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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"Sanzaru": pelos traumas profundos do terror

Hugo Gomes, 20.01.20

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A grande força deste “Sanzaru” situa-se no que não é dito e no que é invisível aos nossos olhos. Xia Magnus estreia-se nas longas-metragens com um híbrido dramático no dito cinema de género: um terror psicológico que intersecta na artificialidade com que aborda o sobrenatural, da mesma forma que Reygadas executou no seu delirante “Post Tenebras Lux”, sem receio em contornar a credibilidade.

O enredo centra-se numa “anciã” (Jayne Taini) que resiste em vão à demência numa casa isolada algures no Texas. O filho (Justin Arnold) desta refugia-se numa caravana nesse mesmo terreno, tentando exorcizar o stress pós-traumático de uma guerra no Médio Oriente. A casa, esse esconderijo para os segredos mais obscuros, pelas entidades misteriosas que são tudo menos passageiras e pelos fantasmas que assombram as ‘vivalmas’, é “guardada” por Evelyn (Aina Dumlao) e o seu irmão Amos (Jon Viktor Corpuz), dois filipinos, cada um com segredos, os quais tentam manter seguros nas sombras.

Como se pode verificar, num prisma generalizado, este é um filme que retrata um meio caminho para a regressão, personagens sob o selo dos traumas que se confrontam perante o iminente desvendar deles. Um pouco ao sabor do título, “Sanzaru”, que segundo Xia Magnus refere-se à designação japonesa do provérbio dos três sábios macacos (não ouça o mal, não fale o mal e não veja o mal), um símbolo de uma passividade harmonizada do budismo. E é sobre essa “cantiga” que percebemos a essência e a construção desta obra que foge sobretudo do óbvio modelo das “casas assombradas” ou das permanências do terror fácil e didático. A “Sanzaru” apenas falta-lhe uma expressividade quanto ao seu terceiro ato, que surge algo apressado perante um desenvolvimento em lume brando que tenta sintetizar os dramas pessoais e com isso entregar-nos figuras que correspondem ao ente trágico de toda esta variação de género.

Como primeira longa-metragem, Xia Magnus vai num bom caminho. O aprumo, isso, é algo que poderá surgir em próximas jornadas. Por enquanto, eis uma proposta de alguma forma exótica num certo tipo de terror norte-americano, aquele que não “lambe” as feridas de uma nação, mas que “escarafuncha o dedo” nelas, de uma América, mais que tudo, traumatizada.

Os gatos de Calcutá

Hugo Gomes, 06.02.19

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À noite todos os gatos são pardos e nas ruas de Calcutá são testemunhas dos vagabundos deambulantes que procuram satisfazer a sua tremenda agonia, com isto integrando uma criminalidade sem rodeios. Eis um relato da droga e o seu respetivo Universo, as consequências de tais atos que se disfarçam de Noite numa cumplicidade para com a belíssima fotografia de Shreya Dev Dube e os enquadramentos perfeccionistas do estreante Ronny Sen.

Indiciamos aqui uma “sopa” de Trainspotting com toques e tiques de Tarkovsky. Sim, para primeiro filme, “Cat Sticks” é uma pequena pepita, um banho de técnica e destreza, filmado com punho de quem se quer afirmar num exausto panorama. Porque essa saturação vai ao encontro da realidade indiana, o senso comum que só dispara Bollywood, a exuberância desse mundo de excessos, esquecendo a vaga marginalizada do seu cinema autoral. O filme prevalece como esse herdeiro, talvez não da vanguarda da década de 60 (o círculo de Satyajit Ray ou de Ritwik Ghatak), onde a cinematografia indiana virou-se para temáticas sociais, mas sim a fasquia de autor em constante sobrevivência na penumbra da megalómana indústria (assim como as personagens de “Cat Sticks” que se escondem no oculto para terminar o vicioso arrasto que tornou as suas vidas).

Sob uma narrativa mosaico, Sen espelha um quadro de miserabilismo estético, quase encontrando um fascínio pela decadência destas figuras representativas que apelida de personagens, e das suas tramas em ebulição. Enfim, é uma acusação ingrata visto que muito cinema de Hollywood bebe de iguais desgraças, convertendo-as em artifícios circenses, enquanto “Cat Sticks” remete-nos para um olhar de uma certa sensibilidade, mesmo que distante para fins quase “higiénicos” com a sua cinematografia.

