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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Yupumá", atrás de um movimento onde a "alegria é a resistência": conversa com Verónica Castro e Kawá Huni Kuin

Hugo Gomes, 17.07.24

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Yupumá (2024)

Era uma vez uma antropóloga na terra dos Huni Kuin, seguindo os preceitos estabelecidos pela antropologia de campo. No entanto, Verónica Castro tinha ambições diferentes; com uma câmara na mão, decidiu realizar um filme. O que poderia ter sido apenas mais um retrato do povo indígena amazónico revelou-se, nas suas palavras, um movimento. Tudo começou com a abordagem de Kawá, um aprendiz de pajé (curandeiro da aldeia), que lhe confidenciou um sonho que teve na noite anterior: viajar e conhecer a Europa. Esse sonho rapidamente se transformou num pedido - "Leva-me para a Europa".

Para isso, Kawá aprendeu outra língua, o inglês, para poder comunicar e transmitir aos europeus os costumes e a filosofia de vida dos Huni Kuin, denominada Yupumá, que significa o ato ou momento de fazer algo pela primeira vez. Hoje, após visitarem vários países, a dupla formada por Verónica e Kawá chega a Portugal. Com eles, além do filme cujo título é inspirado no conceito a ser difundido e da experiência do intercâmbio cultural, trazem um sonho de unir povos através de uma ideia.

"A alegria é uma resistência", perpetua Verónica, enquanto recebe o Cinematograficamente Falando... para uma conversa que nos transporta especialmente para aquela região do Acre brasileiro, às margens do rio Jordão, com a sua forma de ser em formato jiboia e a cultura representada por Kawá, que tem tantas histórias e impressões para partilhar.

O filme Yupumá” chega às nossas salas de cinema sob a produção Cedro Plátano. 

É através do rio que chegamos ao seu filme, e a sua “presença” ao longo desta. Gostaria que me falasse sobre a importância do elemento no seu filme, e se a quase onipresença é de algum significado aos Huni Kuin?

Verónica Castro: A água, como se pode imaginar, é muito importante. Existe uma interdependência nela. É a água que nasce, a que vem do rio, como também a água que vem do céu, ou seja, tudo o mesmo, só que em momentos diferentes. É muito importante para a comunidade e não poderia chegar ao Kawá sem o rio. Com o rio seco, seria impossível. O rio é essencial.

No rio temos a canoa que não é só para transporte, mas para muitas outras coisas. A canoa é usada por muitos para dormir, para cozinhar, as crianças brincam na canoa, também se lava a roupa, ou seja, a canoa é um espaço. Mas voltando à água, a sua fundamentalidade: serve para cozinhar, beber, lavar roupa, para os animais e para banho, especialmente na Amazónia, que devido às suas temperaturas uma pessoa toma três ou quatro banhos por dia, e mesmo quando está no duche, sua. Isto tudo para dar uma ideia da importância da água para tudo na vida, e para a comunidade do Kawá, ela liga e interliga tudo e todos, portanto, porque não ligar o filme a esse elemento.

Kawá Huni Kuin: O rio Jordão, na nossa língua Huni Kuin, chama-se “Renê Yurá”. Renê significa rio, Yurá é povo, ou seja, é o Rio do Povo.

Quando pensamos no rio, em cada trecho que divide as aldeias, é como se ele serpenteasse como uma jiboia. Assim, conforme se avança pelo rio Jordão, após meia hora de viagem de canoa, já se encontra uma aldeia. Ao subir pelo rio, após essa meia hora de viagem, já se vê outra aldeia. É aí que começa a divisão, com um igarapé – um rio muito pequeno – separando as aldeias. Mais adiante, outro igarapé faz o mesmo.

Dessa forma, as aldeias ficam divididas entre os igarapés.

Quer dizer que o rio assume-se como as fronteiras entre aldeias?

KHK: Exatamente! [aponta para o mapa e dedinha a zona do Acre] Depois de chegar a essa aldeia, ao continuar a subir mais à frente, há uma reserva que ainda não é considerada terra indígena, mas, após uma hora de viagem, entramos em terra indígena. A partir desse ponto, chegamos a outro rio. Dali para a frente, é terra indígena. As águas dividem cada aldeia, dando nomes às aldeias. Aqui é um igarapé, que é um pequeno rio. Assim, temos uma aldeia. Depois de passar por este igarapé, encontramos outra aldeia. Portanto, o rio é importante porque também serve como limite das aldeias, uma fronteira natural entre elas.

Quando se chega a uma aldeia e se quer passar para outra, é preciso atravessar o rio a pé. Ao atravessar o igarapé, já se chega a outra aldeia.

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Verónica Castro e Kawá na rodagem de "Yupumá" (2024) / Foto.: Cedro Plátano

Mas esse rio é inconstante, certo? Quer dizer, você o comparou a uma jiboia - bonita imagem -, quer dizer que essas “curvas e contracurvas” que o rio faz aí nesse mapa, pode alterar de um dia para o outro?

KHK: Hoje em dia, as coisas estão a mudar muito porque está a chover bastante e há muitas inundações. Quando alaga, o rio corre com muita força e derruba as árvores das margens, tornando o rio ainda mais diferente. Na época de Verão, o rio fica tão seco que nem uma canoa pode viajar. Por vezes, temos que andar a pé. No caso da canoa, apenas duas ou três pessoas podem ir para que a viagem seja rápida. Agora, se levarmos uma canoa com três famílias e crianças, é muito difícil. Demoramos quase três dias ou uma semana para chegar apenas à aldeia, porque é muito complicado e o rio seca muito nesse período. Quando enche, enche muito rapidamente e alaga completamente. O rio hoje está a sofrer este tipo de mudanças. Os nossos avós contam que o rio não era assim; era profundo tanto no tempo de verão quanto no tempo de inverno, durante a época de chuva. O rio era diferente, mas hoje está a mudar. Contudo, as voltas que faz, semelhantes a uma jiboia, são normais para o rio.

No cartaz do “Yupumá” [aponta para o poster do filme] representa-se a floresta, a terra, a água e a jiboia. Porquê a jiboia? Porque ela mora debaixo de um poço no rio Jordão e é muito grande. A jiboia também significa, para mim, que foi ela que nos ensinou a nossa geometria.

Mas acerca da decisão de incluir o rio como uma personagem central [voltando-se para Verônica Castro] …

VC: Essa decisão? Bom, quer dizer, é a vida na aldeia e também a vida na canoa. E também é uma vida em relação ao rio e para mim. Então, voltando ao mapa, quando mostrei que comecei, comecei no meu primeiro encontro com um aperto de mão. “Bem-vindo!” Oito dias na canoa e não havia nem perguntas, nem discussões, nem preparações; era algo que acontecia do nada, como se caíssemos de paraquedas.

Obviamente, essa experiência marcou-me por ser a minha primeira experiência com o rio e com as comunidades indígenas, porque estava nesta canoa com 15 pessoas.

Quinze pessoas!? De que tamanho eram essas canoas?

VC: Máximo tamanho o tamanho deste quarto [faz um gesto que especifica-se o redor da divisória]. Assim, só que mais fininha. Eu posso mostrar uma foto? Então, estava na canoa com 15 pessoas, uma família única e duas pessoas de outra etnia que chama-se Yawanawá e o condutor da canoa - um brasileiro que mora lá, da comunidade dos ribeirinhos - com a sua mulher e uma criança, também estava lá um outro antropólogo. Então, o que é que aprendi em oito dias na canoa? No segundo dia parei de perguntar quando chegaríamos, porque tinha percebido que o tempo não existia tal como conhecia. Depois do segundo dia, percebi que podia estar aqui para o resto da minha vida. Sim, com uma noção de tempo completamente dissolvida.

Eram aquelas atividades que mencionei há pouco que substituíram a noção do tempo. Era só navegar, e os pequenos momentos reforçaram a nossa relação com a natureza.

KHK: Quando viajamos, levamos a nossa comida dentro da canoa, cozinhamos enquanto navegamos ou então encostamos e preparamos a comida na praia. Fazemos pesca, recolhemos lenha e cozinhamos na praia. Por isso, a viagem demora muito, pois vamos fazendo essas paragens, mas depois continuamos a viagem tranquilamente.

VC: Mas não era só uma viagem de lazer. Estávamos a viajar com uma canoa alugada e o condutor queria levar-nos rapidamente, mas não podíamos ir contra a natureza. Aprendi muita coisa nesta viagem. Na minha primeira introdução, além da relação com a água e da perceção do tempo que se dissolve completamente, também aprendi como se organiza o espaço dentro da canoa. Percebi que era interessante estar dentro daquela canoa com duas etnias indígenas, o vizinho com quem eles coexistem, uma família ribeirinha, um brasileiro de 73 anos e um antropólogo que conhecia muito bem essas terras, tendo trabalhado lá por mais de 40 anos.

Foi um microcosmo de vida na Terra. Comecei a observar as relações entre as pessoas e como essas dinâmicas se manifestavam dentro da canoa. Coisas tão básicas como onde as pessoas se sentam, quem pode sentar-se à frente da canoa e quem vai conduzir.

Hierarquia?

VC: Não se tratava de hierarquia, mas de lugares. Sim, lugares e a maneira como os espaços são ocupados. Enfim, isso é outra história. Mas só para dizer que esta viagem de canoa revelou tantas, tantas possibilidades para eu desenvolver a minha pesquisa. Certamente, é por isso que o rio, a canoa e estas viagens são inextricáveis. Não se podem separar, pois são como um fio central que guia a narrativa.

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Poster de "Yupumá" (2024)

Sobre essa questão da jiboia ensinar geometria, o qual também está claro no filme, essa relação com os animais. Para a sua cultura [virando para Kawá], cada animal teve um papel importante na aprendizagem humana.

KHK: Os animais são os nossos principais mestres da floresta. Os nossos mais velhos e os pajés [curandeiros] sabem contar essas histórias como se fossem mitos. Mas não são mitos, são histórias reais que aconteceram com os animais, numa época em que eles se comportavam como seres humanos, falavam, comunicavam com os parentes, e continuam a comunicar até hoje.

Temos essa história, uma das maiores sabedorias que transmitimos até hoje, porque aprendemos com essa habilidade, com os animais, com a natureza. Por exemplo, temos uma história sobre como o ser humano aprendeu a caminhar com o papagaio. O ser humano caminha igual ao papagaio, devagar, passo a passo. Havia outro pássaro que queria nos ensinar a caminhar, mas o seu caminhar era como o de um sapo, que pula. Se caminhássemos assim, seria diferente. Mas o papagaio caminha colocando um pé à frente do outro, como o ser humano.

Então, recebemos o caminhar do papagaio. Quanto à barriga, foi a barriga do japó [espécie de ave] que nos foi dada. Por isso, temos a barriga aqui. Se tivéssemos recebido a barriga do papagaio, ela estaria no peito, pois a barriga do papagaio é no peito. Então, eles decidiram: “Ah, tu vais dar o teu caminhar e eu vou dar a minha barriga.” Isso é um exemplo, essa história continua.

Para cantar, por exemplo, nós seguimos a tradição até hoje. Para as crianças começarem a falar, temos uma medicina chamada Eva, que tem o mesmo nome de um pássaro que imita outros pássaros. Quando a criança começa a falar, damos banho com isso e passamos na língua. Os animais são muito significativos para nós. Os mais velhos que cantam muito, que detêm o conhecimento, são como os canários, os cantadores. Aprendemos a cantar com o pássaro cantador, aprendemos com a jiboia e com outros animais, como a paca.

Cada um desses animais nos ensinou algo útil que utilizamos até hoje. A aranha ensinou-nos tecelagem, introduzindo-nos ao algodão. A jiboia ensinou-nos geometria. Outro pássaro de bico comprido, que vive nos lagos e pesca, introduziu-nos uma medicina da mata. Quando tiramos essa erva, machucamos, fazemos um bolo, colocamos na água e o peixe começa a pular. Cada animal nos introduziu algo significativo que preservamos na nossa cultura até hoje, por isso a nossa relação com os animais é tão especial. 

Alguns animais não comemos porque nos são sagrados, como a jiboia. Também não comemos o pássaro cantador, pois o respeitamos. Não comemos a onça, porque ela também nos ensinou a cantar. Existem cantos de onça, e cada palavra que usamos nesses cantos é poderosa e sagrada. Por isso cantamos, para curar e para nos conectar com esses animais, na língua da natureza, em que o som vem de uma fonte central.

Na aldeia, quando acordamos de manhã, escutamos primeiro os “capelães” a cantar. Depois vêm os outros pássaros, alguns cantam prevendo a chuva. Toda a comunidade o escuta, sabemos que a chuva vem à tarde. Na manhã seguinte, escutamos outro pássaro a cantar, os filhos do sol, que nos indicam que o dia será solarengo. Isso nos anima a trabalhar.

Os pássaros comunicam connosco e são os nossos meteorologistas. Essa conexão com a natureza ainda existe hoje. A nossa cultura continua a mostrar que a conexão com os animais e a natureza é profunda.

E em relação à sua viagem na Europa, como vê essa relação com os animais? Sente que nós, “europeus”, escutamos e compreendemos os pássaros?

KHK: Aqui, se prestarmos atenção aos pássaros que querem comunicar, somos capazes de entender o que eles desejam transmitir. Na Grécia, vi muitos turistas a comer hambúrgueres ou pães, e os pássaros vinham todos nas suas direções. Para mim, aquilo significava que os pássaros precisavam de comida. Se continuarmos a pesquisar o que os pássaros querem comunicar, é possível reconectar-nos com eles, porque acredito que não prestamos atenção suficiente aos animais.

Nós não damos a devida atenção a eles, sejam pássaros, gatos, cães, lobos ou outros. Aqui, é provável que essa conexão tenha sido perdida. Mas, se realmente quisermos nos conectar com os animais, é possível. Quando estive na Irlanda, na floresta, escutei diferentes sons dos pássaros, percebi outra energia, outro espírito, uma outra conexão. As pessoas não se apercebem dessa necessidade de reconexão.

Estou a sentir e a ver que é um mundo diferente. Temos de prestar mais atenção ao que os animais nos estão a tentar dizer para podermos reencontrar essa ligação que tivemos no passado.

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Yupumá (2024)

O curioso é que no filme quase todos os animais surgem no ecrã ou estão mortos ou a ser pescados?

KHK: Na minha opinião, o valor dos animais não está a desaparecer; pelo contrário, estamos a exaltar cada vez mais o seu valor. Por exemplo, o papagaio oferece muito. É o espírito do papagaio que se manifesta, e acreditamos que ao consumir a memória do papagaio podemos melhorar a nossa habilidade linguística.

Escuta duas ou três vezes sem gravar. Então, entende-se a ciência que o papagaio nos dá. Se comermos o miolo e a carne do papagaio, que é escura como o feijão, isso fortalecerá o nosso sangue. Usamos as penas do papagaio para fazer brincos, cocares e também as guardamos para defumar crianças, protegendo-as. Cada pássaro e objeto dos animais têm um valor especial para nós.

Antigamente matávamos a jibóia, tirávamos a pele, usávamos os ossos e a gordura para tratar ferimentos e outras coisas. Hoje em dia, o meu pajé, que é o meu professor mais velho, ensinou-me que não devemos mais matar a jibóia. Apenas a seguramos, falamos com ela e deixamo-la ir. Nas outras aldeias, ainda matam a jibóia, mas cada animal que comemos tem o seu espírito, que precisa ser purificado para evitar doenças.

Para prevenir isso, utilizamos a ciência da floresta, as ervas medicinais. O pajé, que é o curandeiro, dá banhos nas crianças, e os pais são obrigados a batizá-las com medicinas para que recebam a energia da planta e cresçam saudáveis. Desde que a criança nasce, já começa a receber tratamentos com medicinas e banhos. Durante a gravidez, a mãe deve tomar muitos banhos de ervas e ouvir cantos para que a criança nasça forte.

Durante a gravidez da minha esposa, eu não posso matar certos animais. Se eu o fizer, pode causar problemas para mim ou para a minha família. Por isso, respeitamos os animais especialmente nesse período.

Toda a nossa tradição está interligada com a natureza, animais, plantas e cantos. Desde o nascimento de uma criança, tudo é feito de acordo com a nossa ciência original e as nossas tradições.

