"Il Buco" (2021)
Em agosto de 1961, ocorre a primeira expedição ao Abismo Bifurto, situado ao sul de Itália, naquela que é considerada uma das mais profundas grutas do Mundo. Michelangelo Frammartino extraiu dessa história, não só o relato, como também uma experiência, tentando com isso reproduzir a descida e "convidar" o espectador a participar nesta descoberta a um mundo subterrâneo governado pela escuridão e pelo ensurdecedor silêncio. “Il Buco”, o “buraco”, é esse filme-sensorial que merece o escuro do cinema e o misticismo do seu espaço. Pode não ser “storytelling” nem estética desconstrutiva, mas é entre os seus ecos que a experiência cresce, definitivamente, obrigando-nos a olhar para cima, para a luz que nos abandona gradualmente. Bem-vindo ao submundo!
Conversei com o realizador sobre o projeto na sua vinda a Portugal, durante a antestreia da Festa do Cinema Italiano, uma tentativa de decifrar o mistério da “gruta viva” e do cinema aqui praticado.
Não gostaria de começar esta conversa com a pergunta “de onde surgiu a ideia para este filme?”, ao invés disso, com o que o “levou a concretizar um filme desta maneira”?
Quis com este filme prosseguir, ao invés de descobrir, pretendia construir. Ou seja, seguir no trilho da profundidade de uma gruta não é, para mim, um ato de descoberta, antes um gesto de construção ou até mesmo de instituição. Através daquela gruta criei toda uma condição espacial, dimensional, de luz e até de pensamento, isto, baseado na própria natureza. Na escuridão da gruta deparamos com uma feixe de luz, o que condiciona o nosso olhar como também o motiva a construir uma imagem sensorial. Tentei levar à sala de cinema essa mesma imagem alegórica, a de olhar para o feixe luminoso, traduzida no crepúsculo vindo da cabine de projeção, uma imagem-construída e não uma imagem-descoberta.
Tal como o seu anterior “Le Quattro Volte" (2010), “Il Buco” partilha a mesma essência, a busca por um naturalismo e com isso encontrar uma "vértebra" mística. Há algo de além-físico nos seus filmes.
Tento proporcionar no meu cinema, que as ‘coisas’ falem por si, e não obrigá-las a “falar” - captar o seu naturalismo e não forçá-lo - e com isto também retirar a figura humana do centro desta paisagem fílmica, posicionando-a igual para igual com a Natureza no qual embarco. Aquilo que poderás chamar de misticismo, é antes uma comunhão entre tecido, a dos Homens com as ‘coisas naturais’. A espiritualidade não é mais a diluição de todos os materiais terrenos; humanos, animais, vegetais ou minerais.
Além da Natureza, existe em ambos os seus filmes uma figura humana central, apesar de tudo. Em “Le Quattro Volte” como em “Il Buco”, temos um pastor, o qual suponho que seja um vínculo entre Homem e o natural, ou seja mais do que uma personagem, um alternativo “ser místico", curiosamente não-atores. Não pude deixar de reparar, também, que o pastor é o único “humano” que filma em grandes planos neste filme. Isto tudo para lhe pedir que falasse sobre a sua relação e o seu processo de trabalho com os “não-atores”, e o facto de serem peças centrais na sua filmografia.
O protagonista de “Le Quattro Volte” e o pastor do “Il Buco”, que chama-se Nicola [Lanza], foram frutos de uma intensa procura. Quanto a Nicola, que já não está entre nós, não era uma pessoa dirigível durante as filmagens. Não conseguíamos dizer-lhe rigorosamente nada. É um problema recorrente em não-atores, principalmente daquela idade, a sua incapacidade de relembrar deixas e gestos para os filmes chegava a ser caricato.
Michelangelo Frammartino e a argumentista Giovanna Giuliani na estreia de "Il Buco" em Veneza
No caso do Nicola, notava-se, e nota-se em “Il Buco”, uma ligação fortíssima com aquele mesmo ambiente, com aquele lugar, com aquele “buraco”, coloquei essa presença como prioridade no filme, acima da minha intervenção na sua persona, porque como disse, pouco ou nada conseguia fazer dele, ou deixava tudo correr naturalmente ou teria que constantemente verbalizar com ele, o que seria uma tarefa hercúlea. Recordo de pedir-lhe num determinado momento para olhar para o horizonte - “Nicola, olha para ali” - automaticamente me respondia- “Não vejo nada” [risos]. Ou da cena em que o médico o visita, e supostamente a sua "personagem" encontrava-se numa fase de comatose, Nicola rompia o seu “papel” para informá-lo que estava bem [risos].
