"Yupumá", atrás de um movimento onde a "alegria é a resistência": conversa com Verónica Castro e Kawá Huni Kuin
Yupumá (2024)
Era uma vez uma antropóloga na terra dos Huni Kuin, seguindo os preceitos estabelecidos pela antropologia de campo. No entanto, Verónica Castro tinha ambições diferentes; com uma câmara na mão, decidiu realizar um filme. O que poderia ter sido apenas mais um retrato do povo indígena amazónico revelou-se, nas suas palavras, um movimento. Tudo começou com a abordagem de Kawá, um aprendiz de pajé (curandeiro da aldeia), que lhe confidenciou um sonho que teve na noite anterior: viajar e conhecer a Europa. Esse sonho rapidamente se transformou num pedido - "Leva-me para a Europa".
Para isso, Kawá aprendeu outra língua, o inglês, para poder comunicar e transmitir aos europeus os costumes e a filosofia de vida dos Huni Kuin, denominada Yupumá, que significa o ato ou momento de fazer algo pela primeira vez. Hoje, após visitarem vários países, a dupla formada por Verónica e Kawá chega a Portugal. Com eles, além do filme cujo título é inspirado no conceito a ser difundido e da experiência do intercâmbio cultural, trazem um sonho de unir povos através de uma ideia.
"A alegria é uma resistência", perpetua Verónica, enquanto recebe o Cinematograficamente Falando... para uma conversa que nos transporta especialmente para aquela região do Acre brasileiro, às margens do rio Jordão, com a sua forma de ser em formato jiboia e a cultura representada por Kawá, que tem tantas histórias e impressões para partilhar.
O filme Yupumá” chega às nossas salas de cinema sob a produção Cedro Plátano.
É através do rio que chegamos ao seu filme, e a sua “presença” ao longo desta. Gostaria que me falasse sobre a importância do elemento no seu filme, e se a quase onipresença é de algum significado aos Huni Kuin?
Verónica Castro: A água, como se pode imaginar, é muito importante. Existe uma interdependência nela. É a água que nasce, a que vem do rio, como também a água que vem do céu, ou seja, tudo o mesmo, só que em momentos diferentes. É muito importante para a comunidade e não poderia chegar ao Kawá sem o rio. Com o rio seco, seria impossível. O rio é essencial.
No rio temos a canoa que não é só para transporte, mas para muitas outras coisas. A canoa é usada por muitos para dormir, para cozinhar, as crianças brincam na canoa, também se lava a roupa, ou seja, a canoa é um espaço. Mas voltando à água, a sua fundamentalidade: serve para cozinhar, beber, lavar roupa, para os animais e para banho, especialmente na Amazónia, que devido às suas temperaturas uma pessoa toma três ou quatro banhos por dia, e mesmo quando está no duche, sua. Isto tudo para dar uma ideia da importância da água para tudo na vida, e para a comunidade do Kawá, ela liga e interliga tudo e todos, portanto, porque não ligar o filme a esse elemento.
Kawá Huni Kuin: O rio Jordão, na nossa língua Huni Kuin, chama-se “Renê Yurá”. Renê significa rio, Yurá é povo, ou seja, é o Rio do Povo.
Quando pensamos no rio, em cada trecho que divide as aldeias, é como se ele serpenteasse como uma jiboia. Assim, conforme se avança pelo rio Jordão, após meia hora de viagem de canoa, já se encontra uma aldeia. Ao subir pelo rio, após essa meia hora de viagem, já se vê outra aldeia. É aí que começa a divisão, com um igarapé – um rio muito pequeno – separando as aldeias. Mais adiante, outro igarapé faz o mesmo.
Dessa forma, as aldeias ficam divididas entre os igarapés.
Quer dizer que o rio assume-se como as fronteiras entre aldeias?