Esta exaltação dos animais reflete o profundo respeito que temos por eles, reconhecendo as suas contribuições e a sabedoria que nos transmitem. Cada animal desempenha um papel significativo na nossa cultura e na nossa compreensão do mundo. Ao valorizar estes papéis, fortalecemos a nossa ligação com a natureza e com os ensinamentos que ela nos oferece.

VC: O que quis mostrar no filme não foi simplesmente que os Huni Kuin são caçadores de animais. Sim, utilizamos animais mortos, mas eles fazem parte de um sistema onde cada parte do animal é aproveitada, não só fisicamente, mas também espiritualmente. Valorizamos não apenas o que o animal nos fornece em termos materiais, mas também o espírito do animal.

Sigo para a génese do filme, é sabido que o filme propriamente dito nasceu de um sonho do Kawá, o de ir para a Europa …

KHK: Sonhar em querer conhecer mais sobre a cultura da cidade é algo que temos na nossa aldeia. De manhã, o nosso “cacique", que é como um presidente da aldeia, e a liderança, que é semelhante a um governo, reúnem-se para liderar os mais jovens e novos no trabalho e na administração. O “cacique” convida a liderança a acordar cedo e contar os nossos sonhos, o que sonhamos e o que vamos fazer com eles. Compartilhamos não só sonhos de quando estamos a dormir, mas também as nossas visões.

Temos muitos rituais e tradições na aldeia, e por vezes, durante uma noite de ritual, um sonho aparece-me, como uma visão. Eu viajo e vejo grandes navios, aviões, cidades grandes, coisas que nunca tinha visto antes. Isso faz-me perceber que preciso de aprender mais. Acredito que os meus ancestrais trouxeram-me essa oportunidade para buscar algo novo.

Por isso, surgiu em mim o desejo de realizar este sonho de viajar, fazer algo bom para continuar a aprender. Ouvi falar que alguns parentes viajaram para a Europa e voltaram contando como era lá. Isso despertou em mim o interesse de também conhecer e aprender.

Foi esse sonho que me motivou e que me ajudou a convencer a Verónica a colaborar. Queria comunicar a minha cultura, não só em português, mas também noutra língua, por isso comecei a aprender inglês. Quando a Verónica esteve na nossa comunidade, estava a filmar e nós ajudámos no seu trabalho. Percebemos que, ao fazer isso, estávamos a convencer a comunidade a colaborar e a trabalhar em conjunto. Daí surgiu o filme, que reflete a nossa tradição e a nossa palavra, que pode ser compreendida por todo o mundo.

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Verónica Castro na rodagem de "Yupumá" (2024)

E de onde veio a ideia do título - “Yupumá”? 

VC: Pois bem, o que acontece ao tentar apresentar o conceito indígena? Fiquei bastante empolgada com essa ideia e até perguntei ao nosso chefe, o pajé que você viu no filme. Mesmo sendo uma pesquisadora persistente, com papel e caneta sempre à mão, precisei ver e rever para entender. Ele explicou que não é algo que se defina facilmente, mas sim uma experiência que precisa ser vivida pelo corpo e ser reconhecida pela comunidade.

Foi nesse momento que percebi: a comunidade na Europa precisa de entender isto. Não são apenas os franceses e os alemães que são filósofos; não são os únicos capazes de entregar filosofias de vida ou compreender esses conceitos.

Decidi que este era um conceito que poderia ser muito útil para o nosso olhar europeu.

Haverá algum tipo de continuação? O das “aventuras” de Kawá na Europa?

VC: Até agora, a minha resposta tem sido que vocês aqui estão integrados nisto. Assim, o filme transborda para a realidade. A continuidade é vivida através do conceito Yupumá.

KHK: A primeira vez que viemos, acredito que tivemos uma experiência de Yupumá. É por isso que este projeto ainda continua. Estamos aqui, cada vez mais, a formar famílias e comunidade, e as pessoas estão a conhecer-nos. No início, apenas a Verónica me conhecia, mas hoje em dia muitas pessoas já me conhecem e cada vez mais vão conhecendo. Estamos a criar uma comunidade e um grupo de trabalho. Assim, continuamos em movimento.

VC: Gosto de chamar a isto o movimento Yupumá. Sim, e está a crescer. Sempre digo que isto é uma proposta. O que estamos a fazer é uma proposta para mostrar, não só em termos de disciplina de antropologia, mas também como um exemplo de uma nova forma de fazer antropologia. Estava a falar há pouco; as pessoas perguntam-me: “Quando é que começaste o trabalho de campo, em que data?” Digo-lhes a data, mas quando me perguntam quando terminei, respondo: "Não sei, porque o campo está comigo agora. Estamos a criar este novo campo." [risos]

A antropologia já não é o sonho do antropólogo que vai lá com a sua caneta estudar o outro. Agora estamos a partilhar este processo e, na academia, argumento isto em termos de cinema. Já sou cineasta, então o cinema é uma ferramenta para mim. E agora, ao partilharmos estas habilidades e esta ferramenta, estamos a co-criar esta história. Em termos de cinema, estamos a avançar além das propostas de Jean Rouch.

Ultrapassar o verité?

VC: Exacto, é uma experiência. Só que não podemos estar em todas as salas para ter esta conversa, portanto o grande desafio é como transmitir este sentimento, esta sensação de pertença ao filme, e em todas as salas, quando este for visto sem a nossa presença.

Encontrou uma solução?

VC: Ainda não sei. Penso em como os filmes vivem para além da tela, da sala. Possivelmente, será através das ações das pessoas após verem o filme. Como será essa relação? Bem, um espectador poderá relacionar-se intelectualmente e emocionalmente, mas acho que este filme propõe um outro tipo de envolvimento. O que propomos é... isso mesmo, “Yupumá". Se as pessoas começarem a enfrentar a vida com esse estado de espírito, já estarão a relacionar-se com o filme. Ou seja, fazer algo pela primeira vez e dar prioridade a isso todos os dias. Seríamos, de facto, mais felizes. A nossa proposta é que a alegria é uma forma de resistência, e isso só é conseguido através do Yupumá.

Já demonstrámos o nosso filme em diferentes sítios, muitos em contextos mais íntimos, e as pessoas saíam perplexas, perguntando que tipo de filme é o “Yupumá". “Um filme indígena sem genocídio, sem incêndios, sem enchentes, apenas pessoas felizes com as suas vidas?”. A minha pergunta enquanto cineasta é: ou as pessoas só querem ver as misérias para se sentirem melhor, ou têm medo da alegria, ou simplesmente aterrorizam-se com a ideia de estarem numa canoa no meio de um rio, em silêncio?

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Yupumá (2024)

Visto que o cinema indígena, incluindo o seu filme como parte desse subgênero, está a crescer de tal forma, questiono se há algum perigo de banalização.

VC: Não quero julgar o trabalho dos outros. Acredito neste método e é desta forma que pretendo continuar a realizar filmes, levando-nos para além da sala de cinema de uma maneira digna. Se outros fazem filmes sobre a Amazónia de outra forma, muito bem, é uma escolha deles. Agora, se assumimos o cinema indígena, e que está a crescer e até tem festivais dedicados, já está na hora de colocarmos a questão do que define o cinema indígena e o que torna esses filmes verdadeiramente pertencentes a essa designação?

É uma boa pergunta. Tem a ver com o olhar, seja do filme, seja de quem está a formar esse olhar [sabendo que muitos realizadores dão câmaras a membros das comunidades para que eles filmam as suas próprias imagens]?

VC: Quem está a fazer a montagem? Não é fácil, mas quem monta detém o olhar do filme. Não é de agora, mas durante anos treinou-se indígenas para filmar, gravar e até montar, mas a questão permanece, o que define o cinema-indigena, ou melhor, quem decide os temas a filmar?

"O digital é talvez o factor mais realista": Eduardo 'Teddy' Williams e a busca do auge da Humanidade

Hugo Gomes, 13.07.24

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Eduardo "Teddy" Williams na rodagem de "El auge del humano 3" (2023)

Foi em vésperas da estreia nacional (com ‘perninha’ no festival Indielisboa e uma retrospetiva no Cinema Batalha), que Eduardo Williams, conhecido por estas bandas cinéfilas como “Teddy”, me recebeu para falar sobre o seu mais recente projeto, "O Auge Humano 3" (“El auge del humano 3”), que conta com produção portuguesa, além de envolver outros 7 países, unidos para explorar uma ideia de universalismo. A nossa conversa abordou desde as ideias por detrás do filme até ao seu cinema em geral, consolidando Teddy como uma das vozes mais debatidas no meio académico cinematográfico e no mundo do cinema experimental e independente.

Com "O Auge Humano 3", lançado sete anos após o primeiro (atenção, nunca houve um "O Auge Humano 2", essa sequela está no “segredo dos deuses”), acompanhamos um grupo de jovens que testemunham um fenómeno difícil de caracterizar para lá das montanhas. Enquanto vivem e debruçam-se sobre os seus quotidianos, ponderam um retorno ao estado selvagem, ao primitivo ou até místico. Eis uma obra sobre a comunicação, mesmo diante de diversas línguas ouvidas ao longo deste percorrer de cenários em 360º e dos glitchs que vão sendo presenciados. Há uma distorção dessa realidade! Mas Teddy acalenta as nossas preocupações, tal é tão ou mais real do que a nossa própria realidade humana. Aliás, o que é ser humano?

A discussão alarga-se sobre "O Auge Humano 3", o virtual enquanto nova realidade, o filme das multi-interpretações e de estéticas e o AI contra a carne da nossa carne. 

Começo a conversa desta forma: que lugar acha o ideal para ver o seu filme?

O lugar para qual o meu filme foi feito? É isso que me está a perguntar?

Sim, é uma questão um pouco abstrata, porque entendo que a sua estética é provocadora, neste caso, neste filme, sinto uma certa distância das pessoas, do factor humano, por ter sido filmado com uma câmara de 360 graus o que lhe aufere uma sensação estética muito virtual. Não sei se era esse o seu propósito.

Sim, uma parte é voluntária, a outra surgiu através da descoberta e do experimento. Em relação ao local, faço filmes para o cinema, seja em película, seja em 360 graus, a sala de cinema será sempre o seu lugar, exceto algumas encomendas para museus. Tenho consciência de que se vê muito cinema em computadores e nos mais diversos lugares. Nada contra essa opção, mas os filmes que faço são concebidos para serem vistos e ouvidos no cinema, refiro o “ouvido” porque considero o som extremamente importante para a experiência cinematográfica, e penso deixar saliente esse elemento na minha filmografia.

Acerca da distância com o humano, não sei o que responder; depende de como se pense nisso. Não o encaro da mesma maneira, porque, para mim, o virtual hoje em dia é parte da minha vida, é essencialmente humano, é uma criação humana e é o mundo em que vivemos. Acho que, para mim, justamente esta presença do virtual no filme fala, pelo menos, de como experimento a vida hoje em dia, e creio que muita gente partilha tal experiência comigo. Então, simplesmente acredito que uso ferramentas para mostrá-lo de uma maneira mais sucinta, talvez. Quanto aos rostos se deformarem e especificamente integrarem a imagem, obviamente que na vida, no real, não vemos isso, mas talvez sintamos isso a acontecer de alguma maneira.

Não sei, pelo menos eu sinto aquilo que os ingleses apelidam de “uncanny valley”, sofro com isso, a deformação das faces das suas personagens quando nos aproximamos, leva-me a distanciar deste conjunto, porque tudo me soa na ressonância do fim da Humanidade. O nosso fim, de certa maneira, não sei, é a minha impressão acerca do seu filme, mas pelo que entendi, também é um filme com várias interpretações, dando uma exposição para quem o vê.

Sim, por isso, mesmo que por vezes se pense o mesmo ou não, o tipo de filme que faço, como bem disseste, é justamente para isso: para se abrir a múltiplas interpretações e não se reduzir somente à minha. Se assim não fosse, faria filmes mais claros e que comunicassem diretamente uma ideia minha, mas essa não é a minha noção de cinema. Gostei de ouvir a tua interpretação e respeito-a, mesmo que não vejas o filme à minha maneira. Não te posso censurar; se o fizesse, seria contra a minha essência. Só te digo como me sinto em relação aos lugares, ao binarismo do humano e do não-humano, mas isso também depende das nossas experiências, das nossas vidas, de como nos sentimos em relação ao cinema. Nem todos nos sentimos da mesma maneira. Mas, o que dizias concretamente no início?

Que existe uma certa distância, como o fim da Humanidade.

Sim, isso! O fim da Humanidade! Não sei. [risos] Tenho esta sensação desde os meus tempos de criança. Chega o ano 2000, termina a Humanidade, desde os lugares mais simples e até aos mais bobos, até coisas como a mudança climática e a destruição do planeta, que se tornam cada vez mais reais. E também há esse desejo de querermos o fim de certas ‘coisas’, mas não a Humanidade, talvez o sistema em que vivemos. Nesse sentido, há que escolher em colocar-se na crise ou de ver a crise do sistema, por assim dizer, de diferentes sistemas. Mas o fim da Humanidade... não sei! Não acredito, na verdade. Por agora, parece-me que ainda falta muito para tal acontecer.

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El auge del humano 3 (2023)

Digo isto, porque existe a certo momento do “O Auge Humano 3” uma personagem a lamentar-se de que existir é cansativo. Entendi isso como algo muito niilista no seu filme.

É verdade, e além disso, acho que deve haver um equilíbrio entre essas coisas. Deparamos por momentos mais niilistas, como esse que citaste, ou do cansaço em relação ao trabalho, à vida  como ela é ou por outras questões, só que também temos que ver que há esperança. O simples facto de pessoas, de países distantes, se reúnem e avançam em conjunto em direção a algo que não entendemos ao certo é para mim uma forma de esperança e de continuar a tentar algo em oposição a esse niilismo: uma revolução. Mas sim, há de tudo, as duas dimensões: falar sobre determinados elementos negativos ou sobre o facto de que a mera existência provoca cansaço, só que não podemos esquecer que temos um outro lado.

Outra característica do seu “O Auge Humano 3”, é que foi filmada em vários lugares do mundo, como Sri Lanka, Taiwan e Peru. Além disso, a forma como juntou os locais cria uma sensação de unidade. É como se toda a Humanidade estivesse conectada, com excepção da linguagem, visto ouvirmos uma panóplia delas, quase como uma Torre de Babel, que nos separa ou nos identifica. Mas, ao mesmo tempo, todos esses lugares e pessoas, apesar das distâncias, são semelhantes porque somos humanos. No entanto, sempre mudamos algo para sermos mais diferentes, especialmente no que diz respeito à linguagem.

Penso que no filme também está implícito uma fantasia: as personagens entendem-se em diferentes idiomas. Há cenas em que um fala mandarim e o outro responde em espanhol. Mostrando que as línguas não nos separam como realmente o fazem. 

Também, ao fazermos um filme, viajo para países cujo idioma não falo e, por vezes, usando a internet e outras ferramentas, conseguimos que essas barreiras linguísticas não sejam a nossa total separação. No filme, há pessoas que não falam inglês, espanhol ou qualquer idioma que eu fale e, de várias maneiras, conseguimos comunicar-nos. Parece-me que isso está presente, também na forma como o fazemos, o que é interessante. Não quero dizer que somos todos iguais, porque, felizmente, é melhor que não sejamos todos iguais, mas que podemos juntar-nos e ter um projeto como este. É como, a certo momento, todas aquelas personagens caminharem juntas para a montanha em busca de algo maior do que elas.

Por mera curiosidade, qual o lugar que, como demonstra no filme, tem aquelas habitações que parecem-nos cogumelos?

Ah, é o Sri Lanka!

É muito peculiar. É como um parque infantil! Gostaria que me falasse sobre os diálogos, li algures que estes foram conseguidos por via da improvisação.

Não só. Alguns textos foram escritos e outros foram improvisados. Há cenas em que tudo o que vemos é totalmente escrito, enquanto outras revelam o improviso, e a maioria das cenas combina os dois registos. Esta é a norma no meu cinema.