É um filme de algumas arestas a serem limadas, porém, é uma revelação quanto ao apreço pelo visual. Será Ronny Sen um nome a ter em conta no futuro?

Daniel Barosa: "A extinção do Ministério é algo preocupante e triste, mas precisamos seguir, a cultura não pode morrer!"

Hugo Gomes, 28.01.19

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Boni Bonita é um canção, uma melodia que remete a sentimentos, desejos, juramentos e até mesmo desilusões. É a união e ao mesmo tempo desunião destes foragidos do destino. Beatriz, uma argentina radicada em São Paulo, que após a trágica morte da sua mãe submete-se à deriva da estrada até se cruzar com Rogério, músico que aguarda o seu momento de reafirmação na indústria. Dois fracassados, cujas falhas, de cada um, resultam numa relação tempestuosa.

Boni Bonita” é também o título da segunda longa-metragem de Daniel Barosa, realizador que se aventura nesta coprodução com a Argentina para encontrar a luz da ribalta na arte de narrar. Filmado a 16 mm sob um potencial de intimismo quase caseiro, “Boni Bonita” integra a Competição de Slamdance, festival de cinema independente e de baixo-orçamento nos EUA.

Falei com o realizador sobre este projeto e os seus próximos, assim como a cada vez mais difícil arte de fazer Cinema no Brasil.

Como surgiu a ideia para este filme e como foi avançar para uma longa-metragem de ficção?

A ideia surgiu com a personagem da Beatriz, que espelha muitas experiências vividas por mim e do produtor, Nikolas Maciel, na cena de música independente de São Paulo no começo dos anos 2000. O guião começou a ser desenvolvido em 2011 e a ideia era fazer uma longa-metragem de baixo orçamento, já que seria o meu primeiro.

Claro que tivemos dezenas de obstáculos. Filmar ao longo de 3 anos acho que acrescentou bastante à narrativa, mas foi o equivalente fazer três longas em 3 anos, pois sempre implicava renovar toda a nossa estrutura de produção. Trabalhar com película no Brasil foi um desafio à parte, já que durante a filmagem, o único laboratório que revelava no Brasil fechou! Tivemos que levar o filme para revelar no México e depois escanear na Argentina. Deu bastante trabalho, mas valeu a pena! As imagens em película no filme ficaram lindas e acrescentam muito ao seu proposto clima nostálgico.

Queria que me falasse sobre a escolha de Ailín Salas como coprotagonista? E se isso foi algum requisito da coprodução?

Desde as primeiras versões do argumento, sabia que o filme só funcionaria se achasse a atriz perfeita para o papel de Beatriz. E é muito difícil achar alguém jovem com experiência, ainda mais no Brasil onde esse perfil de atores tende a trabalhar mais na televisão. Enquanto escrevia Boni, vi a Ailín no filme “La Mirada Invisible”. Ela tinha um papel pequeno, mas na altura vi que seria perfeita para Beatriz! A Ailín tem um olhar e presença muito forte. Ela fala muito sem dizer uma palavra! Quando descobri que tinha nascido no Brasil, pensei na hora que tinha que conseguir ela para o meu filme! Conheci a Ailín no Festival de Mar del Plata, o qual estava presente com a minha curta “A Tenista”, e ela se interessou pelo projeto, apesar do desafio de atuar em português (algo que ela nunca tinha feito). A coprodução surgiu a partir daí; foi o resultado de ter a Ailín no projeto.

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Sobre o enredo, é curioso este retrocesso na atualidade e ao mesmo tempo encontrar uma época onde se inveja décadas passadas, até como Ney Matogrosso menciona “viver como os 80”. Acha que o Brasil, tendo em conta os eventos da atualidade, este regressar é uma solução (algo fantasioso) para as incertezas do futuro?

Não sei se esse regresso seria uma solução, mas o caminho que estamos a seguir é perigoso e assustador. Há uma nova mentalidade extremista a crescer no Brasil, e no mundo, que já existiu no passado e vimos que foram momentos tristes da nossa História. Acho muito importante revermos sempre o passado para não repetir os mesmos erros, mas infelizmente, não está acontecendo isso.