KHK: Exatamente! [aponta para o mapa e dedinha a zona do Acre] Depois de chegar a essa aldeia, ao continuar a subir mais à frente, há uma reserva que ainda não é considerada terra indígena, mas, após uma hora de viagem, entramos em terra indígena. A partir desse ponto, chegamos a outro rio. Dali para a frente, é terra indígena. As águas dividem cada aldeia, dando nomes às aldeias. Aqui é um igarapé, que é um pequeno rio. Assim, temos uma aldeia. Depois de passar por este igarapé, encontramos outra aldeia. Portanto, o rio é importante porque também serve como limite das aldeias, uma fronteira natural entre elas.
Quando se chega a uma aldeia e se quer passar para outra, é preciso atravessar o rio a pé. Ao atravessar o igarapé, já se chega a outra aldeia.
Verónica Castro e Kawá na rodagem de "Yupumá" (2024) / Foto.: Cedro Plátano
Mas esse rio é inconstante, certo? Quer dizer, você o comparou a uma jiboia - bonita imagem -, quer dizer que essas “curvas e contracurvas” que o rio faz aí nesse mapa, pode alterar de um dia para o outro?
KHK: Hoje em dia, as coisas estão a mudar muito porque está a chover bastante e há muitas inundações. Quando alaga, o rio corre com muita força e derruba as árvores das margens, tornando o rio ainda mais diferente. Na época de Verão, o rio fica tão seco que nem uma canoa pode viajar. Por vezes, temos que andar a pé. No caso da canoa, apenas duas ou três pessoas podem ir para que a viagem seja rápida. Agora, se levarmos uma canoa com três famílias e crianças, é muito difícil. Demoramos quase três dias ou uma semana para chegar apenas à aldeia, porque é muito complicado e o rio seca muito nesse período. Quando enche, enche muito rapidamente e alaga completamente. O rio hoje está a sofrer este tipo de mudanças. Os nossos avós contam que o rio não era assim; era profundo tanto no tempo de verão quanto no tempo de inverno, durante a época de chuva. O rio era diferente, mas hoje está a mudar. Contudo, as voltas que faz, semelhantes a uma jiboia, são normais para o rio.
No cartaz do “Yupumá” [aponta para o poster do filme] representa-se a floresta, a terra, a água e a jiboia. Porquê a jiboia? Porque ela mora debaixo de um poço no rio Jordão e é muito grande. A jiboia também significa, para mim, que foi ela que nos ensinou a nossa geometria.
Mas acerca da decisão de incluir o rio como uma personagem central [voltando-se para Verônica Castro] …
VC: Essa decisão? Bom, quer dizer, é a vida na aldeia e também a vida na canoa. E também é uma vida em relação ao rio e para mim. Então, voltando ao mapa, quando mostrei que comecei, comecei no meu primeiro encontro com um aperto de mão. “Bem-vindo!” Oito dias na canoa e não havia nem perguntas, nem discussões, nem preparações; era algo que acontecia do nada, como se caíssemos de paraquedas.
Obviamente, essa experiência marcou-me por ser a minha primeira experiência com o rio e com as comunidades indígenas, porque estava nesta canoa com 15 pessoas.
Quinze pessoas!? De que tamanho eram essas canoas?
VC: Máximo tamanho o tamanho deste quarto [faz um gesto que especifica-se o redor da divisória]. Assim, só que mais fininha. Eu posso mostrar uma foto? Então, estava na canoa com 15 pessoas, uma família única e duas pessoas de outra etnia que chama-se Yawanawá e o condutor da canoa - um brasileiro que mora lá, da comunidade dos ribeirinhos - com a sua mulher e uma criança, também estava lá um outro antropólogo. Então, o que é que aprendi em oito dias na canoa? No segundo dia parei de perguntar quando chegaríamos, porque tinha percebido que o tempo não existia tal como conhecia. Depois do segundo dia, percebi que podia estar aqui para o resto da minha vida. Sim, com uma noção de tempo completamente dissolvida.
Eram aquelas atividades que mencionei há pouco que substituíram a noção do tempo. Era só navegar, e os pequenos momentos reforçaram a nossa relação com a natureza.
KHK: Quando viajamos, levamos a nossa comida dentro da canoa, cozinhamos enquanto navegamos ou então encostamos e preparamos a comida na praia. Fazemos pesca, recolhemos lenha e cozinhamos na praia. Por isso, a viagem demora muito, pois vamos fazendo essas paragens, mas depois continuamos a viagem tranquilamente.