Se optasse por esta segunda opção, o de dirigi-lo ao máximo das minhas forças, provavelmente “Il Buco” seria completamente distinto, e possivelmente sem a ligação pretendida aquele lugar e aquela naturalidade. Nicola é como uma montanha, simplesmente longe de mim moldá-la.
Quanto à questão do enquadramento, se bem reparaste, os espeleólogos são filmados como um só corpo, uma só existência, Nicola, por sua vez, é emancipado, livre e soberano. Esteticamente, encontramos algo topográfico no seu rosto envelhecido, mais um ponto em comum com aquele território montanhoso e manifestamente resultante do tempo e da Natureza. Enquanto os espeleólogos exploram a caverna, a nossa câmara explorava a face de Nicola, que da mesma forma que a gruta tinha impressa nela toda uma história ainda por contar.
Ao ver “Il Buco”, tive a impressão que estamos perante um filme cuja rodagem seria ela própria um filme à parte. Foi arriscado a sua rodagem nesta gruta?
Chamam-lhe “gruta viva”, porque é uma gruta que constantemente altera o seu estado ao longo do ano. Tem ligação a um rio subterrâneo, o que nos possibilita entrar nela apenas em agosto ou em períodos mais secos, e quando começa a chover, temos exatamente uma hora para sairmos dali, visto que ficará novamente inundada.
Em junho de 2019, fizemos uma repérage lá, e repentinamente começou a chover, e a equipa ficou “presa” no seu interior. Fomos resgatados, um momento que chegou a figurar no telejornal nacional. Durante as filmagens éramos uma equipa de sete, todos com licença e preparação para descer a gruta, juntamente com mais sete espeleólogos que serviriam de segurança. Para além das condições agrestes do ambiente, lidamos também com um delay temporal. Imagina, para chegarmos a 300 metros demorávamos 5 horas, o que nos garantia apenas 1 hora de filmagem. A imagem, que provinha de uma pequena câmara trazida pelo diretor de fotografia, estava ligada à superfície por via de um cabo de fibra, eu supervisionava as mesmas de um pequeno ecrã no topo. Facilmente a escuridão apoderava-se da área, a luz era uma incógnita, pelo que diversas vezes teria que mudar um diafragma.
Naquele processo de filmagens, eu não era só o realizador, teria que também ser o futuro espectador daquele futuro filme, e como sentia-me impotente, porque a única intervenção que poderia fazer era somente a mudança do diafragma. Então a comunicação entre a superfície e as profundezas era quase impossível. Estava refém daquilo que o diretor de fotografia conseguia captar e registar.
Nicola Lanza em "Il Buco" (2021)
Gostaria de ‘tocar’ na “eterna” luta entre cinema em sala e streaming, referindo que “Il Buco” é definitivamente um filme imperativamente a ser projetado. É uma experiência sensorial, imagem, som, quase nos sentimos presos naquele “buraco”.
Como arquiteto, tenho a percepção que para cada objetivo há que utilizar diferentes materiais. No caso de “Il Buco”, pretendíamos um filme para sala de cinema e desenvolvemos-o para esse mesmo destino. Para outros projetos, poderão ser calculados para outras plataformas, e aí criaremos um filme com “outros materiais”, mas em relação a “Il Buco”, em termos de distribuição, sacrificamos muito para que fosse possível ser visto em grande ecrã. Com a vinda de festivais, como o de Veneza, recusei o uso de links. Praticamente “obriguei” a imprensa a vê-lo em sala para usufruir toda a experiência que “Il Buco” tinha a oferecer. A única excepção foi com os prémios Donatello [prémios de cinema italiano], o qual concordei, de forma a dar mais visibilidade ao projeto, principalmente nas categorias de som, garantir um link de visionamento à Academia.
Mas isso acaba por ser paradoxal, porque ver “Il Buco” em link, é ficar aquém das possibilidades do seu trabalho sonoro.
O problema é que o link de visionamento é um requisito para a candidatura do filme. Dessa forma não o conseguiria candidatar aos prémios.
Percebo, só que metade da experiência desaparece com esse tipo de visualização, a sonorização, que pouco se fala nestes contrastes, torna-se refém da poluição sonora em redor. No fundo, o envio de links para tal categoria, acaba por prejudicar a sua nomeação. É um pouco como o “Memória” do Apichatpong Weerasethakul, o qual o realizador tentou resistir ao máximo às outras formas de visualizações para tentar permanecer intacto a sua experiência sonora. Tal como “Il Buco” são filmes bastante sonorizados.
"Memória" é um filme incrível! Vi em Londres, no Festival, e foi uma experiência indescritível. Mas de qualquer modo, fico feliz que seja os espectadores a guardar a “experiência” de ver “Il Buco” em sala, os votantes são meras formalidades.