Em relação à coprodução, tendo em conta a extinção do Ministério da Cultura Brasileira e as crescentes dificuldades de fazer cinema no Brasil, qual é a solução para sustentar a produção audiovisual e cinematográfica do país?

Acredito que sim. A extinção do Ministério é algo preocupante e triste, mas precisamos seguir, a cultura não pode morrer! Sempre achei o modelo de coprodução no cinema, especialmente entre países latinos, uma ótima oportunidade, pois estamos unindo forças para sobreviver num meio dominado por Hollywood. A coprodução, além de ajudar os projetos financeiramente, possibilita uma troca cultural importante. Todos os projetos ganham com isso.

Fale-nos da composição e significado da canção homónima criada para “Boni Bonita”.

A música foi composta por Jair Naves, um músico o qual admiro muito. Conversamos bastante sobre o que seria essa canção e ele teve a ideia de criar algo que remetesse a uma espécie de cruzamento entre samba e bolero, com uma atmosfera das gravações dos anos 50. Ele contou com a ajuda do Renato Ribeiro, que criou a linda base de violão. A letra foi feita traçando um paralelo com o argumento do filme e praticamente reconta a história da Beatriz num tom poético, inspirado na MPB

Novos projetos? Ambições para o futuro?

Temos três projetos, os quais estamos a desenvolver em paralelo. Desta vez nada de filmar ao longo de três anos! Acho que o meu coração não sobrevive ao stress e à ansiedade! Tenho um argumento de uma comédia romântica que estou a escrever com Sílvia Antunes, um drama estilo coming-of-age, sobre a comunidade de brasileiros em Miami e “Oferendas”, um filme de terror que estou a desenvolver na produtora com o Nikolas Maciel [“Nimbo’s Film”]. Oferendas entram bastante no mundo da Umbanda e Candomblé e acredito que tem um potencial comercial maior. E vai ser uma coprodução também!

"Lost Holiday": a jornada da inconsequência e do caos

Hugo Gomes, 27.01.19

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Lost Holiday” é descrito como uma comédia negra de contornos dramáticos que indicia becos existenciais para nos levar a uma autodestruição positiva, a necessidade de um indivíduo encontrar um novo significado para a sua vivência, nem que para isso renegue todo um “rasto” deixado. Por entre um forçado hedonismo, Margaret (Kate Lyn Sheil) e o seu amigo de longa-data Henry (Thomas Matthews), convencem-se estarem prontos para decifrar um rapto que decorrera na sua vizinhança, partindo assim numa caótica investigação por meios recreativos. Através dessa missão de última hora, Margaret espera esquecer as suas desilusões amorosas e a vida desamparada pelo qual está passivamente aprisionada.

Num registo a cair no mumblecore, esta primeira realização incentiva um constante olhar para com o passado, de forma a que este, sob um jeito flashback, adquira uma relevância fantasmagórica para o enredo que se desenrola. Tudo isso, joga em favor da trabalhada psicologia de Margaret, cujo corpo é guiado pelas forças do escapismo citadino e a mente que constantemente invoca um momento-chave da sua persona. É uma viagem existencial que deixa toda a ação conduzida num policial à paisana para segundo plano, um macguffin para sermos mais exatos quanto aos seus propósitos.

"Lost Holiday” é um filme sobre uma personagem só, endurecendo essa jornada e atentando um guia para o espectador conhecer o caminho e o caminhante num só combo. Contudo, é essa a sua grande fraqueza, esse afunilamento para com a protagonista atribui pouca interação com o resto do “gangue”, tornando-se numa obra míope e cujo défice força-a a uma deambulação oscilante que providencia algumas decisões duvidosas a nível de resolução de guião.

Mas a dupla Matthews evidencia aqui algum esforço em seguir as tendências do cinema indie norte-americano com um teor algo anárquico. Possivelmente, o futuro será mais que risonho para esta equipa, nem que seja uma “vingança” em circuitos mais modestos como a própria comunidade de cinema independente norte-americana. A ver vamos!

Nos trópicos da memória ...