VC: Mas não era só uma viagem de lazer. Estávamos a viajar com uma canoa alugada e o condutor queria levar-nos rapidamente, mas não podíamos ir contra a natureza. Aprendi muita coisa nesta viagem. Na minha primeira introdução, além da relação com a água e da perceção do tempo que se dissolve completamente, também aprendi como se organiza o espaço dentro da canoa. Percebi que era interessante estar dentro daquela canoa com duas etnias indígenas, o vizinho com quem eles coexistem, uma família ribeirinha, um brasileiro de 73 anos e um antropólogo que conhecia muito bem essas terras, tendo trabalhado lá por mais de 40 anos.
Foi um microcosmo de vida na Terra. Comecei a observar as relações entre as pessoas e como essas dinâmicas se manifestavam dentro da canoa. Coisas tão básicas como onde as pessoas se sentam, quem pode sentar-se à frente da canoa e quem vai conduzir.
Hierarquia?
VC: Não se tratava de hierarquia, mas de lugares. Sim, lugares e a maneira como os espaços são ocupados. Enfim, isso é outra história. Mas só para dizer que esta viagem de canoa revelou tantas, tantas possibilidades para eu desenvolver a minha pesquisa. Certamente, é por isso que o rio, a canoa e estas viagens são inextricáveis. Não se podem separar, pois são como um fio central que guia a narrativa.
Poster de "Yupumá" (2024)
Sobre essa questão da jiboia ensinar geometria, o qual também está claro no filme, essa relação com os animais. Para a sua cultura [virando para Kawá], cada animal teve um papel importante na aprendizagem humana.
KHK: Os animais são os nossos principais mestres da floresta. Os nossos mais velhos e os pajés [curandeiros] sabem contar essas histórias como se fossem mitos. Mas não são mitos, são histórias reais que aconteceram com os animais, numa época em que eles se comportavam como seres humanos, falavam, comunicavam com os parentes, e continuam a comunicar até hoje.
Temos essa história, uma das maiores sabedorias que transmitimos até hoje, porque aprendemos com essa habilidade, com os animais, com a natureza. Por exemplo, temos uma história sobre como o ser humano aprendeu a caminhar com o papagaio. O ser humano caminha igual ao papagaio, devagar, passo a passo. Havia outro pássaro que queria nos ensinar a caminhar, mas o seu caminhar era como o de um sapo, que pula. Se caminhássemos assim, seria diferente. Mas o papagaio caminha colocando um pé à frente do outro, como o ser humano.
Então, recebemos o caminhar do papagaio. Quanto à barriga, foi a barriga do japó [espécie de ave] que nos foi dada. Por isso, temos a barriga aqui. Se tivéssemos recebido a barriga do papagaio, ela estaria no peito, pois a barriga do papagaio é no peito. Então, eles decidiram: “Ah, tu vais dar o teu caminhar e eu vou dar a minha barriga.” Isso é um exemplo, essa história continua.
Para cantar, por exemplo, nós seguimos a tradição até hoje. Para as crianças começarem a falar, temos uma medicina chamada Eva, que tem o mesmo nome de um pássaro que imita outros pássaros. Quando a criança começa a falar, damos banho com isso e passamos na língua. Os animais são muito significativos para nós. Os mais velhos que cantam muito, que detêm o conhecimento, são como os canários, os cantadores. Aprendemos a cantar com o pássaro cantador, aprendemos com a jiboia e com outros animais, como a paca.
Cada um desses animais nos ensinou algo útil que utilizamos até hoje. A aranha ensinou-nos tecelagem, introduzindo-nos ao algodão. A jiboia ensinou-nos geometria. Outro pássaro de bico comprido, que vive nos lagos e pesca, introduziu-nos uma medicina da mata. Quando tiramos essa erva, machucamos, fazemos um bolo, colocamos na água e o peixe começa a pular. Cada animal nos introduziu algo significativo que preservamos na nossa cultura até hoje, por isso a nossa relação com os animais é tão especial.