E quanto ao que dizes sobre as casas, posso contar-te que a primeira razão para querer filmar no Sri Lanka foi exatamente este bairro. Já tinha ido ao Sri Lanka antes, numa viagem de lazer, digamos, não por motivos de filme ou curiosidade, e passei de autocarro por este bairro e fiquei muito surpreendido. Depois, ao investigar, descobri que tinham construído estas casas sob esta forma porque um tsunami havia destruído tudo, e estas estruturas provaram ser mais resistentes, caso haja outro tsunami, do que uma forma retangular.

O filme ia ser rodado sob a chuva, mas não conseguimos fazê-lo nesse contexto. No entanto, a presença do clima no filme tem o seu lugar nesta narrativa, por isso, achei por bem incluir este cenário estranho ou irreal para nós. Mas, ao mesmo tempo, quando estamos lá, vemos que para estas pessoas aquele bairro é um lugar normal. E isso fascinou-me, um local onde o irreal e o real se encontram na mesma imagem.

Podemos dizer que o seu filme é quase como um retorno ao selvagem, mais concretamente a Humanidade à Natureza, e por fim, as suas esperadas pazes?

Não sei se diria retorno, mas sim o ato de ir. Não vou sempre atrás da natureza, mas também em frente, como em tudo. Portanto, diria que é ir ou um pouco buscar, afastar-se da cidade que nos aprisiona. Talvez para depois voltar, porque no final a câmara cai, há algo de querer subir e depois descer novamente. Existe sim uma insatisfação com o lugar onde vivemos e a vontade de nos afastar para desencadear outras possibilidades, ir para a selva, ir para a montanha, etc.

Tem administrado um workshop no Porto [Cinema Batalha] e, devido a isso, queria questionar: o que pretende com o workshop que dedica aos jovens ou interessados em cinema?

Depende um pouco de quem vai. Antes de o fazer, não sei ao certo, nem projeto minuciosamente quem vai participar, desconfio se serão mais estudantes ou mais curiosos. Era algo aberto, por isso tenho a perfeita noção de que não seriam apenas estudantes. De qualquer modo, partilho a minha forma de trabalhar e estou disponível para responder às perguntas que tiverem. Partilho a minha abordagem desde o mais concreto, resolvendo problemas específicos, até os meus pensamentos sobre por que faço o que faço, etc. Tento esclarecer sobre o meu cinema, ou pelo menos tento. [risos]

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El auge del humano (2016)

E no seu caso, deixe-me mencionar uma coisa. Porque quando vi este e o primeiro “O Auge Humano“, notei uma estética e uma transição estética de filme para filme. Neste caso, é algo que percebo como muito virtual. Como já havia dito, sente-se uma grande distância em relação às pessoas. O porquê disto? Onde estou? O que é isto? Para onde vou?. Existe uma política estética nos seus filmes? Procura algo absoluto, uma meta?

Relacionado com o deformado realista? Sim. Quero dizer, para mim, o digital é talvez o factor mais realista. Mesmo que, à primeira vista, pareça irreal. É mais que realista, trespassa esse conceito. Através da utilização dessas ferramentas, podes mostrar pelo menos um ponto de vista da realidade de forma mais clara. Como te disse, quando vemos os rostos deformados, isso revela como me sinto, por exemplo, mesmo que não se veja o meu cabelo.

Mudar a estética, é, em parte, apenas curiosidade por usar diferentes ferramentas no cinema, mas, de forma geral, o sentido é sempre expressar um ponto de vista sobre o cinema, sobre a vida, e não restringir a “mim” e à minha perceção. Também tento fazer filmes que não sejam apenas sobre as minhas ideias, mas sobre como essas ideias são percebidas por pessoas em diferentes lugares e em diferentes idiomas. Por isso é que viajo para diferentes países e culturas, para ver como estas minhas ideias podem ser transformadas em outra 'coisa' que não sejam minhas.

E, como te disse, às vezes há improvisação, há “contaminação” de ideias de outras pessoas que integram o filme, e eu realmente pretendo tal contágio, valorizo muito. Estou a tentar agora juntar essas duas coisas, como me pediste, mas não sei. Pode ser muito longo falar sobre o que é realista ou não. Mas sim, não há dúvida de que há uma ideia de expressar ou partilhar pontos de vista sobre o mundo e a realidade, pelo menos como a vejo, e, em alguns casos, como as pessoas no filme a veem e acreditam.

Escolho imagens que mostram isso de forma mais clara, encaro-as como as imagens mais normais da vida. Vejo o mundo assim: o que é real e o que não é são quase indissociáveis. Portanto, há algo, mas não tenho certeza se respondi à tua pergunta neste caso.

Lembro-me de um colega meu, quando viu “O Auge Humano 3” em Locarno, dizer-me que parecia um filme feito por AI, Inteligência Artificial. Pergunto-lhe sobre isso, sobre os avanços na tecnologia para fazer filmes sem pessoas, sem cineastas. Tentaste com essa estética que temos estado a falar para te aproximar mais das propriedades estetizadas, hoje previstas, pelo AI, ou é apenas uma coincidência?

Nem por isso. Não uso AI nos meus filmes.

Não referia ao uso, referia à estética …

Sei, o que quero dizer é que não estou em contacto com a Inteligência Artificial, nem para o filme, nem na minha vida. Não estou a pensar nisso. Sei o que é de forma geral, mas não tenho tentação ou pretensão de me relacionar com isso. Para mim, está mais associado ao mundo digital de outra maneira, por ter vivido muito através da internet desde a juventude e por jogar videojogos. Está muito ligado a essa parte do mundo digital ou vida virtual. 

Quando penso em preparar um filme, estou num modo virtual, porque estou sentado em frente a um computador a descobrir mundos e a “escavar” ideias, porém, quando faço um filme, torna-se também uma experiência muito física. São os opostos da artificialidade vendida pelo conceito da AI. Descubro as cidades e os países que visito e as pessoas que conheço fisicamente, sem qualquer informação virtual. É muito importante que no filme existam esses dois mundos: o virtual e o físico. De um modo geral, se me perguntares o que penso sobre relacionar o filme com inteligência artificial, diria que não o faria, especialmente porque o que entendo sobre inteligência artificial se resume a juntar informações.

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Parsi (2016)

O filme é muito diferente disso, é sobre humanos a decidirem, no momento, o que fazer, sendo surpreendidos por vezes, e outras vezes a prepararem-se. Acho que o funcionamento do nosso cérebro difere dessa inteligência artificial, não estão no mesmo patamar. Contudo, como referi ao longo desta conversa, estou aberto a ouvir e a gerar diferentes pontos de vista com o filme, no entanto, não estou receptivo à AI. Não a utilizo; talvez se o fizesse, compreendê-la-ia de uma forma diferente.

Quanto aos outros elementos, como os videojogos ou a internet, surgem no filme porque fazem parte da minha experiência de vida, portanto, surgem naturalmente. Não acho que com isso desejo fazer um filme sobre a vida virtual ou a internet; isso acontece porque é assim que experiencio o mundo. Depois, percebo que, quando escrevo um filme, não penso muito no início, mas sim mais tarde. É mais tarde que me dou conta de como e quanto a presença da vida virtual está no filme.

Essa presença é muito evidente, não só quando falamos disso, mas ainda mais quando não falamos. A forma como falamos, de como as personagens se expressam, tem muita influência das conversas de chat. Em outras curtas-metragens minhas, isso é dito de forma mais evidente. Mas, em muitos momentos da minha vida, falei mais com as pessoas através de chat na internet do que na vida real. O ritmo da conversa e a forma como organizamos a informação diferem. Quando escrevo diálogos, percebo o quão presente isso está.

Mas neste momento não temos uma ideia clara do que é o cinema de inteligência artificial. Temos algumas imagens definidas e uma visão bastante ampla. Mas quero perguntar: o porquê das câmaras de 360 graus? De onde veio essa ideia?

Usei esta técnica uma vez numa curta-metragem, “Parsy”, em 2019. Escolhi inicialmente porque queria dar a câmara aos atores. Com uma câmara de 360 graus, não é necessário enquadrar durante a filmagem, os atores podem segurar a câmara e não precisam pensar no enquadramento. Isso foi muito útil na altura. Depois de experimentar, descobri outras vantagens durante a filmagem, mas o motivo principal para usar novamente esta técnica neste filme foi a possibilidade de enquadrar na pós-produção. Penso que isto é diferente do que penso sobre a inteligência artificial, porque ao visualizar as imagens num headset de realidade virtual, pude gravar os meus movimentos. Por exemplo, ao visualizar a imagem, se faço isto, o enquadramento fica assim; se faço aquilo, fica de outra forma. É uma maneira muito diferente de abordar o enquadramento num filme. Faço os meus filmes para pessoas que não sabem o que é o enquadramento ou a realidade virtual, mas espero que sintam esta forma especial de observar os outros e de estar com eles através deste método.

Para mim, a maior diferença é que agora posso fazer o enquadramento não durante a filmagem, como é habitual. Durante a rodagem, estamos a pensar em mil e uma coisas, incluindo no próprio enquadramento, agora, faço-o sozinho na pós-produção, numa sala, dedicando todo o meu corpo e mente a isso. É diferente a forma como penso sobre o que enquadrar, onde enquadrar e como sentir isso, incluindo a relação física. Normalmente, enquadramos com as mãos, agora, posso fazer isto, enquadrar e até mover o meu corpo. A relação física com o enquadramento revelou-se diferente. Essa foi a razão para escolher esta câmara. Além disso, editei as duas horas do filme no computador e depois assisti-as de uma vez, para que pudesse enquadrar o filme todo de uma vez. Normalmente, faríamos isso cena por cena. Agora, consegui fazer o enquadramento continuamente, cena após cena, à medida que me movia. A última parte do filme está relacionada com essa experiência de assistir e, não sei, de ter assistido ao filme.

A principal razão para usar a câmara de 360 graus foi essa diferença no enquadramento e, enquanto a usava, descobria outras coisas. Por exemplo, a relação com o tipo de imagem é, por vezes, como o Google Maps, outras vezes como uma câmara de segurança ou como um videojogo. Descobri isso mais enquanto a utilizava do que antes. Não pensei especificamente que queria a câmara por isso. Mas quando vejo e edito, sempre tenho a oportunidade de acentuar isso ou não. Por exemplo, deixei alguns movimentos robóticos no computador porque me faziam pensar numa câmara de segurança. Ou algumas cenas eram mais como o Google Maps e podia escolher se queria que isso fosse mais acentuado ou menos acentuado. Portanto, sim, essa foi a razão.

É fácil conseguir financiamento para os seus filmes? Pergunto isto porque o “Auge Humano 3” é uma coprodução entre 8 países [Argentina, Peru, Brasil, Portugal, Países Baixos, Taiwan, Sri Lanka, Hong Kong].

Não! Fácil não é. Não sei quem te dirá que é fácil. Ninguém sente que é fácil, certo? Mesmo que para alguns filmes seja menos difícil do que para outros, ninguém acha que é fácil. Mas sim, a primeira vez que consegui financiamento institucional vindo de institutos de cinema, como aqui em Portugal, Argentina, Brasil, Holanda e Taiwan, foi para este filme. Para os outros, nunca consegui esse tipo de financiamento, principalmente quando comecei a fazer curtas-metragens. O que escrevia nunca interessava às outras pessoas, porém, acabei por encontrar quem se interessasse pelo meu cinema. Para as curtas, recebia ajuda de pessoas que gostaram de algum trabalho ou que leram algo que escrevi. Talvez, se gostares dos meus filmes, possas “ler” o que quero para o meu próximo filme e entender ou ter uma ideia do que pretendo fazer.

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El auge del humano 3 (2023)

Tentei procurar maneiras de fazer cinema com o dinheiro que tenho, ou fazê-lo com o apoio dos amigos. Apercebi-me de que ter as imagens filmadas é uma forma de conseguir que as pessoas se interessem em financiar o filme. Para a primeira longa-metragem, consegui financiamento privado dessa forma, graças àqueles que viram imagens que já tinha filmado ou as minhas anteriores curtas-metragens. Penso que, para este filme, provavelmente foi porque os anteriores tiveram uma boa recepção nos festivais de cinema e em outras partes do mundo cinematográfico.

E nas escolas de Cinema?

Talvez as instituições confiem mais nos meus filmes agora. Mas não é fácil. Além disso, é interessante que essas complicações tragam novas formas de resolver problemas, o que também é sempre fascinante.

Sigo para a pergunta, do qual julgo que lhe mais fazem. [risos] Este é o “O Auge Humano 3”, e houve um “1”, mas nunca um “2”. Pensa em fazer mais algum “O Auge Humano”? Talvez o 4?

Não sei. O próximo filme não será sobre o “2”, isso é certo. Não há dúvida alguma. Talvez nem sequer seja sobre o universo do “Auge Humano”. Não sei. Talvez no futuro, num futuro muito distante, quem sabe?

Mas por onde anda “O Auge Humano 2”? [risos] Ficará como um mito urbano? [risos]

Perdido no tempo. [risos] Sim, mas por agora, essa é a ideia. Não é uma necessidade fazer essa sequela. Claro, é possível, mas gosto deste mistério. É esse espaço vazio que talvez possa ser preenchido no futuro, ou talvez não. Um buraco misterioso. Também está no meu campo existir tantos buracos e partes que não compreendemos ou que estão de alguma forma em falta.

Pode falar em novos projetos? Sinto que tem um novo filme na sua mente.

Não! [risos] Não estou a sentir-me bem quanto a isso. Claro que tenho ideias em mente, mas por agora são apenas pequenas notas. No início, faço apenas anotações sobre as coisas que me despertam interesse. Depois, quando quero começar um projeto, sento-me, leio as notas e dou-lhes forma. Na maioria das vezes, provavelmente já não gosto da maior parte dessas notas, mas aquelas que ainda me agradam, junto-as e começo a trabalhar nelas. Por agora, estou a viajar muito para apresentar este filme. Além disso, como falo tanto sobre ele, sinto que preciso me distanciar e direcionar a minha mente para outro lugar. Estou sempre muito ligado aos filmes que faço, por isso não consigo dividir os meus pensamentos. Algumas pessoas conseguem ter vários projetos na cabeça; no meu caso, só consigo focar num de cada vez.

Ou seja, um “filho de cada vez” …

Sim, espero começar em breve, mas desde agosto, desde Locarno, tenho viajado sem parar. Vou continuar a viajar por mais alguns meses. Assim que conseguir desacelerar, espero poder iniciar o projeto.

Revenge of the 80's e mais cultos. Arranca o 3º Screenings Funchal Festival com vénia ao cinema de género.

Hugo Gomes, 05.07.24

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"Dead or alive, you're coming with me!", proclama Peter Weller, ou melhor, Robocop na homónima obra-prima de Paul Verhoeven, enquanto, Roddy Piper, mascando pastilha e com a shotgun a postos, ameaça: "I have come here to chew bubblegum and kick ass... and I'm all out of bubblegum.", numa outra obra-mestra, desta com assinatura de John Carpenter. "They Live" e "Robocop", dois filmes que ilustram o frenesim da sci fi da década de 80, pouco pretensiosa e astuta como deve ser, tendo a violência e o humor corrosivo como brindes. São alguns dos exemplares que serão exibidos nesta terceira edição do Screenings Funchal Festival (do dia 5 a 27 de julho), que, de mãos dadas com o MOTELx, premiará a Madeira ao longo de um mês objetos de culto, ora extraídos da ficção científica dos anos 80, ora dos recentes trabalhos do género de terror com direito a holofote.

Pedro Pão, programador, foi novamente desafiado a apresentar-nos a iniciativa, os seus filmes, as suas representações e a possibilidade de futuras edições com arraial à mistura.

Segundo parece, foram 315 os filmes exibidos ao longo destes 7 anos que marcam a iniciativa Screenings Funchal, como se sente perante este número? Tem a sensação de legado? 

É um número jeitoso e que custa a acreditar porque arrancar com isto foi duro. Houve muitos entraves. Portas fechadas que deviam estar abertas e muita porta na cara. A insularidade por si só é tramada e aqui ainda temos algumas especificidades lynchianas que podem ser muito desgastantes e com as quais ou aprendemos a lidar ou desistimos. Eu ainda não aprendi, mas também ainda não desisti. Portanto, de certa forma, é difícil de acreditar, mas não creio que "legado" seja a palavra certa. A sensação que tenho é a de ter feito o melhor que podia (e sabia) com os meios disponíveis. E isso, o que finalmente começa a dar, é uma certa paz de espírito. E mais importante ainda é a sensação de que estas sessões são importantes para algumas pessoas. No final do dia, só isso importa, mas é um número muito bonito.