Hugo Gomes, 27.01.19

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"Boni Bonita", a segunda longa-metragem de Daniel Barosa [a primeira ficção em tal formato], é um episódio de (des)união que remete a um hedonismo fabulista, uma fantasia que desvanece perante a necessidade de compromisso e que encontra lugar num Brasil que sonha com oásis remotos. Beatriz e Rogério são dois seres sem nada em comum para além das suas vidas fracassadas, o veio no qual se submetem a uma relação supostamente livre, refém dos acordes de “Boni Bonita”, dos calores da luxúria e do tropicalismo das suas pretensões. Mas até mesmo essa simbiose não sobrevive perante a ambição de ambos; ele, músico de 30 anos que espera pela sua oportunidade de fama, e ela, argentina radicada que tenta afastar-se do mundo que sempre conhecera e que desmorona perante a tragédia.

Filmado em 16mm de forma a condensar uma atmosfera igualmente misteriosa e íntima, “Boni Bonita” é acima do seu drama algo existencialista, um desejo de reconciliação com um país de outrora, imaculado perante os seus imperativos desejos, uns anos 80 refletidos num novo milénio assim como indica o artista Ney Matogrosso (aqui sob um especial cameo). Hoje, perante as atuais manchetes, deparamos com um pedido de retrocesso, um voltar atrás com um claro receio pelo futuro. Porém, este simbolismo encartado é somente fruto de um timing subversivo (o mesmo se aplica à coprodução de forma a devolver uma arte moribunda o seu grau subsistência).

Sentimos o grão anacrónico da imagem, o invocar de espectros de um cinema underground, intuitivo e sobretudo carnal, uma atitude que realça a derivação existencial pelo qual Daniel Barosa se perde. E nessa perdição, os seus atores principais, Ailín Salas e Caco Ciocler, tentam rasgar os seus peões do destino e emanar um química diversas vezes castrada por este olhar demasiado horizontal, força inversa à proposta de um filme, voluntariamente, limitado ao seu cerco.

Um longo título para nada!

Hugo Gomes, 25.01.19

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Nicole Brending repesca as bonecas da sua curta-estreia “Operated by Invisible Hands” (2007) para nos trazer o que inicialmente poderia ser indicado como “um retrato do século XXI”. Em jeito de “Vox Lux” (ou talvez não!), este “Dollhouse: The Eradication of Female Subjectivity from American Popular Culture” foca-se na fictícia ascensão e queda de uma jovem estrela pop passando pelos lugares-comuns que tomam forma os tabloides e as tragédias VIP.

Uma criança convertida em astro precoce, pressionada por uma mãe autoritária e controladora, inserida em escândalos sobre escândalos e um turbilhão de decadência ao som das drogas, álcool e sexo desmesurado, elementos que à partida levam-nos à base de muitas das famas “fabricadas” por aí tidas na indústria musical e cinematográfica. Brending expõe esse relato sob a cadência de um mockumentary (falso-documentário), ou falsa-reportagem chique se quisermos especificar, que acompanha em “exclusivo” os tormentos dessa problemática child star.

E a realizadora faz isso através de bonecas, um utensílio artesanal que o afasta da logística comum da atuação e corrompe a ingenuidade de tais brinquedos. Enfim, idéias que em outras mãos e em outras mentes resultariam numa crítica ácida às espinhosas voltas e reviravoltas da celebridade. Ao invés disso, “Dollhouse” proclama-se como um imaturo júbilo por parte da artista que cede à piada fácil, derivativa e ofensiva no ponto de vista que ridiculariza a comunidade LGBT (com a comunidade trans em especial consideração) e às novas gerações, sempre atribuindo-as a indignidade do ofendido fácil. É que na máscara do seu politicamente incorreto, Brending é uma feminista "conservadora" que olha de cima para todos os novos movimentos e ideologias de género (está acima do termo TERF, o qual muitos querem-lhe atribuir).

Com isto salienta-se, deambulando pela sua perversidade fingida e sem noção crítica, e sem paladar a nível cinematográfico (quer narrativamente, como tecnicamente, é tudo uma “brincadeira de crianças”), “Dollhouse” é uma experiência que resulta em inocuidade. Pior, como primeira longa-metragem é um sinal de incompetência. Simplesmente medonho!