Alguns animais não comemos porque nos são sagrados, como a jiboia. Também não comemos o pássaro cantador, pois o respeitamos. Não comemos a onça, porque ela também nos ensinou a cantar. Existem cantos de onça, e cada palavra que usamos nesses cantos é poderosa e sagrada. Por isso cantamos, para curar e para nos conectar com esses animais, na língua da natureza, em que o som vem de uma fonte central.
Na aldeia, quando acordamos de manhã, escutamos primeiro os “capelães” a cantar. Depois vêm os outros pássaros, alguns cantam prevendo a chuva. Toda a comunidade o escuta, sabemos que a chuva vem à tarde. Na manhã seguinte, escutamos outro pássaro a cantar, os filhos do sol, que nos indicam que o dia será solarengo. Isso nos anima a trabalhar.
Os pássaros comunicam connosco e são os nossos meteorologistas. Essa conexão com a natureza ainda existe hoje. A nossa cultura continua a mostrar que a conexão com os animais e a natureza é profunda.
E em relação à sua viagem na Europa, como vê essa relação com os animais? Sente que nós, “europeus”, escutamos e compreendemos os pássaros?
KHK: Aqui, se prestarmos atenção aos pássaros que querem comunicar, somos capazes de entender o que eles desejam transmitir. Na Grécia, vi muitos turistas a comer hambúrgueres ou pães, e os pássaros vinham todos nas suas direções. Para mim, aquilo significava que os pássaros precisavam de comida. Se continuarmos a pesquisar o que os pássaros querem comunicar, é possível reconectar-nos com eles, porque acredito que não prestamos atenção suficiente aos animais.
Nós não damos a devida atenção a eles, sejam pássaros, gatos, cães, lobos ou outros. Aqui, é provável que essa conexão tenha sido perdida. Mas, se realmente quisermos nos conectar com os animais, é possível. Quando estive na Irlanda, na floresta, escutei diferentes sons dos pássaros, percebi outra energia, outro espírito, uma outra conexão. As pessoas não se apercebem dessa necessidade de reconexão.
Estou a sentir e a ver que é um mundo diferente. Temos de prestar mais atenção ao que os animais nos estão a tentar dizer para podermos reencontrar essa ligação que tivemos no passado.
Yupumá (2024)
O curioso é que no filme quase todos os animais surgem no ecrã ou estão mortos ou a ser pescados?
KHK: Na minha opinião, o valor dos animais não está a desaparecer; pelo contrário, estamos a exaltar cada vez mais o seu valor. Por exemplo, o papagaio oferece muito. É o espírito do papagaio que se manifesta, e acreditamos que ao consumir a memória do papagaio podemos melhorar a nossa habilidade linguística.
Escuta duas ou três vezes sem gravar. Então, entende-se a ciência que o papagaio nos dá. Se comermos o miolo e a carne do papagaio, que é escura como o feijão, isso fortalecerá o nosso sangue. Usamos as penas do papagaio para fazer brincos, cocares e também as guardamos para defumar crianças, protegendo-as. Cada pássaro e objeto dos animais têm um valor especial para nós.
Antigamente matávamos a jibóia, tirávamos a pele, usávamos os ossos e a gordura para tratar ferimentos e outras coisas. Hoje em dia, o meu pajé, que é o meu professor mais velho, ensinou-me que não devemos mais matar a jibóia. Apenas a seguramos, falamos com ela e deixamo-la ir. Nas outras aldeias, ainda matam a jibóia, mas cada animal que comemos tem o seu espírito, que precisa ser purificado para evitar doenças.
Para prevenir isso, utilizamos a ciência da floresta, as ervas medicinais. O pajé, que é o curandeiro, dá banhos nas crianças, e os pais são obrigados a batizá-las com medicinas para que recebam a energia da planta e cresçam saudáveis. Desde que a criança nasce, já começa a receber tratamentos com medicinas e banhos. Durante a gravidez, a mãe deve tomar muitos banhos de ervas e ouvir cantos para que a criança nasça forte.