Este ano, o Screenings Funchal Festival terá como aliado o MOTELx, antes de partimos para a temática do evento, como aconteceu esta abordagem / parceria? 

A vontade de trazer o MOTELx ao Funchal começou na minha primeira visita ao festival em 2017. Aquele festival, com aquele público e ambiente, foi uma experiência que me marcou bastante e fiquei com muita vontade de trazer um pouco daquela magia ao Funchal. O cinema de terror por cá geralmente corre bem, mas acho que, apesar de estar melhor, há uma grande lacuna (até neste género) na diversidade das obras que estreiam aqui na ilha. A ideia andou a marinar desde então.

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Repo Man (Alex Cox, 1984)

Porquê ficção científica - terror, ou melhor, cinema de género? Como se seleccionou a programação?

Acho que a escolha deveu-se à riqueza e diversidade do cinema de género, das lacunas na oferta e é também uma tentativa de trazer público mais jovem ao Screenings. Tenho particular estima por este género e isso acaba também por influenciar as escolhas. Incluo com relativa frequência cinema de género na programação regular do Screenings Funchal. Recentemente exibimos o “Le règne animal”, “Les Cinq diables”, “Memoria” [Apichatpong Weerasethakul] entre outros e correram bem. Mas não foram bem sucedidos em atrair o público mais jovem que gosta e vai ao cinema ver este tipo de filme. Portanto, aproveitamos estas circunstâncias especiais, e preparamos uma “caixa” que lhes pudesse parecer apelativa (o terror e o sci-fi), para depois apresentar obras autorais o mais estilisticamente diversas possível. E tentou-se no processo, não alienar o público habitual.

Sobre a mostra de culto dos anos 80, continua a existir um diálogo destas alegorias / distopias com a nossa contemporaneidade? Estes filmes ainda funcionam perante um público moderno, e muitas vezes, mais sensível? 

Acredito que sim! Acho que nesta selecção o “They Live” é o melhor exemplo disso. O John Carpenter disse há uns anos numa entrevista que o filme não era ficção científica era um documentário. Basta pensar na pandemia para este filme parecer um documentário em vários e perturbadores níveis. Não sei o que poderá querer dizer que filmes futuristas distópicos feitos há quase 40 anos, estejam hoje a se aproximar do género documental. Mas espero que estes filmes também sirvam para pensarmos nisso.

E sobre a seleção infantil?

Toda a secção Lobo Mau do MOTELX é simplesmente incrível. Foi possível trazer ao Funchal o Sustos Curtos que eu acho particularmente mágico. Espero que haja curiosidade por parte dos pais, porque tenho a certeza que os miúdos vão adorar. Acho mesmo importante naquelas idades este tipo de experiências. É um investimento com retorno exponencial garantido.

Ambição para o futuro? O desejo de um ciclo de John Waters mantém-se?

Gostava muito de trazer o Paulo Carneiro e o Pedro Costa ao Funchal e tenho alguns ciclos em mente que gostaria muito de concretizar como por exemplo do Herzog… Mas como é que se escolhem só 4-5 filmes dele? O John Waters continua em cima da mesa. Festejar um aniversário com esse ciclo seria a festa de arromba que a Madeira merece. Adianto em primeira mão que quando isso se concretizar, a edição irá se chamar “Arraial Screenings Funchal”.

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Toda a programação poderá ser consultada aqui

À procura de Fernando Pessoa, enquanto se acha Manuel Guimarães: uma conversa com Leonor Areal

Hugo Gomes, 03.07.24

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Onde está o Pessoa? (2023)

Onde Está o Pessoa?” relembra, e bem relembrado, o jogo visual celebrizado mundialmente “Onde Está o Wally?”. Neste caso, trata-se de um ensaio audiovisual que se incorpora como um filme-documento sobre uma certa nata artística da capital portuguesa. Estamos em 1913, e à saída de um concerto que teve lugar no antigo Teatro da República, uma multidão apercebe-se que está a ser “espiada” por uma câmara do outro lado da rua. A reação desta, que vai desde o evidente desconforto, passando por brincadeiras, até ao pensamento de posterioridade, proporciona à estudiosa académica, realizadora e ensaísta Leonor Areal um delicioso jogo de “quem é quem?”, até que… zás… eis Fernando Pessoa!

Este loop de imagens de poucos minutos fez notícia por ser uma alegada captura do escritor de “A Mensagem” em movimento. Será mesmo ele, ou um sósia?

Leonor Areal conversou com o Cinematograficamente Falando … sobre este projeto, que faz parte de uma multi-plataforma em homenagem ao poeta – o Arquivo Pessoa – sobrando tempo para abordar “países imaginados”, Manuel Guimarães e os Saltimbancos nunca concretizados.

Gostaria que começasse por falar sobre este projeto, o Arquivo Pessoa.

Este projeto começou há cerca de 30 anos, desde que a ideia surgiu. Depois, levou alguns anos para ser realizado em CD-ROM. Desenvolvi-o no meu mestrado em Comunicação Educacional Multimédia e que converti em CD-ROM em 1997. Consiste numa base de dados de toda a obra atribuída a Fernando Pessoa até àquela data, e numa outra vertente mais de iniciação para leigos e estudantes, que é uma antologia guiada que depois se transforma num percurso labiríntico. Portanto, tem muitas ligações, porque a obra de Pessoa é labiríntica. Em 2008, esse CD-ROM foi transposto para a internet e é o que hoje está no site Arquivo Pessoa Net e Multi-Pessoa Net.

Mas de onde vem esse fascínio por Pessoa?

Estudei Literatura na minha licenciatura e, portanto, conheci a obra de Fernando Pessoa através das aulas e desenvolvi um gosto por ele. Acho que é difícil não se sentir atraído e fascinado por Pessoa, porque a sua obra é tão vasta e complexa que todos nós encontramos nela algo que nos toca, não é? E pareceu-me que o hipertexto, que na altura estava a emergir, era um instrumento de organização das ideias, das imagens e do pensamento em rede que se adequava perfeitamente à obra de Fernando Pessoa. Naquela época, estávamos habituados aos livros com uma estrutura linear, que não podem ser de outra forma. 

Ele mesmo explica que as suas ideias surgem em associações permanentes e iniciam caminhos que depois não consegue terminar, porque desses caminhos nascem inúmeras ramificações. Por isso, ele nunca conseguia terminar as coisas, porque as suas ideias proliferavam imensamente. Assim, pareceu-me que essa maneira como Pessoa descrevia o seu pensamento e a sua obra fragmentária era, especificamente, adequada ao hipertexto.

Com o auxílio das possibilidades de pesquisa de uma base de dados, construí aquela parte mais didática também como hipertexto, em que temos percursos lineares, como os percursos guiados, quando se conta uma história ou se apresenta um conteúdo. Mas depois, esses percursos cruzam-se entre si, e as ligações cruzadas estão lá feitas, de maneira que podemos saltar de um percurso para outro através de uma associação informada, indo de um para outro e, provavelmente, a certa altura, já estamos perdidos no labirinto da obra de Pessoa. Assim, construí essa parte como um labirinto, criando todo o sistema em torno da vastidão da obra pessoana.

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Leonor Areal

Gosto do termo "pessoano". Não sei quanto a si, mas quando olho para a Pessoa, reconheço o seu inegável génio, mas há qualquer coisa de conspiratório no seu percurso, como estivesse dependente e “e se”. No filme do Edgar Pêra, "The Nothingness Club", logo no início, é-nos informado que Pessoa poderia ter ganho o prémio Nobel se não fosse a guerra. Portanto, lanço esta questão; acha que hoje, apesar de ser tão estudado e reconhecido, Pessoa continua, de certa forma, incompreendido?

Não acho que Fernando Pessoa seja incompreendido; pelo contrário, acho que ele é cada vez mais compreendido. Até porque essa maneira de pensar, essa dispersão em que ele vivia, essa multiplicidade, até os vários heterónimos que são egos ou alter-egos. Nós hoje lidamos com isso como algo quase inevitável, porque acedemos à internet, começamos num sítio, acabamos noutro, perdemos tempo e deixamos coisas inacabadas…

Como os avatares?

Ele tornou-se de tudo: mítico, um autor projetivo, ou seja, alguém em quem as pessoas projetam as suas próprias ideias e sentimentos, que nem sempre são dele, e até um ícone. Hoje em dia, vemos Fernando Pessoa em camisetas, em objetos decorativos, até em sabonetes. Eu acho que ele alcançou uma notoriedade tão grande. Mas, quando vi isso, pensei: "Isto é tão superficial. O que é que Fernando Pessoa tem a ver com sabonetes?" [risos]. É apenas uma tentativa de vender um produto usando a sua imagem, um desenho com o sujeito de óculos e bigode…

Fernando Pessoa desprendeu-se do seu imaginário literário, tornou-se numa atração e por sua vez uma figura ficcional. Há pouco referia o filme do Pêra, mas também fruto de duas metragens de João Botelho [“O Filme do Desassossego”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”], de Eugéne Green, para além dos inúmeras obras literárias como a do José Saramago [“O Ano da Morte de Ricardo Reis”] …

Simplificadamente: Óculos, bigode e chapéu, e por isso, vendem sabonetes aos turistas. Só para dizer que ele se tornou, de facto, quase um gadget caricato. Até há bandas desenhadas, algumas até bem interessantes e uma quantidade de literatura e filmes sobre ele. Aliás, há uma revista chamada Pessoa Plural, se não me engano, dedicada ao estudo de Fernando Pessoa no cinema. Penso que está disponível online, por curiosidade. O cinema português, em particular, tem uma grande ligação a Pessoa.

Ele está no cinema, na literatura, e há imensos autores que se inspiram nele. Além de Saramago que bem referiu, temos também o Antonio Tabucchi, que escreveu "Requiem".

Que também virou filme …

Sim, Alain Tanner adaptou para o cinema … E há muitos outros autores, no fundo, ele é uma referência …

Sim, mas falo não só dessa adaptação à sua figura como também se separou da sua pele de escritor para se tornar numa figura ficcional em domínio público [risos]. Não sei qual a banda desenhada que se refere mas recordo de uma em que Pessoa era um espião numa das suas vidas duplas [“A Vida Oculta de Fernando Pessoa”, de André F. Morgado e Alexandre Leoni].

Há outra obra engraçada, uma banda desenhada do Miguel Moreira e da Catarina Verdier. Pessoa dá origem a uma quantidade enorme de obras que o questionam, interpretam, que o leem. No cinema, ele tem sido interpretado por vários atores, mas inicialmente adquiriu um aspecto mais grave, pesado e sorumbático. De certo modo, isso é reforçado pelos comentários das pessoas, que perpetuam essa imagem mais austera de Pessoa. Mas isso também tem a ver com os retratos fotográficos da época. Curiosamente, naquela altura, as pessoas não sorriam para os retratos, muitas vezes porque as fotografias eram tiradas em pose, e sorrir poderia resultar numa imagem tremida.

Isso porque o processo de fotografia era muito demorado?

Exatamente. Durante muitos anos, pensei que essa seriedade nas fotografias refletia a seriedade da sociedade da época. Depois, percebi que era devido à necessidade de ficar imóvel para que a fotografia ficasse nítida. Por exemplo, no caso das fotografias de rua, as pessoas muitas vezes eram capturadas em movimento, o que dificultava a obtenção de sorrisos. Temos muito poucas fotografias de pessoas a sorrir ou a rir, e o mesmo acontece com Fernando Pessoa. Não temos uma fotografia onde ele mostre os dentes ou sequer um sorriso. Isso nos transmite uma imagem de gravidade ou tristeza que talvez não corresponda completamente à sua personalidade.

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Fernando Pessoa

Ou até tormento? A sua alma torturada é também mítica.

Sim, mas em relação a isso, ele queixa-se nas correspondências e nos seus poemas. Como toda a gente, ele tinha dias bons e maus, dias mais produtivos e criativos. No entanto, tendemos a congelar uma única imagem dele, uma imagem séria e grave. De certo modo, essa imagem se descongela com este filme, permitindo-nos ver outras facetas de sua personalidade.

Sobre este filme, as primeiras divulgações que tivemos através da comunicação social, foi o de alguém ter encontrado uma suposta imagem em movimento de Pessoa neste trecho. Portanto, começo por perguntar: como foi que o encontrou? Será mesmo ele, como o filme indica?

Sim, eu o encontrei porque fui à procura dele, sem saber que realmente o encontraria. [risos] Achei interessante que tantos homens daquela época se parecessem com o que hoje consideramos o ícone de Pessoa: chapéu e bigode. Todos pareciam iguais naquela altura. Como eu sabia que ele circulava por Lisboa e frequentava concertos, havia a possibilidade de ele estar ali, e igualmente a possibilidade de não estar, como tudo na vida. Fui à procura, pensando que essa pergunta seria interessante como ponto de partida para um filme ou ensaio que pudesse fazer a partir daquelas imagens.

Quando comecei a analisá-las, houve um momento em que o vi e tive aquele insight imediato: “É ele, pronto!”. Mas isso não bastava, tive que verificar e comparar. As fotografias de Pessoa não são muitas, mas os fotogramas desses segundos, cerca de 12 segundos, são muitos, talvez uma centena ou duas, todos diferentes porque ele se move. A partir do trabalho e da análise desses fotogramas, consegui verificar se os traços correspondiam às fotografias conhecidas dele.

Após muito tempo de dúvida, tive a certeza. Aquela certeza intuitiva inicial foi confirmada pela análise. No filme, demonstro isso. Claro que não mostro todo o processo de meses, quase um ano, mas destaco alguns pontos chave que permitem, com bastante segurança, afirmar que aquela é Pessoa. Claro que devemos sempre admitir a possibilidade de erro, mas estou bastante segura. Segura o suficiente para arriscar a minha reputação e dizer: "Acredite em mim, se quiser, eu estou segura."

Naturalmente, é normal que o espectador tenha dúvidas até aceitar a conclusão. Será difícil provar que não é Pessoa, porque se não for, é alguém igual a ele. E o que significa alguém ser igual a alguém?

Mas o que é curioso no seu filme, logo a começar pelo título - "Onde Está a Pessoa?" - é a proposta que apresenta. Ao longo do filme, antes de irmos diretamente a Pessoa, codifica aquela nata artística que saía daquele espetáculo, que atualmente é o Teatro São Luiz, mas que antes se dava pelo nome de Teatro da República. Ou seja, o filme não é apenas um dispositivo para encontrar Pessoa, mas também é quase uma reflexão sobre a elite artística da época. Eles praticamente conviviam e mantinham relações próximas, pelo menos de homem para homem.

Sim, aquilo era o centro de Lisboa, era a comunidade da Brasileira. Todo mundo sabia que os intelectuais se encontravam na Brasileira [café lisboeta]. Era lá que eles trabalhavam, mesmo vivendo em outros lugares da cidade. Todo mundo passava por lá, era o ponto de encontro. Naquela época, Lisboa recebia influências do comércio e da cidade, mas comparada aos dias de hoje, era relativamente pequena. Ali era o coração da capital, onde as pessoas se encontravam.

Se havia um concerto especial ao domingo, como música sinfónica, quem tinha uma certa cultura ou frequência habitual desses ambientes certamente ia. Talvez não houvesse muito mais além disso. Talvez teatro, e já havia os animatógrafos, onde se passavam peças curtas. Então, era natural que eles se encontrassem na Brasileira.

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Onde está o Pessoa? (2023)

Aliás, o concerto que aparece no filme foi um evento esgotado, muito disputado. Para reconhecer as pessoas, precisei fazer um trabalho meticuloso de pesquisa em documentos antigos, revistas como a Ilustração Portuguesa, revistas musicais, biografias, fotobiografias e sites, procurando pessoas que viveram em Lisboa naquela época para verificar se correspondiam às imagens que encontrava. Foi um trabalho que também dependeu de insights.

