiosidade neste documento que utiliza e reutiliza as imagens e os sons num prolongado método de mixagem, encontra-se na cadência do seu registo fílmico que compõe uma atribulada e invulgar jornada pela história da cidade, sempre pontuando a sua ironia. É um filme turístico, mas não sob o ponto vista do turista, e sim de quem acarreta os “estrangeiros” de passagem na redescoberta de uma Lisboa vendida à ilusão (será este o dito quinto império?).

O nevoeiro abate-se logo nos primeiros minutos, isso depois do letreiro reafirmar uma das perdas do património citadino, destruído por via desse processo de exposição à estátua de D. Sebastião, o “messias” perdido na bruma marroquina. E após a dissipação, um cruzeiro atraca no porto (Ventura é o que se lê na sua proa, hoje tido como uma coincidência política de mau gosto) “despachando” de seguida os “cidadãos de outros mundos” que vieram “contaminar” Lisboa numa caótica Torre de Babel.

São as diferentes línguas que se amontoam e dificilmente é mesmo ouvir o português perante essa barafunda linguística, somente palavras soltas, aquelas que o condutor de tuk-tuk profere para explicar “à portuguesa” o percurso histórico da cidade, ou da “Rádio Tuk-Tuk” que se ouve lés-a-lés e que contextualiza todo este cenário.

Não se trata de lições de histórias aquelas que Paulo Abreu deseja difundir nesta sua obra, e sim um registo de uma cidade em movimento, instalado como um oásis turístico, a “faca de dois gumes” para a salvação da sua identidade e ao mesmo tempo o seu caminhar para o anonimato; a dita “globalização”. “Alis Ubbo” provoca essa silenciosa discussão, enquanto premeia um ritmo de passagem em toda esta jornada por quatro estações e um punhado de séculos vividos.

Sim, breve e efêmera, como um  guia turístico.

Há Tempo para degustar o Cinema! Arranca o 4º Close-Up, Observatório de Cinema de Famalicão

Hugo Gomes, 10.10.19

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Les Yeux sans Visage (George Franju, 1960)

O Tempo destrói tudo, isso é mais que sabido, mas ele também constrói. Constrói uma perspetiva, uma noção e acima de tudo a História. Neste caso a História do Cinema, que é novamente revisitada no CLOSE-UP – Observatório de Cinema, neste seu quarto episódio, como é habitual, a ter lugar na Casa das Artes de Famalicão, entre os dias 12 a 19 de outubro.

Novamente, uma programação recheada de filmes, concertos, temáticas, round tables e muitos convidados naquela que já é a mais respeitada comunhão de cinefilia do país. E voltando ao Tempo, a História do Cinema que é constante revista, CLOSE-UP contará como prato principal dois acompanhamentos musicais a dois dos grandes clássicos do cinema russo; o sempre incontornável “Battleship Potemkin” / “O Couraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein, com a Orquestra de Jazz de Matosinhos a condizer, e o aclamado filme de Boris Barnet, “The House on Trubnaya Square” / “A Casa na Praça Trubnaya”, onde os Mão Morta assumem uma original banda-sonora. Já nas sessões especiais, a História do Cinema pelos olhos delirantes de Quentin Tarantino, “Once Upon a Time... in Hollywood”, e a antestreia da mais recente obra do filipino Brillante Mendoza, que volta a debruçar-se pela teias criminosas e marginais de Manila em “Alpha: The Right to Kill”.

A fortalecer a temática do Tempo, ainda temos o historial condensado num folhetim imagético em “Le livre d'image”, do sempre intemporal Jean-Luc Godard, ou do tempo enquanto dispositivo manipulável em “John McEnroe: O Domínio da Perfeição” / “L'empire de la perfection”, de Julien Faraut. A Lenda e o Contemporâneo do atual Cinema Francês, dois pontos de partida para uma das secções fundamentais desta anual mostra cinematográfica – Histórias de Cinema – que nos brinda com um Passeio pelo Cinema Francês com dois protagonistas: Agnès Varda e Jean-Luc Godard.

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Halito Azul (Rodrigo Areias, 2018)

Aí, para além dos filmes da cineasta que apaixonou gerações pela sua criatividade e dinamismo e o realizador que continua a fomentar cinefilias, passearemos por alguns dos clássicos ante-Nouvelle Vague de uma das cinematografias mais fortes a nível internacional. Será o brilhante “Les Yeux sans Visage”, de George Franju, ou a viagem pela metrópole americana em “Deux hommes dans Manhattan”, de Melville, ainda as histórias trágicas e tragicómicas de “Le Plaisir”, de Max Ophuls, e até mesmo um dos mais belos casamentos de imagem e música de “Ascenseur pour l'échafaud”, de Louis Malle, a fazer as delícias dos amantes de cinema? A resposta é sim.

Na também habitual Fantasia Lusitana, espaço dedicado aos ascendentes protagonistas do cinema português, conheceremos (ou revisitarmos) o trabalho de Eduardo Brito, realizador, argumentista e fotógrafo, descrito pelo seu olhar perfeccionista e dedicado aos enquadramentos. Aqui deparamos com uma seleção de curtas da sua autoria, incluindo a estreia de Úrsula, como também vídeos experimentais, videoclipes e ainda uma longa-metragem escrita pelo próprio com a realização de Rodrigo AreiasHálito Azul”.