Durante a gravidez da minha esposa, eu não posso matar certos animais. Se eu o fizer, pode causar problemas para mim ou para a minha família. Por isso, respeitamos os animais especialmente nesse período.
Toda a nossa tradição está interligada com a natureza, animais, plantas e cantos. Desde o nascimento de uma criança, tudo é feito de acordo com a nossa ciência original e as nossas tradições.
Esta exaltação dos animais reflete o profundo respeito que temos por eles, reconhecendo as suas contribuições e a sabedoria que nos transmitem. Cada animal desempenha um papel significativo na nossa cultura e na nossa compreensão do mundo. Ao valorizar estes papéis, fortalecemos a nossa ligação com a natureza e com os ensinamentos que ela nos oferece.
VC: O que quis mostrar no filme não foi simplesmente que os Huni Kuin são caçadores de animais. Sim, utilizamos animais mortos, mas eles fazem parte de um sistema onde cada parte do animal é aproveitada, não só fisicamente, mas também espiritualmente. Valorizamos não apenas o que o animal nos fornece em termos materiais, mas também o espírito do animal.
Sigo para a génese do filme, é sabido que o filme propriamente dito nasceu de um sonho do Kawá, o de ir para a Europa …
KHK: Sonhar em querer conhecer mais sobre a cultura da cidade é algo que temos na nossa aldeia. De manhã, o nosso “cacique", que é como um presidente da aldeia, e a liderança, que é semelhante a um governo, reúnem-se para liderar os mais jovens e novos no trabalho e na administração. O “cacique” convida a liderança a acordar cedo e contar os nossos sonhos, o que sonhamos e o que vamos fazer com eles. Compartilhamos não só sonhos de quando estamos a dormir, mas também as nossas visões.
Temos muitos rituais e tradições na aldeia, e por vezes, durante uma noite de ritual, um sonho aparece-me, como uma visão. Eu viajo e vejo grandes navios, aviões, cidades grandes, coisas que nunca tinha visto antes. Isso faz-me perceber que preciso de aprender mais. Acredito que os meus ancestrais trouxeram-me essa oportunidade para buscar algo novo.
Por isso, surgiu em mim o desejo de realizar este sonho de viajar, fazer algo bom para continuar a aprender. Ouvi falar que alguns parentes viajaram para a Europa e voltaram contando como era lá. Isso despertou em mim o interesse de também conhecer e aprender.
Foi esse sonho que me motivou e que me ajudou a convencer a Verónica a colaborar. Queria comunicar a minha cultura, não só em português, mas também noutra língua, por isso comecei a aprender inglês. Quando a Verónica esteve na nossa comunidade, estava a filmar e nós ajudámos no seu trabalho. Percebemos que, ao fazer isso, estávamos a convencer a comunidade a colaborar e a trabalhar em conjunto. Daí surgiu o filme, que reflete a nossa tradição e a nossa palavra, que pode ser compreendida por todo o mundo.
Verónica Castro na rodagem de "Yupumá" (2024)
E de onde veio a ideia do título - “Yupumá”?
VC: Pois bem, o que acontece ao tentar apresentar o conceito indígena? Fiquei bastante empolgada com essa ideia e até perguntei ao nosso chefe, o pajé que você viu no filme. Mesmo sendo uma pesquisadora persistente, com papel e caneta sempre à mão, precisei ver e rever para entender. Ele explicou que não é algo que se defina facilmente, mas sim uma experiência que precisa ser vivida pelo corpo e ser reconhecida pela comunidade.
Foi nesse momento que percebi: a comunidade na Europa precisa de entender isto. Não são apenas os franceses e os alemães que são filósofos; não são os únicos capazes de entregar filosofias de vida ou compreender esses conceitos.
Decidi que este era um conceito que poderia ser muito útil para o nosso olhar europeu.
Haverá algum tipo de continuação? O das “aventuras” de Kawá na Europa?
VC: Até agora, a minha resposta tem sido que vocês aqui estão integrados nisto. Assim, o filme transborda para a realidade. A continuidade é vivida através do conceito Yupumá.