Por exemplo, por vezes folheava uma revista e de repente via uma ilustração que reconhecia, associando-a a uma pessoa que conhecia da vida real ou do filme. O inverso também aconteceu, procurando no filme pessoas que eu conhecia. Assim, foi um processo que se estendeu ao longo de meses e anos, porque mesmo depois de terminar o filme na forma atual, continuei a descobrir mais pessoas e informações.

Há mais pessoas para além daquelas que apresenta no filme? Descobriu mais alguma após terminar o filme?

Há mais uma coisa. Por exemplo, fiz algumas descobertas depois de terminar o filme (porque os filmes não podem ser feitos e refeitos), o que é um trabalho contínuo e exigente. O percurso não termina com o filme, ele continua.

Quanto ao filme, já descobri muitas coisas. Por exemplo, encontrei a Florbela Espanca, que na altura não a identifiquei. No entanto, um espectador que saiba disso hoje poderá possivelmente identificá-la quando ela aparecer.

Julgo ter lido Florbela Espanca nos exemplos dados no press release do filme, mas não recordava de a ter visto.

Pois é, mas isso faz parte das conversas, não é verdade? Posso dizer onde a Florbela está. Talvez se lembre. Há um momento no início em que digo: "O casal feliz.”, é ela. Eu estava atenta, mas é verdade que não esperava descobrir todos esses famosos. Para mim, eles eram todos anónimos, como qualquer multidão, seja hoje ou em outra época. Estava mais curiosa para entender o comportamento das pessoas diante da câmara, como elas se mostram interprerlativas. Queria capturar esses momentos de vida entusiástica. Depois, aos poucos, foram surgindo os famosos que encontrava. O primeiro que tocou particularmente no meu percurso foi o António Silva. Foi o primeiro que vi.

Sim, o homem fardado!

Bombeiro, de fato. Então, vejo o homem com aquela farda e penso: "António Silva!”. Volto atrás, exatamente como fiz na minha investigação, quase da mesma maneira como as coisas aconteceram. Claro, tive que condensar um pouco.

É curioso ver no seu filme, a relação das pessoas, desta época, em relação a uma câmara. Hoje a nossa interação é completamente diferente …

Sim, comportavam-se como crianças …

Exato …

Isso suponho que tenha a ver com a novidade que era uma câmara a filmar pessoas na rua. Hoje em dia, ninguém pararia para ver ou até...

Hoje, a maioria evitaria a câmara …

Naquela época, a novidade por si só devia ser suficiente para deixar as pessoas fascinadas. Quando as filmagens eram feitas, o que não era muito frequente, era costume apresentar esses filmes nos animatógrafos ou em outros locais. Provavelmente as pessoas que estavam presentes eram filmadas sem saber exatamente para quê, mas esperavam ansiosamente para verem a si mesmas na semana seguinte.

Estas imagens datam do ano 1913, décadas depois do primeiro “filme” português …

Sim, o realizado por Aurélio Paz de Oliveira em 1896 [“Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança”]. Naquela época [em 1913], ocasionalmente viam-se filmes estrangeiros, além de curtas-metragens, onde as pessoas iam principalmente para ver aquela ‘coisa’ espantosa que era a imagem animada. O cinema naquele tempo encantava e intrigava, assim como hoje a inteligência artificial nos intriga. No entanto, hoje em dia temos que lidar com ‘coisas’ que nos assustam, talvez, a mim assustam um pouco.

Havia uma sensação de novidade naquela época, era isso que queria dizer. As atitudes das pessoas podem revelar ou refletir isso. Embora muita coisa daquela época já não se consiga explicar exatamente, pois eram filmes mudos, e por isso, nós não sabemos o que as pessoas diziam. Estou à espera de que alguém com dotes de leitura labial me possa ajudar a decifrar.

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Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta (2017)

Saímos agora do filme … poderia-me falar um pouco sobre “Cinema Português - Um País Imaginado”, o seu livro-tese?

Então, esse livro, que foi publicado há aproximadamente 12 anos, foi baseado na minha tese de doutoramento, concluída cerca de 14 ou 15 anos atrás. Ele realiza uma análise abrangente de um período da história do cinema português, geralmente situado entre 1950 e 1980, com algumas variações devido à natureza fluida do tempo, da história e da vida em geral. Para efeitos metodológicos e para concluir a tese de maneira robusta, foi necessário estabelecer limites claros.

O livro tem como corpo somente as longas-metragens de ficção ambientadas na contemporaneidade, refletindo o mundo atual, e não em filmes históricos. Além de analisar as representações gerais, explora os temas e o contexto cultural desses filmes. Examina como Portugal é retratado ao longo do tempo e como esse retrato evolui nas produções cinematográficas. Não se restringe apenas a uma análise das representações, mas também investiga a evolução do cinema em si, a sua linguagem e estética, o que reflete diferentes maneiras de pensar e de ver o mundo.

Vim cerca de 200 filmes integralmente para conceber essa tese. [risos]

Essa relação com o país que estamos a ver, e com o mundo, é muito interessante. Você realizou um filme chamado "Nasci com a Trovoada: Autobiografia póstuma de um cineasta", sobre Manuel Guimarães, realizador com uma visão muito ligada ao neorrealismo da época. Poderia-me falar sobre esse filme como também sobre Manuel Guimarães, que me parece um cineasta que, por mais tentam resgatar a sua obra, nunca conseguem plenamente.

Mas há muita gente hoje em dia que aprecia o Manuel Guimarães! E eu os aprecio bastante [os filmes]. Eles têm sido revisitados ao longo do tempo. Houve um período nos anos, se não me engano, 80 ou 90 … talvez nos anos 90 [em 1997], em que a Cinemateca fez um ciclo dos filmes do Manuel Guimarães, exclusivamente dedicado: "A Travessia do Deserto", um título muito adequado. Essa foi a travessia que ele enfrentou nos anos 50, quando tentava fazer cinema interessante tanto socialmente quanto cinematograficamente, mas enfrentava a censura e a falta de recursos. Mesmo assim, ele conseguiu produzir algo significativo.

Por outro lado, ele faleceu em 1975, após a Revolução. Por isso, a sua sequência de carreira não se deu como esperado. Mais tarde, começaram a surgir os DVDs, uma coisa mais recente, talvez nos anos… 2009, 2010, mas posso estar errada em relação às datas.

Não estou a duvidar da sua dedicação a Manuel Guimarães, sei fez curadoria à exposição [com pesquisa de Carlos Braga, Miguel Cardoso e Rafael Prata.] que aquando no mais “recente” ciclo do cineasta na Cinemateca [em 2015]. O que refiro é este esquecimento que parece ainda envolver Guimarães, por exemplo, deu-se um gesto de reavaliação de António Macedo que parece, hoje em dia, ter dado frutos em relação à sua deixada obra.

Devo dizer que fiz um grande esforço para recuperar Manuel Guimarães, pois acredito que era um bom cineasta e que, se a sua obra não é perfeita, foi devido às condições adversas e às lutas que teve de enfrentar. Todos os seus filmes foram censurados, exceto o último [“Cântico Final”, 1976], que não foi cortado, mas que ele não conseguiu terminar porque morreu. A obra é um reflexo de uma vida difícil, e considero isso de grande valor. O que restou das suas intenções ainda possui qualidade, apesar de tudo.

Tenho uma teoria, que não posso comprovar, mas acredito que existe uma certa rejeição a Manuel Guimarães por ele ser visto como comunista ou esquerdista. Ele, de facto, tinha afinidades com os neo-realistas comunistas, como Alves Redol, por exemplo, e com Manuel da Fonseca.

Ele tinha desejo de adaptar a “Seara de Vento” do Fonseca, certo?

Sim. Ele tinha um projeto de adaptar o livro, que nunca chegou a realizar. Projetos havia muitos naquela época terrível. Hoje em dia também há muitos projetos; embora os tempos não sejam tão terríveis, continuam a ser desafiantes, de uma forma ou de outra. Faz parte do sonho, no fundo. Em vez de vermos isso como obstáculos, devemos ver como sonhos. Era o que Manuel Guimarães fazia. Ele usava, aliás, muito essa palavra, "sonho".

A mim, parece-me que existe um preconceito, uma rejeição inicial por ele ser esquerdista ou por estar associado a isso. Não sei se é, mas é o meu palpite.

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Saltimbancos (Manuel Guimarães, 1952)

Mas em relação ao seu documentário - “Nasci com a Trovoada”?

Então, esse filme era um projeto do Manuel Guimarães, que ele queria realizar como filme autobiográfico. Nos seus documentos, que listava os filmes que pretendia fazer e sobre os quais falava em cartas aos amigos, havia alguns esboços. No início, não escreveu sequências e planos, mas redigiu algo que corresponde a uma voz off, uma voz interior na primeira pessoa.

Utilizei esses documentos e outros materiais pessoais dele, além dos seus filmes, para construir essa autobiografia póstuma. Portanto, é uma falsa autobiografia, mas como é tudo feito com materiais dele, fui muito purista: tudo o que está ali é Manuel Guimarães remixado por mim.

E o que é feito desse filme?

Não consegui distribuir o filme nem que a televisão o passasse. E acho que a RTP tinha a obrigação de passar um documentário que é sobre o cinema português, como tem passado tantos outros. Tinha essa obrigação moral e estatutária, digamos, de serviço público, de passar filmes portugueses, especialmente os que são sobre a nossa história e cultura. A RTP deve isso ao cinema nacional.

Foi dado algum motivo a essa rejeição?

Houve muitos emails de um lado para o outro, conversas e negociações. Chegaram a dizer que sim, mas o sim nunca se concretizou. Acabei por desistir, de certo modo. Desisti de insistir ou de persistir, mas tenho o filme disponível para quem quiser ver. Para divulgar o filme, gosto de mostrar aos interessados.

Mas voltando à reavaliação de Manuel Guimarães, falou-me do seu quadrante político-ideológico, mas também se associa a fraca adesão do público português ao seu trabalho pelo facto de os anos 50 terem sido uma década difícil para o nosso cinema. Guimarães começou nessa altura a dar os primeiros passos na realização e fez isso lindamente com "Saltimbancos", três anos antes de "La Strada" de Fellini.

Já que menciona isso, é interessante que recentemente escrevi um ensaio onde li e analisei os projetos de filmes do Manoel de Oliveira, aqueles que ele teve nas décadas de 1930, 1940 e 1950, mas que não pôde realizar. Todo esse espólio está atualmente disponível na Casa do Cinema no Porto e fui lá consultar esses guiões. Há um deles que se chama "Saltimbancos", que li atentamente e comparei com o filme do Guimarães.

Esse projeto é de '44 ou '45, não tenho a certeza, mas esse meu texto já está publicado. Para além desse guião, tem planificação, orçamentos, tudo mesmo ‘preparadinho’, só que o filme nunca foi realizado. Era um projeto muito duro, muito neorrealista antes do tempo, e com muitas semelhanças na crueldade humana retratada em “La Strada” de Fellini, lançado 10 anos depois. É impressionante.

Isto é durante a Guerra que ele faz este projeto, portanto, são formas de olhar para o mundo e de construir uma visão, uma história dentro desse mundo, com preocupações, neste caso, acerca da sociedade, do tratamento dado às crianças e da vida errante e difícil dos saltimbancos.

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Manoel de Oliveira

Falava-se disso na época nos jornais, e, por volta de 1945, surgiu o romance "O Circo" de Leão Penedo, que depois foi adaptado pelo próprio escritor para o "Saltimbancos" de Guimarães. Portanto, na mesma altura, havia um escritor em Lisboa e um cineasta no Porto a abordar o mesmo assunto. Além disso, existem representações de "Saltimbancos" na pintura, embora não se saiba se essas datam da mesma época. Às vezes, há ideias que andam no ar, são preocupações comuns. Fellini, mais tarde, em outro contexto, também abordou temas semelhantes.

Só para concluir sobre Manuel Guimarães, fiz aquele documentário ”Nasci com a Trovoada” apenas com materiais de arquivo. No entanto, também realizei cerca de vinte entrevistas com pessoas que trabalharam com Manuel Guimarães. Se não tivesse encontrado o arquivo na Cinemateca, teria utilizado apenas as entrevistas, mas não consegui juntar ambos os elementos. Assim, metade do filme das entrevistas está montado, enquanto a outra metade aguarda há 10 anos. É isso que pretendo fazer a seguir.

O Tempo, trabalho e melodia em "Soma das Partes": falando com o realizador Edgar Ferreira

Hugo Gomes, 23.06.24

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Seis décadas, sessenta minutos de filme, é o que se resume a esta composição documental que se dá pelo nome de “Soma das Partes”, um projeto que vénia faz ao percurso histórico da Orquestra Gulbenkian, salientado as suas importâncias sociais, políticas e artísticas. 

Um trabalho informativamente rico, integrado por dezenas de entrevistados, solistas, maestros, todos juntos com batutas e instrumentos na mão, sonorizando este “tic-tac” - da sua fundação em 1962 por Madalena Perdigão, até à nossa contemporaneidade -, numa pauta de imagens de arquivo e performances em forma de brilharete, um aperitivo para todos aqueles que estão alheios a este universo, e que mesmo assim musicado para todos os públicos. 

Já nos cinemas: “Soma das Partes”, um filme de história e das suas historietas, dirigido por Edgar Ferreira, o condutor – apesar da sua negação – que nos recebeu na própria Fundação Gulbenkian para uma conversa sobre a sua composição e que, adivinhem, terá acompanhamento futuramente…

Questiono-lhe, este filme foi um encomenda ou uma proposta sua à Fundação?

Este filme nasce da necessidade de comemorar os 60 anos daquele que é um dos agrupamentos mais importantes da Instituição e, nessa altura, convidaram-me para fazer o documentário.

E havia alguma estrutura pré-estabelecida pela Gulbenkian?

Não. Não houve uma conversa prévia com o serviço de música. Logo nessa conversa inicial surgiu a ideia de "60 anos, 60 minutos", e tal ficou decidido. Começámos a trabalhar nesse conceito e em como poderíamos fazer um documentário que tivesse paralelismo com a música, sugerindo um determinado ritmo ou compasso, e que conseguisse contar toda a História da Orquestra gulbenkiana, desde o seu início até à formação que se conhece hoje.

E como foi essa gestão de tempo, principalmente nas entrevistas que insere?

O filme é feito em co-argumento com a Andrea Lupi, que fez as entrevistas aos 23 entrevistados. Quando tivemos uma conversa prévia, explicitei a minha proposta de demonstrar o tema do tempo, visto estarmos a comemorar o marco temporal da própria orquestra, e explorar as suas diferentes perspetivas: o tempo da música, o tempo da interpretação, o tempo dos maestros, a própria longevidade do agrupamento ou mesmo o tempo das obras que tocam, que têm entre 200 e 300 anos, e que ainda assim permanecem resistentes à erosão da passagem do tempo.

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Edgar Ferreira / Foto.: Elsa Mónica Alexadrino

Com esta estrutura definida, as perguntas que fizemos seguiram essa ideia. Incluímos, sempre que possível, questões relacionadas com o tempo, para nos dar diferentes perspetivas sobre a temática, que depois espelhámos ao longo da narrativa do documentário.

Respondendo especificamente à sua pergunta, com essas entrevistas, havíamos angariado muito material, abrangendo diferentes décadas. Perguntámo-nos se estaríamos a ser demasiado redutores ao restringir-nos a uma estrutura tão rígida que nos obrigava a deixar determinadas partes de fora. O exercício foi: vamos tentar condensar tudo o que queremos dizer num curto período de tempo e perceber se conseguimos fazê-lo ou não.

Fizemos a primeira década, depois passámos para a segunda e assim por diante, mas a dúvida persistia. Houve décadas em que partimos de um pré-argumento com 40 minutos, que tinham que ser concentrados em 10. Como foi feito esse exercício? Na edição, muitas vezes utilizamos a complementaridade do discurso dos entrevistados para conjugar – alguém começa uma frase, outro termina; alguém enuncia um conjunto de obras, outro acrescenta – permitindo que cada entrevistado retomasse o discurso, não se restringindo apenas àquela pequena parte. Respirações, interjeições, tudo o que não era essencial para o entendimento do documentário foi retirado. Adjetivação dupla: "é bonito e elegante", não, basta "elegante". O elegante já contém a beleza, então ficámos apenas com esse adjetivo.