O cinema terror também terá o seu tempo de antena, ao integrar o espaço de Cinema do Mundo, este ano centrado no género profundo (“Mandy”, “The Love Witch” e “It Comes at Night”, compõem o trio de sessões que explicita o terror e o medo na América). Além disso, o CLOSE-UP contará ainda com sessões dedicadas às escolas e de família, com as exibições de “Toy Story 4” e “The Lion King”, como ainda tempo exclusivo para o legado de João César Monteiro, onde serão mostradas algumas das suas curtas como ainda lidas os seus poemas. Para a cadência das suas palavras, Isaque Ferreira será o responsável pela leitura.

O Mar ... a última fronteira!

Hugo Gomes, 05.08.18

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O Mar … aqui acabam as palavras. Aqui acaba o Mundo que eu conheço.”

Quase como uma aura magnética, Portugal como muitos países mediterrâneos sempre declarou ser um amante do grande azul. Foi através deste que nos inspiramos para o mais recordado momento da nossa História (Descobrimentos para alguns, Expansão Marítima para outros, não estamos aqui para debater sobre isso). Como tal, essa fascinação foi traduzida (assim o tentaram) pela literatura (pela grande epopeias de Camões e da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto), pelo teatro (Gil Vicente e as barcas do mar do além) e, como é óbvio, pelo cinema. Nessa estância, quase todos os grandes autores da nossa cinematografia banharam-se no oceano; Pedro Costa atravessou-o e aí redescobriu-se; Manoel de Oliveira pensou no horizonte marítimo como uma nova identidade lusitana (mesmo que isso tenha gerado um dos seus filmes menores); Cláudia Varejão prometeu-nos sereias; e Joaquim Pinto aventurou-se por Rabo de Peixe, talvez sob trajetos próximos do de Rodrigo Areias.

“Hálito Azul'' é isso mesmo, um desvio ao encontro da comunidade da Ribeira Quente, em São Miguel, nos Açores, num período crucial para o tradicionalismo de uma das suas atividades principais – a pesca. Através desse impulso, a aventura não brava os setes mares mas segue ao encontro de uma população que não esconde os seus vínculos com o Oceano, todo o seu quotidiano e atividades gira envolto desta imensidão. Rodrigo Areias poderia seguir por dois caminhos já atravessados: ou focava-se na temática pretendida ou deambulava como uma corrente. Nesse caso, “Hálito Azul” apenas saboreia as ondas, flutuando pelo seu ritmo, mas nunca escapando à sua objetiva, ao mesmo tempo que nunca abraça as “marés” do cinema de investigação. Como tal, originou-se um filme polivalente nas suas abordagens, de uma certa forma invocado uma metalinguagem para que a pesquisa fosse feita, olhando para o tradicional da mesma maneira com que encara o folclore de marujo.

Contudo, é na sua “estranheza” para com a modernidade que se vai implantando nesta comunidade, que “Hálito Azul” demonstra de “peito aberto” a sua renúncia pelo cinema social. Possivelmente, o dinamismo da obra fala por si e Rodrigo Areias, homem de mil ofícios e de experimentos, deixa-se banhar pela docuficção (ou pela simples encenação da realidade) para interpolar dois mundos distintos como a peça de teatro que aqui enquadra-se numa espécie de reflexo infinito. No final deixamos Ribeira Quente envolta de mistério, os eremitas do farol previam isso, o “fim das palavras”. Deixamos sim, com saudades, porque por um lado fizemos turismo rural … não caindo no sentido pejorativo do termo. 

O Nada como Absoluto!

Hugo Gomes, 07.05.17

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Eis o magnetismo quase xamânico que o deserto do Arizona parece emanar no Cinema, e não só (assim de repente, recordamos as desventuras alucinogénicas do vocalista dos The Doors, Jim Morrison, imagem eternizada pela cinebiografia de Oliver Stone). Aquela força inspiradora que funde as personagens com a aridez do cenário. Um espaço de reflexão existencial, um marco onde as road trips se encruzilham com os vínculos interiores. É a cénica que fala, e cuja oralidade “silenciosa” sobressai, mais do que os dilemas dos seus peregrinos.

Em “Fade into Nothing”, a estreia de Pedro Maia nas longas-metragens, longe se está de fugir a tal destino. Um destino que encontramos em territórios já pisados por Wim Wenders e do seu mentor Nicholas Ray, essa paixão pelo correr contra o tempo e do deserto que constantemente invoca um prolongado transe. Sim, esta colaboração do realizador com Rita Lino (direção artística e fotográfica) e com o artista Paulo Furtado, mais conhecido entre nós como The Legendary Tigerman, que executa de forma espirituosa a este enésimo conto de uma procura existencial em terras californianas, nada faz de diferente.

Contudo, aqui não se trata de reencontrar ou encontrar o ser interior, ao invés disso é-nos apresentada uma ambiciosa jornada pelo nada, a conversão de um indivíduo cheio de palavras, sonhos, projetos, experiências, todo um recheio que no fim reduzir-se-á a isso mesmo – nada. Abaixo do número unitário e do indivíduo propriamente dito. Um percurso musicado, filmado como um diário sob o formato de 16mm, como um found footage de um pretendido vazio.

O nada do filme, é um estado de alma, uma etapa alcançada com a ajuda de estupefacientes, um exercício mental em prol de um transe sem objetivo. “Fade into Nothing” revela essa mesma fase, um experimentalismo reduzido ao vazio, um vácuo de palavras feitas e desfeitas num ápice, a pretensão do ensaio visual e a performance como estado emotivo de um filme que se joga em território sensorial (há uma tendência quase jodorowskiana em todo este retrato), e não na incutida sobriedade.

Certamente, não será “Fade into Nothing”, o filme que “salvará” o cinema português, mas aí questionamos, precisará o nosso cinema ser salvo? Muito menos por um filme que invoca o nada como a sua arte?