KHK: A primeira vez que viemos, acredito que tivemos uma experiência de Yupumá. É por isso que este projeto ainda continua. Estamos aqui, cada vez mais, a formar famílias e comunidade, e as pessoas estão a conhecer-nos. No início, apenas a Verónica me conhecia, mas hoje em dia muitas pessoas já me conhecem e cada vez mais vão conhecendo. Estamos a criar uma comunidade e um grupo de trabalho. Assim, continuamos em movimento.
VC: Gosto de chamar a isto o movimento Yupumá. Sim, e está a crescer. Sempre digo que isto é uma proposta. O que estamos a fazer é uma proposta para mostrar, não só em termos de disciplina de antropologia, mas também como um exemplo de uma nova forma de fazer antropologia. Estava a falar há pouco; as pessoas perguntam-me: “Quando é que começaste o trabalho de campo, em que data?” Digo-lhes a data, mas quando me perguntam quando terminei, respondo: "Não sei, porque o campo está comigo agora. Estamos a criar este novo campo." [risos]
A antropologia já não é o sonho do antropólogo que vai lá com a sua caneta estudar o outro. Agora estamos a partilhar este processo e, na academia, argumento isto em termos de cinema. Já sou cineasta, então o cinema é uma ferramenta para mim. E agora, ao partilharmos estas habilidades e esta ferramenta, estamos a co-criar esta história. Em termos de cinema, estamos a avançar além das propostas de Jean Rouch.
Ultrapassar o verité?
VC: Exacto, é uma experiência. Só que não podemos estar em todas as salas para ter esta conversa, portanto o grande desafio é como transmitir este sentimento, esta sensação de pertença ao filme, e em todas as salas, quando este for visto sem a nossa presença.
Encontrou uma solução?
VC: Ainda não sei. Penso em como os filmes vivem para além da tela, da sala. Possivelmente, será através das ações das pessoas após verem o filme. Como será essa relação? Bem, um espectador poderá relacionar-se intelectualmente e emocionalmente, mas acho que este filme propõe um outro tipo de envolvimento. O que propomos é... isso mesmo, “Yupumá". Se as pessoas começarem a enfrentar a vida com esse estado de espírito, já estarão a relacionar-se com o filme. Ou seja, fazer algo pela primeira vez e dar prioridade a isso todos os dias. Seríamos, de facto, mais felizes. A nossa proposta é que a alegria é uma forma de resistência, e isso só é conseguido através do Yupumá.
Já demonstrámos o nosso filme em diferentes sítios, muitos em contextos mais íntimos, e as pessoas saíam perplexas, perguntando que tipo de filme é o “Yupumá". “Um filme indígena sem genocídio, sem incêndios, sem enchentes, apenas pessoas felizes com as suas vidas?”. A minha pergunta enquanto cineasta é: ou as pessoas só querem ver as misérias para se sentirem melhor, ou têm medo da alegria, ou simplesmente aterrorizam-se com a ideia de estarem numa canoa no meio de um rio, em silêncio?
Yupumá (2024)
Visto que o cinema indígena, incluindo o seu filme como parte desse subgênero, está a crescer de tal forma, questiono se há algum perigo de banalização.
VC: Não quero julgar o trabalho dos outros. Acredito neste método e é desta forma que pretendo continuar a realizar filmes, levando-nos para além da sala de cinema de uma maneira digna. Se outros fazem filmes sobre a Amazónia de outra forma, muito bem, é uma escolha deles. Agora, se assumimos o cinema indígena, e que está a crescer e até tem festivais dedicados, já está na hora de colocarmos a questão do que define o cinema indígena e o que torna esses filmes verdadeiramente pertencentes a essa designação?
É uma boa pergunta. Tem a ver com o olhar, seja do filme, seja de quem está a formar esse olhar [sabendo que muitos realizadores dão câmaras a membros das comunidades para que eles filmam as suas próprias imagens]?
VC: Quem está a fazer a montagem? Não é fácil, mas quem monta detém o olhar do filme. Não é de agora, mas durante anos treinou-se indígenas para filmar, gravar e até montar, mas a questão permanece, o que define o cinema-indigena, ou melhor, quem decide os temas a filmar?