Dessa forma, conseguimos incluir todas as temáticas que nos interessavam em cada uma das décadas. O documentário adquiriu uma cadência e uma rapidez de desenvolvimento inesperadas.

O facto de ter “conduzido” e trabalhado o tempo neste documentário, sente-se com isso próximo dos propósitos de um maestro / condutor?

Não me atrevo a fazer essa comparação porque não tenho domínio suficiente no ato de dirigir uma orquestra. [risos]

Não refiro à arte de dirigir uma orquestra, refiro mesmo a essa ginástica e ensaio de tempo …

Posso dizer algo complementar: a ideia de termos uma marcação de tempo no filme não é nada de novo, já foi feita inúmeras vezes, mas, regra geral, essa marcação de tempo é em contagem decrescente, o que gera ansiedade quanto ao fim. Aqui é o inverso, temos uma contagem crescente, uma soma, não uma subtração. Acrescentamos à história deste agrupamento, não na expectativa de um fim que resolva o filme. Em vez de sentir expectativa ou ansiedade sobre o fim, há um sentimento de crescendo, continuidade e progressão.

Eu tinha dúvidas porque, quando sentimos a passagem do tempo, nem sempre é por um bom motivo; estamos à espera de algo, e isso reflete-se no documentário. Ou seja, para o espectador, ver que o tempo está a passar pode ser prejudicial, mas devido à elevada cadência, o que acontece, ou a sensação que pretendemos obter, é que quando chegamos ao fim de uma nova década, ficamos curiosos por saber o que vem a seguir. O que vamos ouvir a seguir? Isso combina com o momento final que de alguma forma nos transmite o que é comum num movimento de uma orquestra ao longo de 60 anos.

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Maria João Pires em "Soma das Partes" (2023)

Mas essa decisão de colocar um cronómetro no seu filme, não teve medo de transmitir uma ideia contrária ao espectador?

Como estava a dizer, tive essa dúvida. Acho que no resultado final não sinto. Em qualquer momento poderia ter optado por retirar, mas não o fiz porque senti que este cronómetro faz sentido existir no filme. Ao contrário de fechar, esta contagem permanece, é um movimento contínuo.

Quanto aos entrevistados? À sua seleção? Houve alguém que recusou o convite?

Ninguém recusou o convite, houve dificuldades em reunir com alguns deles, seja por motivos de agenda. Estamos a falar de pessoas com agendas muito preenchidas, concertos a nível internacional. No caso dos maestros, dirigem orquestras em todos os cantos do globo, semana após semana. Alguns solistas, como Maria João Pires ou Evgeny Kissin, dão igualmente concertos pelo mundo inteiro com frequência, e reunir todas as entrevistas no mesmo espaço, no Grande Auditório, foi uma tarefa difícil, requerendo alguma logística.

Como funcionou essa abordagem com os entrevistadores?

Com a Andrea, falávamos previamente sobre a questão do tempo, e depois falávamos antes e durante cada entrevista, tendo algumas perguntas-guia para direcionar os conteúdos que pretendíamos obter, especificamente para aquela área ou para aquilo que aquela pessoa nos poderia dar. Houve esse exercício. A conversa fluía naturalmente e, normalmente, eu e a Andrea discutíamos na entrevista: "Que tal perguntarmos isto também?". E, se houvesse disponibilidade, essa pergunta era feita.

Em relação à investigação?

Tenho trabalhado com a Gulbenkian com alguma regularidade, e é um privilégio poder estar neste meio com os músicos e tudo o que isso envolve. Tendo a oportunidade de trabalhar com o serviço de música, vou conhecendo parte da história. Do diálogo com os músicos e técnicos, vou conhecendo histórias, coisas que aconteceram ou estão a acontecer, momentos importantes que, de alguma forma, marcaram a vida da Orquestra Gulbenkian

Quando comecei o documentário "Soma das Partes", já tinha em mente temas que para mim eram bastante evidentes: a música contemporânea, a Madalena Perdigão, que está na génese dos três agrupamentos da Fundação Calouste Gulbenkian: Orquestra, Coro e Ballet.

À medida que o documentário foi se desenvolvendo, adquiri conhecimento de outros episódios até então desconhecidos para mim, seja por via de pesquisa, seja de menções feitas pelos entrevistados nas nossas conversas. Como as entrevistas foram espaçadas, ao obter uma resposta, permitiu-nos investigar um pouco mais sobre o tema e, se achássemos pertinente o seu desenvolvimento e aprofundamento, fazíamos isso com outro entrevistado a seguir.

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Houve algum episódio dentro desta “Soma de Partes” que o fez repensar na estrutura do documentário? Por exemplo, enquanto espectador, senti curiosidade em saber mais sobre o afastamento de Madalena Perdigão da Fundação.

A Madalena Perdigão merece um trabalho exclusivo sobre ela. Este documentário não é sobre ela, é sobre a Orquestra. Achei importante mencioná-la, porque obviamente está ligada à história da Orquestra, mas houve um momento em que tivemos que deixar essa questão de lado. Estaria mais preocupado, como havia afirmado há pouco, se aqueles dez minutos correspondentes a uma década não fossem suficientes para esquematizar todos os acontecimentos desse período e se tornasse redutor, refém de uma estrutura inicial que nos impedia de atingir todo o potencial prometido. E as décadas foram-se resolvendo, uma a uma, e no final sinto que não ficou nada de fora que eu achasse que deveria estar no documentário.

Mas em relação a esse filme sobre Madalena Perdigão. Seria o realizador indicado para essa tarefa?

Gostava muito, mas ... só o tempo dirá. [risos]

Fale-nos desse outro projeto seu, o “Coro: 60 Anos do Coro Gulbenkian”?

É um projeto que tem um ponto em comum com o filme da Orquestra, que é a passagem por 60 anos de existência …

Ou seja, não terá 60 minutos?

... e as semelhanças terminam aí. O documentário do Coro permitiu-me conceber algo distinto do que fiz com a Orquestra e só faria sentido fazê-lo dessa forma. Isto está relacionado com a forma como abordo cada projeto. Tem que ser desafiante, tem que me propor algo de novo, que não me faça sentir que estou a replicar um modelo ou esquema do que fiz anteriormente. Tendo dois agrupamentos que pertencem à mesma instituição e que estão a comemorar o mesmo arco temporal, achei que tinham que ser dois projetos inteiramente distintos.

Sobre o título “Soma das Partes”? Este é alusivo à composição do documentário, seis décadas a 10 minutos cada, dando no seu total 60 minutos de duração, ou é uma referência à estrutura da orquestra, ela uma formação de vários músicos, talentos, instrumentos e classes musicais?  

É as duas coisas. A resposta está na pergunta. [risos] E daí, sendo natural, que é um nome comum, sempre utilizamos essa expressão "A soma das partes é maior que o todo", e isso não deixa de ser verdade neste caso, tanto nos elementos que compõem uma orquestra, no som que acabam por produzir, na perseguição pela excelência que está na génese da iniciativa da Madalena Perdigão até à formação atual, como também é maior do que o próprio tempo que foi experienciado pela Orquestra.

Sandro Veronesi, de "Colibri" a "Comandante": "escrever não é sobre controlo"

Hugo Gomes, 14.06.24

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Comandante (Edoardo De Angelis, 2023)

Un italiano vero”, o realizador Edoardo De Angelis avança neste episódio ambientado da Segunda Guerra Mundial, no seio do turbilhão geopolítico em águas internacionais com a história de Salvador Todaro, capitão do submarino Cappellini, que após uma investida a um navio belga, acabou por resgatar os 26 tripulantes do mesmo, da morte certa. Por que o fez? A “Lei do Mar”, pregada por Todaro, seguida pela exaltação dos valores italianos, foram a resposta.

Comandante” (que estreia agora nas salas portuguesas) promete ser um filme de guerra à sua moda antiga, de submarinos e tripulantes restringidos ao Oceano e ao cerco do couraçado. De nossa mente chegam-nos clássicos do subgénero como “Das Boot” ou “K-19”, mas o que encontramos verdadeiramente é uma obra com forte vertente ecuménica, humanista, para relembrar da nossa solidariedade e a sua “cegueira” perante facções, ideologias e divergências.

A escrita pertence a Sandro Veronesi, romancista popular e agraciado com os mais diversos elogios, cujas obras encontram uma nova existência na grande tela, seja personificadas por Nanni Moretti numa espera sem hesitações em “Caos Calmo” (Antonello Grimaldi, 2008), seja com Pierfrancesco Favino - que além deste “Comandante” - foi peça pessoal no filme “Il Colibrì” (Francesca Archibugi, 2022), a adaptação do trabalho mais famoso do escritor.

Durante uma das suas passagens por Portugal, mais concretamente durante a Festa do Cinema Italiano, na apresentação do filme, Sandro Veronesi partilhou connosco a sua experiência em argumentos cinematográficos e na escrita, como processo criativo e extensão da sua identidade.

É sabido que estudou arquitectura antes de se iniciar nas lides da escrita. Porquê a decisão? Será que perdemos um bom arquitecto para ganharmos um excelente escritor?

Nunca me considerei um arquitecto. Estudei arquitetura porque a encarei como um campo maravilhoso, e para isso fui para Florença, uma cidade que nos leciona arquitetura apenas caminhando pelas suas ruas. É um lugar onde tudo comunica arquitetura, especialmente no famoso centro da cidade. Embora os meus estudos tenham sido abrangentes e gratificantes, nunca me imaginei como um arquiteto.

Depois de concluí-los e obter o diploma, fugi de Florença para Roma, onde tinha amigos que, como eu, eram jovens e sonhavam em tornar-se poetas ou escritores. Eu também sonhava em tornar-me num, seja poeta ou escritor, imediatamente mudei de rumo e evitei qualquer oportunidade de trabalhar num estúdio de arquitectura ou em empregos relacionados. Depois de terminar os meus estudos, comecei do zero.

Claro que esta decisão foi tomada com o acordo dos meus pais, pois eu não tinha dinheiro, encontrei alguns pequenos trabalhos em Roma para ganhar algum, mas não era suficiente para me sustentar. O meu pai apoiou-me durante mais de um ano, até que finalmente encontrei um editor para o meu primeiro romance. A partir desse momento, a minha vida como escritor começou.

Eu estava incerto, na minha mente pensava: "Ok, deixa-me tentar. É melhor do que ficar em Florença e escrever apenas aos fins de semana. Deixa-me realmente dar uma oportunidade. Se falhar, sempre posso voltar e começar finalmente como arquiteto."

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Sandro Veronesi / Foto.: Matilde Fieschi

E esse risco foi bem-sucedido …

Sim, porque levei isso muito a sério. Mantive a ideia mais para deixar os meus pais confortáveis com o facto de que não viveria como um boémio, mas na realidade estava realmente a pensar em viver como um. Se o fracasso fosse explícito, tudo bem, teria algo para fazer. Eu sabia como me desenrascar num estúdio de arquitetura.

Numa das suas entrevistas sobre o seu livro "Il Colibrì", mencionou que a história começou com uma imagem forte na sua mente, e tentou encontrar significado a essa imagem. Frequentemente ouço que existem dois tipos de pessoas neste Mundo: aquelas cujos pensamentos traduzem em imagens e aquelas que as palavras são os seus pensamentos. No seu caso, parece que a sua formação em arquitectura o influencia a pensar em imagens. Esse pensamento visual serve como ponto de partida para o seu processo criativo na escrita?

A questão não é sobre pensar, porque sou mais guiado por imagens. Não estou a atuar; simplesmente deixo-me levar por essas imagens durante semanas, meses ou até anos. Não sei por que motivo tenho essas imagens ou sequências estruturadas na minha mente. Nunca escolhi pensar nelas; simplesmente acompanham-me, por vezes, tento descobrir onde e o porquê destas imagens formarem este mundo que carrego comigo, mas não as controlo.

Para mim, escrever não é sobre controlo, posso influenciar, embora não completamente, o estilo e a linguagem, escolhendo cada palavra com cuidado. Mas o que escrevo é decidido pelo próprio processo de escrita. Enquanto escrevo, memórias, ideias e invenções surgem enquanto digito, se parar de digitar para refletir, não consigo encontrar o que necessito. Sei que, enquanto digito, compondo uma frase e tentando melhorá-la, algo pode acontecer que revele por que aquela imagem está ali e onde ela pode encaminhar a minha história. Nunca é predefinido. O que posso controlar é a composição, costumo brincar, embora para mim seja uma verdade, que não entendo como os meus colegas escritores conseguem escrever um romance sem ter estudado arquitetura. [risos]

Estudar arquitetura ensinou-me muito sobre composição e a relação entre o homem e o espaço. Para mim, escrever um romance é exatamente isso: composição e a relação entre as pessoas e o espaço, e é nisso que foco a minha atenção, porque acredito que posso controlar uma parte significativa do processo. Mas porque ter estas ideias? É melhor não aprofundar muito nisso, pois seria mais apropriado para uma terapia psicanalítica. [risos]

O que é importante para mim é a confiança de que, ao trabalhar numa frase ou numa página, durante o esforço de escrever um romance, terei a revelação das próximas páginas e capítulos. Sempre foi assim para mim. Inicialmente, foi uma surpresa, mas agora sei: não se pode chamar isto de método porque nada é controlado. Mas existe uma confiança de que, ao fazer o que faço de melhor, torno-me mais sensível ou capaz de captar todos os elementos, sejam eles internos ou externos a mim, que são importantes para expressar o que quero dizer.

Não sei exatamente o que é até ao final do meu processo de escrita.

Em relação àquela imagem poderosa que inicialmente o impressionou, como se sente ao ver a adaptação cinematográfica, como em "Il Colibrì"? Alguma vez pensa: "Isso não foi o que imaginei," ou tem reações semelhantes? Tem algum controlo criativo sobre esses filmes?

Prefiro não me envolver nas adaptações cinematográficas dos meus romances porque acredito que é melhor manter as linguagens separadas. Sou responsável pela forma literária da história e não desejo influenciar o processo de argumento, aqueles que trabalham no filme devem ter completa liberdade para interpretar e adaptar a história como bem achar, sabendo que não podem capturar todos os detalhes que um romance detém na sua totalidade. Por vezes, encontro elementos no filme que não são meus — eles emergem do mundo interior do realizador - nessas situações, reconheço-os como a contribuição do realizador para o seu próprio filme, respeitando as suas experiências e sensibilidades únicas.

Encontrar essas divergências pode ser como encontrar subitamente no exterior estando ainda no seu próprio país — um reconhecimento de algo não originalmente concebido ou escrito durante o processo de criação do romance. No entanto, aprecio quando cineastas trazem as suas próprias ideias, imagens e interpretações para a minha imaginação, que a “contaminam”, que as tornam suas. Nas adaptações para o cinema, assim como nas outras formas de arte, há um diálogo respeitoso entre a obra original e a sua tradução cinematográfica.

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La forza del passato (Piergiorgio Gay, 2001)

Os cineastas possuem todo o direito de introduzir mudanças, e entendo que alterar a linguagem e a expressão no filme inevitavelmente envolve perdas e ganhos. Essa transformação é natural, é semelhante a um pintor retratar uma personagem de um romance — inevitavelmente infundindo a pintura com a sua própria perspectiva e inspiração.

Quando se trata de avaliar as adaptações cinematográficas dos meus romances, foco no impacto emocional, na interpretação, na cinematografia — todas as qualidades específicas que fazem de um filme uma obra distinta em relação ao romance. Inicialmente, fiquei chocado com a adaptação do meu primeiro romance - "La forza del passato" [de Piergiorgio Gay] - especialmente ao ver Bruno Ganz incorporar as minhas palavras no palco principal do Festival de Cinema de Veneza em 2001. Foi uma experiência desconcertante, especialmente enquanto jovem escritor.

Desde então, aprendi a abordar as adaptações cinematográficas com objetividade, tentando vê-las como obras independentes, ao invés de reflexos diretos da minha criação original. Posso gostar ou não de uma adaptação cinematográfica, e se me decepcionar, posso hesitar em expressá-lo ao realizador — talvez esteja a ser demasiado crítico. No entanto, tive experiências principalmente positivas com as adaptações porque, fundamentalmente, tenho um sincero apreço pelo cinema.

Em "Comandante", teve mais influência criativa no filme porque esteve envolvido na escrita do argumento. Como foi a experiência de escrever um argumento em comparação com escrever um romance para si?

Para mim, é simples. Escrever argumentos não é onde a minha criatividade prospera; não é o meu papel principal, e muitas vezes, sinto-me como um outsider nesse processo. A verdadeira fonte de energia inventiva sempre foram os outros, não eu mesmo, isso tornou-se evidente nas versões iniciais dos argumentos. No entanto, as circunstâncias mudaram durante o confinamento e a pandemia de COVID-19, tornando impossível prosseguir com as filmagens. Então, decidi escrever um romance em vez disso.

Ao escrever o romance, encontrei inúmeras ideias, imagens e invenções. Eventos históricos exigiram diálogos e narrativas inventivas, especialmente sobre o que ocorreu a cinquenta metros abaixo do nível do mar — detalhes que precisavam ser inventados. Escrever o romance gerou inúmeras ideias para versões subsequentes dos argumentos. Esse processo iterativo envolveu a transição do guião para o romance e vice-versa várias vezes. Encontrei-me muito mais envolvido criativamente na elaboração do aspecto literário do que nas fases iniciais do argumento. No entanto, escrevê-los não é a minha especialidade; apenas concebi cinco argumentos em quarenta anos — não é o meu foco.

Tenho dificuldade em contribuir plenamente com a minha sensibilidade quando me é solicitado escrever algo desprovido de estilo, o foco não está na eloquência, pois uma escrita funcional é suficiente para a equipa de filmagem: o filme em si será o verdadeiro empreendimento. Como mencionei antes, as ideias vêm a mim enquanto procuro encontrar beleza na minha escrita. Focar na forma permite-me capturar a essência. Por outro lado, acho desafiador libertar a minha criatividade totalmente na escrita de argumentos. Isso, para mim, destaca a diferença fundamental; não sou um argumentista.

Escritores excepcionalmente hábeis tanto na escrita de romances quanto na de argumentos atestarão o contraste acentuado nos processos. Escrever argumentos exige pensamento rápido e distanciamento, afastando-se da influência pessoal, no final das contas, os espectadores são indiferentes ao argumentista ao assistir a um filme — eles envolvem-se com o produto final, não com o seu criador. Em contraste, os leitores escrutinam e avaliam todos os aspetos de um livro, colocando uma pressão imensa sobre o escritor.

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Comandante (Edoardo De Angelis, 2023)

Paradoxalmente, essa pressão aprimora o meu processo criativo. Ela encoraja-me a explorar novas ideias livremente, sem o peso do julgamento que acompanha a escrita de romances. Essa sensação foi palpável não apenas em "Comandante", mas também nos meus outros projetos cinematográficos. Embora tenha contribuído, muitas vezes senti-me dispensável, Edoardo De Angelis poderia facilmente assumir as responsabilidades de argumentista após o romance, mas as minhas ideias mostraram-se inestimáveis na formação das versões subsequentes dos argumentos.

Porquê esta história concretamente?

Esta história é emblemática para a Itália, especialmente durante o verão crítico de 2018. Foi um período político tumultuado marcado por ações do governo e políticas ministeriais que propagaram uma narrativa prejudicial. Esta narrativa sugeriu permitir que migrantes perecessem no Mar Mediterrâneo na sua jornada da África para a Sicília. Esta representação não reflete quem realmente somos. Como italianos, somos melhores do que isso.

Como deixa transparecer no filme: “os Nazis os deixariam no fundo” …

No filme, esse tema é enfatizado, refletindo uma realidade histórica. Naquela época, nós, italianos, éramos retratados por palavras e ações verdadeiramente deploráveis. Eu e os meus amigos — escritores e realizadores — buscávamos maneiras de expressar veementemente a nossa indignação. Criei um grupo no Signal (não no WhatsApp), mas numa plataforma similar, para explorar ações além de meros protestos, mais próximas das nossas profissões como escritores e cineastas.

Edoardo encontrou um artigo no jornal diário italiano Avvenire, publicação da Conferência Episcopal Italiana. O artigo narrava um discurso de um almirante da Guarda Costeira italiana durante o 121º aniversário da fundação. A mensagem foi contundente: ele reconhecia seu dever de obedecer às ordens, mas lembrava às autoridades de suas responsabilidades morais. Naquele momento, as ordens haviam mudado, instruindo a não realizar resgates além das águas territoriais, deixando efetivamente aqueles no mar à deriva.

As palavras do almirante ressoaram profundamente connosco, o seu lembrete da história de Salvatore Todaro — brevemente mencionada no discurso — tocou uma corda sensível. Edoardo entrou em contato com o jornalista que escreveu o artigo, um firme defensor das missões de resgate no mar mesmo diante de ameaças da máfia da Líbia. Decidimos seguir adiante com essa história.

Escrever um romance foi mais fácil do que fazer um filme, dado o significativo custo deste último. Foram necessários cinco anos para que o filme se concretizasse, enfrentando desafios como a COVID-19 e dúvidas pessoais sobre sua viabilidade. Tragédias, como a do último inverno, com a perda de 90 vidas nas águas ao sul da Itália devido à falta de intervenção, destacaram a urgência de nosso projeto.

O exemplo de Salvatore Todaro durante a guerra destacou a primazia do direito marítimo e da solidariedade no mar acima de tudo. É a única garantia que leva as pessoas a se lançarem ao mar. O contraste com a retórica vergonhosa de certos funcionários do governo, negando resgates e ajuda no mar, foi gritante. O exemplo de Todaro foi claro e puro, nos compelindo a trazer essa narrativa à luz.

Após cinco anos de incerteza, finalmente concluímos o filme. A história que ele conta é clara — não é uma história de guerra, mas de homens no mar, defendendo a lei do mar e o imperativo de ajudar aqueles que precisam.

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Il Colibrì (2022)

Com “Il Colibrì” e agora “Comandante”, ficamos com a sensação que o ator Pierfrancesco Favino é a face das adaptações cinematográficas dos seus romances. Já está a preparar o seu próprio papel? [risos]

Atualmente, estou a finalizar um novo romance em que a personagem principal tem 12 anos [risos]. Brinquei com ele, dizendo: "Prepara-te, porque desta vez será difícil voltar aos 12 anos - vai trabalhar muito, vai." [risos] Mas estou realmente emocionado porque ele é um ator verdadeiramente fantástico. Já o conhecia antes, mas foi só depois de "Il Colibrì" que descobri verdadeiramente a sua abordagem.

Uma vez ele apontou para mim: "Nunca descreves diretamente a aparência da personagem principal. Tudo acontece com ele, mas nunca é revelado o rosto dele." Pelo que respondi: "Não, porque não é necessário para mim. Não quero perder tempo a descrever aparências." Ele perguntou: "Mas como eu vou retratá-lo então?" Disse diretamente: "Isso é contigo. Não esperes que eu faça isso."

Depois de algum tempo, ele disse: "Encontrei inspiração em você." Ele especificamente quis usar óculos. Não era uma imitação; ele usou a minha figura como modelo para moldar a sua personagem. Ele explicou que enquanto afirmo não ser Marco Carrera nem um Colibri, já que não dei mais especificações, ele decidiu me incorporar através dos óculos.

Através dessa experiência, entendi melhor o seu processo. Ele pega algo objetivo do exterior e transforma-o numa personagem completamente nova, começando a partir desse ponto. Em "Comandante", houve muitas pistas externas, como um ombro quebrado, para ajudar um ator a encontrar a sua personagem. No entanto, em "Il Colibrì", foi diferente. Ele simplesmente voltou-se para mim e disse: "Você será a minha inspiração."

Atravessemos o "Pedágio": uma conversa com Carolina Markowicz

Hugo Gomes, 13.06.24

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Pedágio (2023)

Seguimos o caminho casa-pedágio / pedágio-casa sob o olhar cínico e, em certa parte, caricatural de Carolina Markowicz nesta sua segunda longa-metragem - “Pedágio” - uma co-produção luso-brasileira que aborda as terapias de conversão gay praticadas pelas igrejas pentecostais sob um mote de “high moral ground”. Aqui, o ator português Isac Graça nos é apresentado como o pastor deste “circo” montado na hipocrisia moral, signo humano que a realizadora perpetua ao longo da sua obra de passo acelerado. “Pedágio” (2023), designação brasileira para portagem, chega aos nossos cinemas, um ano depois da sua estreia no formato longa com “Carvão” (2022), também sobre aparências e ambiguidades morais, o qual repete a sua protagonista, Maeve Jinkings.

Carolina Markowicz passou por Lisboa para apresentar o seu mais recente trabalho em sessões especiais, algumas delas ligadas à programação do Indielisboa, festival que sucede à sua estreia mundial nas telas de Toronto e San Sebastian. Nessas andanças, arranjou um breve tempo para conversarmos sobre o filme e a sua periferia. Fica o aviso … alguns “pedágios” foram atravessados aqui. 

Quero começar com o ínicio de tudo. Sobre “Pedagio”, de onde surgiu a ideia para o filme? 

A ideia do filme surgiu de uma certa inquietude que tinha em entender pouco... No Brasil, há uma cena política muito forte, cheia de escárnio para com a população LGBT, que é absolutamente surreal, protagonizada por pessoas que detém muito poder na nossa sociedade. Por exemplo, houve uma ex-ministra dos Direitos Humanos [Damares Alves], que agora é uma das senadoras mais votadas, que afirmou num vídeo que as crianças não podem ter bonecas da “Frozen”, porque é lésbica.

Também, um dos deputados mais votados do Congresso, de um dos maiores estados, colocou uma peruca verde e fez um discurso anti-população trans. Outro pastor, também deputado, com um grande quórum de votos, começou referir os sinónimos dos seus órgãos genitais. Ou seja, acontecimentos ridículos, patéticos, e que inacreditavelmente não descredibilizam essas pessoas. Sempre tive muita inquietude em entender como é que essas pessoas não são colocadas no ridículo onde deveriam estar. É simplesmente inacreditável; não conseguia acreditar que alguém comprasse, ou pior ainda, acreditassem no que eles estão a pregar, e eles mantêm e até aumentam os lugares de poder onde se encontram. 

Como também, a ideia nasceu do turbilhão disso tudo, porque para mim - por mais que, obviamente, os lugares tenham esse conservadorismo flutuante, essa polarização - as pessoas estarem preocupadas com a sexualidade alheia é tão anacrónico. Estamos em 2024 e isso é tão presente. Então, acho que essa grande questão não só brasileira é também mundial …

E isso está a aumentar …

Exato. Além disso, existem as bolhas mais progressistas, só que, com tantos problemas reais no mundo, as grandes “procupações” é se alguém está a ter relações sexuais com homens ou com mulheres. Todos esses elementos contribuíram para uma grande sopa de ‘coisas’ importantes, portanto, pretendia colocar isso no filme e retratar com uma certa ironia essas pessoas que são levadas demasiado a sério. E daí surgir esta história, desta mãe e deste filho. 

Na verdade, para mim, o personagem principal do filme resume-se nessa relação, que é problemática, como qualquer relação normal, mas também sem demonizar essa mãe, que é o produto de uma sociedade que lhe ensinou que o filho deveria ser de determinada maneira. Como tal, ela acha que fez algo errado.

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Carolina Markowicz / Foto.: Carlyle Routh 

Essa questão da relação gostaria de abordar novamente, porque para mim também foi uma característica muito acentuada no seu filme. Mas voltando ao tema central do “Pedágio” … vamos apontar o “coração” do filme nas chamadas terapias de conversão. Experienciou, ou foi atrás da existência dessas terapias no Brasil? Como elas funcionam? Qual o seu modo de operar?

Sim, fui. Pesquisei muito, falei com muitas pessoas, visitei muitos lugares, li muito a respeito, etc. Contudo, o filme não retrata essas terapias de forma literal, com a violência que realmente ocorre, não tinha a intenção de fazer um filme sobre a violência que acontece, que provoca coisas horríveis, inclusive suicídios, situações realmente muito graves e negativas. A minha ideia não era retratar uma violência gráfica nessas pessoas. Não era o que pretendia. Queria virar a câmara para o ridículo de quem pratica isso, de quem acredita nisso, por ser absurdo alguém achar que tem o poder ou que deveria procurar algo como tivessem a combater uma doença.

Queria entender e pesquisar, mas o meu objetivo nunca foi reconstruir elas são, literalmente, no sentido da seriedade e gravidade delas. Mas, sim, abordar essa ideia de terapia de conversão, que é algo que vivemos diariamente no mundo. Um político ou um presidente [Jair Bolsonaro] dizer que preferiria ter um filho preso que a um filho gay, ou uma pessoa qualquer com uma peruca verde a fazer declarações ridículas sobre o que é ser homem ou mulher, é algo que enfrentamos e que estamos a lidar diariamente.

… ou até mesmo dentro de casa.

Sim, até mesmo dentro das nossas casas. 

É que nesta relação, falo obviamente da mãe, é todo um espelho dessa sociedade - “Não, você tem que aprender homem” - ou a tentativa de arranjar qualquer trabalho que seja correspondente à imagem masculina.

Exatamente. 

Mas essa questão das terapias de conversão, algo que você mencionou, é que captou o ridículo da situação. No entanto, os relatos que temos, especialmente vindo dos Estados Unidos, são de uma violência, seja psicológica ou física, indescritível. O que você retratou é o ridículo dessa idealização; nós rimos daquilo.

Exato. Nós rimos da ideia de terapias de conversão, sem negar o facto de alguém querer mudar algo que você é, é bastante violento. E também como você disse, já temos muitas obras que mostram isso, portanto não queria trabalhar em algo que já tivesse visto, e quanto à violência, bem sabemos que é, não havia necessidade de sublinhar mais. 

A minha intenção era ter um outro tom ... Porque o humor é também violento de uma certa maneira. Por vezes é mais efetivo até do que reiterar algumas coisas, então, colocar essas pessoas nesse lugar ridículo, tanto de quem faz aquilo quanto de quem acredita, parece ser mais interessante enquanto linguagem. Não estava interessada em fazer mais um filme sobre cura gay, e mostrar alguém em sofrimento, queria revelar o quão ridículo e absurdo é alguém querer mudar alguém ou fazer alguém sofrer por essa pessoa ser gay? Para mim, essa era a questão mais interessante a ser abordada.

Gostaria também de perguntar porque, e como, escolheu a mesma atriz com quem havia trabalhado em "Carvão", Maeve Jinkings, e se há planos de colaboração numa terceira longa-metragem no futuro?

A concepção dos dois filmes meio que se cruzaram, e foram feitos em tempos muito próximos. Comecei a escrever o "Carvão" em 2016 e, sei lá, um ou dois anos depois, prossegui para o "Pedágio". Quando comecei a escrever a primeira longa, já imaginava o papel pensando nela, quando segui para a segunda, também pensava na Maeve, mas não queria que fosse a mesma protagonista; queria visualizar outra pessoa, mas não consegui.

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Carvão (2022)

O que aconteceu ao certo é que ela já estava integrada no “Carvão”, depois seguiu-se a produção do “Pedágio” que seria filmado ainda antes da pandemia, só que conta da mesma, e consequentemente as questões de orçamento, etc, toda essa situação fez com que o filme não pudesse ser filmado no período pretendido, foi uma reviravolta louca. Nesse momento, ela ficou vinculada ao "Pedágio", assim como "Carvão". Não conseguia parar de visualizar ela enquanto Suellen [protagonista de “Pedágio”]. Então, liguei para ela um dia e disse: "Cara, tenho uma coisa para te falar. Sinceramente, eu não queria te fazer este convite, mas vou ter que fazer. Você leria o roteiro? Porque não paro de te imaginar como essa personagem, mas não queria ter a mesma pessoa protagonizando os dois filmes, porque são duas mães. Os filmes são muito diferentes, mas são duas mães."

Ao qual respondeu: "Nossa, eu não me incomodo nem um pouco”. Fez uma piada, “não me incomodo nem um pouco de repetir diretor, não sei o quê." Aí ela leu e amou o guião. A partir daquele momento, quando começamos a conversar sobre a personagem, passou a ser impossível tirá-la da minha cabeça. Já a tinha convidado, e ela passou a estar vinculada a "Pedágio" também. Isso foi antes de filmar "Carvão". 

Filmamos "Carvão", foi ótimo, a nossa parceria foi incrível. A relação, o entendimento da linguagem, foi realmente muito incrível a relação que construímos profissionalmente. Três meses depois, filmamos "Pedágio", e já tínhamos uma relação de confiança e entendimento artístico muito forte.

Não sei se ela vai fazer os próximos filmes, mas ela é uma atriz muito capaz. Penso, assim como na Aline Marta, que fez os dois filmes também, fazendo a enfermeira em "Carvão" e a amiga dela em "Pedágio", são atrizes muito boas, com uma sintonia artística para comigo, o que me fascina. Consigo enxergar nelas as novas vidas que criarão quando as vemos no cinema. Então, não sei dizer especificamente se ela vai ou não fazer, mas possivelmente, ela, Aline, Camila Márdila, Pedro Wagner, Thomás Aquino, atores que gosto e com quem já trabalhei e que gosto muito de trabalhar, repetiria sem dúvida. Ela, com certeza, é uma delas.

Pelo visto funcionou, tendo em conta o curto prazo entre a produção dos dois filmes, em "Carvão" tem uma postura mais "bicho do mato", enquanto "Pedágio" assume uma personalidade completamente diferente. 

Mas o que é interessante nesta relação entre mãe e filho [interpretado por Kauan Alvarenga, o qual trabalhou com a realizadora na curta “O Órfão”, em 2018], é que, em momento algum, encontramos uma epifania, uma consolidação ou redenção, aquele momento chave que a partir daí “tudo correrá bem”.

Por exemplo, falando em conversão, recordo de um filme norte-americano com a Nicole Kidman, “Boy Erased” [de Joel Edgerton], onde existe um momento em que a sua personagem faz com nós espectadores simpatizamos, ou perdoamos ela. Em “Pedágio”, sabemos o que a mãe está a fazer ao seu filho, e ao mesmo tempo percebemos que o filho também não demonstra grandes sentimentos para com ela Aqui, a relação é um eterno work in progress, o que a torna mais verdadeira e humana.

Diferente desse filme que mencionaste, que apresenta uma linguagem que, sinceramente, não corresponde à minha visão nem às histórias que me cativam, pois penso que se trata de enredos que, de certo modo, ficam por resolver. Penso que uma relação de tamanha complexidade é algo subtil e, simultaneamente, um eterno trabalho em progresso. Esta relação é um constante trabalho em desenvolvimento, não é algo que se resolve numa epifania, como disseste, onde tudo magicamente se acerta ou desmorona. Eles são mãe e filho e, acima de tudo, amam-se. Isso fica claro em vários momentos, como quando o namorado dele pergunta: "Por que precisas da tua mãe se não dependes dela?" E ele responde: "Porque a amo." É algo que nem ele próprio consegue explicar totalmente, mas que está lá.

Por exemplo, no final do filme, quando estão juntos e ela olha para ele, não é um olhar de orgulho, mas também não é fácil perceber exatamente o que o olhar transmite.

Para mim, é assim: esta história vai continuar. Como vai continuar? Se ela vai aceitar, se não vai, existe um processo, e é esse processo que me interessa, porque acredito que é isso que humaniza os personagens. É verdade: discutimos com alguém, ficamos chateados por algum motivo, ou amamos alguém, e isso precisa de tempo para assentar, para compreender, para nos habituarmos, ou não. Faz parte das nossas relações esses altos e baixos, esses caminhos por vezes tortuosos, que nem sempre resultam num final resolvido e feliz.

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Pedágio (2023)

Há momentos em que ela diz, até ao seu namorado, que ama o filho e que faz tudo por ele. Então, vou focar-me muito nessa dinâmica, porque acredito que essas pessoas veem aquilo como uma doença.

Sim, também acredito que essas pessoas veem aquilo piamente como uma. Elas são ensinadas a pensar assim, são produtos de uma sociedade que lhes inculca que, se não tiverem um desempenho social perfeito, há algo de errado com elas. Sendo uma mãe que criou e está a criar um filho, qualquer erro é atribuído a ela.

Penso que isso, aliado a várias pequenas ‘coisas’ do dia a dia, como os colegas de trabalho a gozar, cria um sentimento de sensibilidade forçada. Esse sentimento, que é o que move as pessoas, é muito forte, é quase como se ela fosse uma outsider numa sociedade onde todos seguem normas e se encaixam em papeis pré-estabelecidos, reconhecidos e entendidos como corretos. Cada um tem o seu lugar.

Portanto, para ela, aquilo é um ato realmente bom pelo filho. Ela acredita que está a consertar o filho e, consequentemente, a sua própria vida, para que não seja mais julgada como uma pessoa que falhou. Sim, é uma sequência.

E a Igreja, nomeadamente as pentecostais evangélicas, no Brasil, tem contribuído para isso.

Com certeza, não quis estabelecer especificamente que tipo de igreja era. A ideia também foi trazer um pastor diferente, que não fosse aquele pastor mais velho, com cultos tradicionais que já vimos várias vezes, e sem caracterizar exatamente que igreja é essa. Mas, claramente, é uma igreja pentecostal.

Não me refiro apenas aos evangélicos. Todos os religiosos conservadores têm questões com a homossexualidade e a maioria deles condena-a. Existem algumas frentes de igrejas evangélicas que são dissidências muito esparsas e específicas, com outro ponto de vista, mas no geral, contribuem para o conservadorismo, o preconceito e a violência, porque o resultado disso não é só a ridicularização ou os insultos, mas uma violência física real. O Brasil é um dos países que mais mata a população LGBT+ no mundo, então essa questão é muito forte.

A igreja, os pastores, e o que pregam, com certeza, contribuem muito para que isso continue a ser uma prática na sociedade. E não se pode colocar a culpa apenas na religião evangélica, mas ela é mais proativa e tem uma disseminação muito grande entre as pessoas.

Como também no Brasil, essas igrejas estão muito associadas ao poder político …

Exatamente. Os pastores praticamente determinam quem será eleito, pois instruem os fieis a votarem apenas em certas pessoas. Está tudo muito interligado com o conservadorismo. Mesmo que alguns políticos sejam mais progressistas, muitas vezes não podem se posicionar como tal, pois correm o risco de perder o eleitorado de uma certa parcela da população, que é orientada por esses pastores. É uma loucura!

Além disso, há políticos que não são progressistas de fato, mas precisam manter uma postura conservadora para garantir o apoio dessa base influenciada pelas igrejas. Essa dinâmica perpetua um ciclo de conservadorismo e preconceito, dificultando ainda mais a mudança social e a aceitação de questões como a diversidade sexual e de gênero.

Falando apenas do pastor evangélico, gostaria de abordar a presença de Isac Graça, pois, tal como mencionou anteriormente sobre a questão do ridículo destas terapias, o papel do ator parece contribuir nesse sentido. Além disso, gostaria que falasse sobre a sua entrada no projeto: foi um exigência da coprodução portuguesa [O Som e Fúria]?

Entendi, não foi um pedido de jeito nenhum, foi uma escolha totalmente artística. Inclusive, até uma semana antes de começar as filmagens, eu estava procurando atores no Brasil, mas não conseguia visualizar exatamente como seria aquele pastor. Eu não queria apenas repetir um tipo de personagem que já havia visto antes. Estava um pouco desesperada em busca de uma luz.

Foi nesse momento que o Luís Urbano [produtor da O Som e Fúria] e a Karen [Castanho, produtora da Biônica Filmes] me apresentaram a possibilidade do Isac. Achei que fisicamente ele poderia representar algo entre pastor e coach. A persona dele era muito interessante e então conversei com ele a respeito do papel. Ele entendeu-o perfeitamente, desse pastor como alguém que realmente acredita naquilo que faz, para quem não há nada ridículo. Para ele, é uma tarefa muito séria, muito eficaz, e o faz pelo bem da Humanidade …

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Pedágio (2023)

Ele trata tudo como uma pseudociência …

Totalmente, para ele é uma ciência. Essa seriedade me fascinou junto com a persona dele, foi como se algo clicasse na minha mente, e por isso convidei o Isaac para fazer o filme. Mas não foi uma imposição de coprodução de forma alguma.

Algo que observei, tanto em "Carvão" como de forma mais pronunciada em “Pedágio”, é o facto de muitas personagens adotarem um discurso moralista em relação às outras, revelando-se moralmente hipócritas. Temos o exemplo da colega da Suelen [Aline Marta] e a sua relação com o adultério, isso também se aplica à questão da mãe e, possivelmente, ao próprio pastor. Não sei se isto é claro, mas há uma sugestão de que o pastor também seja gay.

Assim, gostaria de perguntar se há uma intenção deliberada de destacar essa hipocrisia moral nos seus filmes.

Sim, sem dúvida. Isso é um dos elementos que mais me interessa no tipo de cinema que faço e que desejo fazer, o de questionar essa hipocrisia inerente a todos nós, em diferentes graus. Considero isso uma característica humana fascinante. As ações que tomamos, as palavras que dizemos e os papeis sociais no qual somos obrigados a desempenhar, muitas vezes de forma violenta, são temas que também exploro em "Carvão".

A questão religiosa também é crucial, onde em nome de Deus, tudo parece ser permitido, inclusive as maiores violências. Tal cria um paradoxo profundo e irónico. Portanto, vejo um espaço rico para explorar a hipocrisia humana.

Lembro-me de uma ocasião especial durante a apresentação de "Pedágio" em Roma, que ilustra bem esse tema. Estávamos com um guia turístico pela cidade, e ela contava a história de uma ponte antiga em Roma, adornada com pequenos monumentos que representavam a cabeça de um papa da época, ou algo do género. Não sei exatamente qual era o papa, mas sei que as pessoas que estavam construindo a ponte se desentenderam. Então, para castigar aqueles que estavam brigando, o papa, que acreditava que as pessoas deveriam entender-se e não ceder ao conflito, mandou cortar a cabeça dos dois. Depois, contratou novas pessoas para continuar a construção da ponte.

Isso para mim é simbólico, diz tanto sobre a psique humana, sobre o poder de julgar, de ser o arauto, o bastião da sabedoria, podendo decidir sobre o bem e o mal, e ainda assim cometer atos de maldade. É tão inocente, de certa maneira. 

E quanto a novos projetos? Senti durante a nossa conversa o avanço de algo …

Estou a escrever um novo projeto, que também será uma coprodução portuguesa. Estou muito feliz com isso, pois adoro o Luís Urbano, que se tornou um grande parceiro, e sou apaixonada por Portugal. Adoro estar aqui!

Este novo projeto será uma história que aborda as ironias da vida, agora focada numa família rica de São Paulo. O enredo começa com a descoberta de uma filha ilegítima após a morte do patriarca, desencadeando uma série de eventos na família e na empresa desta. É uma história com humor ácido e drama, ou melhor, um verdadeiro drama com toques de humor ácido.

Estou a desenvolver este projeto e vou até ao Porto para o segundo módulo do Torino Script Lab, que estou a frequentar. Enfim, este é o meu próximo projeto. Espero ter o argumento concluído até ao final do ano e estou ‘super’ entusiasmada com isso.

Alice Rohrwacher debate sobre as suas 'quimeras': "o patriarcado é uma escolha histórica, não uma condição natural do ser humano"

Hugo Gomes, 06.06.24

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Alice Rohrwacher e Josh O'Connor durante a rodagem de "La Chimera" (2023)

A estreia de “La Chimera” no Indielisboa serviu de pretexto para a cineasta Alice Rohrwacher revisitar Lisboa, cidade na qual, tal como confidenciou após expor o seu português algo enferrujado mas mesmo assim surpreendentemente bem falado, havia vivido alguns anos e até aos dias de hoje detinha uma faustosa admiração. 

Nesta quarta longa-metragem, a solo deve-se salientar, a realizadora quis fazer um retrato sobre a Itália e a sua relação com o passado, e para isso, o desmonta num olhar estrangeiro, aqui sob o corpo de Arthur, interpretado pelo ascendente Josh O’Connor, maltrapilho e errante, homem de ligações tortuosas com os variados tempos do país. É através das suas apelidadas “quimeras”, transes ou pressentimentos na ordem do sobrenatural, que o protagonista assume-se como cão farejador de túmulos etruscos, descobertos, violados e de artefactos vendidos. Ele faz parte dos “tombarolis”, os saqueadores de túmulos, que sem se aperceberem despertarão vozes do além, maldições ou espíritos interrompidos do seu eterno descanso.

La Chimera”, tal como as obras anteriores de Rohrwacher, é um filme malabarista quanto ao passado, presente e futuro, onde cada peão neste jogo vivente encontra-se refém à sua ilusão, à sua época e à sua Itália.

Como surgiu a ideia para “La Chimera” (“A Quimera”)?

Eu não sei. [risos] Não tenho uma ideia concreta. Só sei que todas as ideias vêm de longe, são como músicas que estão na cabeça, que andam comigo. Na verdade, o que aconteceu é que cresci numa região onde, nos anos 80 e 90, houve a “febre” pela busca de tesouros. Foi um fenómeno social proeminente na altura, mais ou menos como agora em Lisboa, com a compra de casas no bairro de Alfama. [risos]

Acho que isso tem muito a ver com a ideia de vender e comprar coisas que têm uma aura. Nos anos 80, com o mundo materialista, os ricos, que tinham poder de aquisição, queriam comprar a alma. E foi a primeira vez que a alma estava no mercado, e de certa forma, também o passado, algo que tem uma força própria. Estava a comparar, mas acredito mesmo que é o mesmo desejo que se tem agora de comprar uma casa na Alfama, na velha Lisboa, porque é a sensação de comprar não só um imóvel, como também de comprar uma história. Então, quando há uma demanda, há uma oferta, e esta era dada pelos tombarolis.

Os tombarolis começaram a buscar objetos antigos para vender porque havia uma procura por eles, uma necessidade, um mercado. O que eu queria fazer era explorar essa ideia, fazer um filme que não os retratasse como vilões, nem herois, mas como parte do mercado. E nesse mercado, eles eram a engrenagem do mecanismo. Mesmo que se considerem predadores da “arte perdida”, na verdade, eram como hamsters às voltas na sua roda. São os pobres tombarolis! Para mim, era importante contar isso.

Os tombarolis são apenas uma maneira evidente de vender algo sagrado vindo do passado que já não consideramos mais sagrado. Todas as vezes que tentamos fazer isso, somos totalmente tombarolis.

Vou usar essa ideia do sagrado ... Esta demanda dos tombaroli é figuradamente um retrato da Itália atual, onde nada é mais sagrado. Mesmo o passado, o qual estamos praticamente a violar sepulturas para resgatar esses itens e vendê-los sob a forma de outras ideias …

O filme decorre nos anos 80, e talvez seja muito impactante vir a Lisboa agora, porque esse processo está um pouco mais atrasado aqui. Mas, na Itália, isso já aconteceu. Conheço essa transformação, esse processo. Acho que já somos filhos desse processo. A alma já foi consumida pelo comércio e agora, como uma flor, acredito que o invisível vai-se aflorando, que vai regressar.

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La Chimera (2023)

Só que, neste momento, a Itália, a nível político, está a atravessar um genocídio cultural total que começou com Berlusconi e agora estamos a colher os seus efeitos. Mas, o que temos que fazer é acreditar na Humanidade, na inteligência das pessoas, e talvez... esperemos que sim! Este é o ponto principal, porque se pensarmos sempre no mal, acabará por atrair o mal. Devo pensar de forma positiva, acreditar que, embora às vezes me digam, ao apresentar um projeto, que "este filme não tem público", deva opor de que haja “um público que não tem filme”.

Neste filme, também como nos outros dois anteriores - "Le meraviglie" (“As Maravilhas”) e "Lazzaro Felice" (“Feliz como Lázaro”) - há quase uma mistura temporal entre o passado, o presente e o futuro, envolvidos numa certa ilusão. Por exemplo, em "Lazzaro Felice", há uma personagem, a marquesa [interpretada por Nicoletta Braschi], que vivia num passado forçosamente estagnado, no seu latifúndio, e usava tudo à sua volta para sustentar essa ilusão, com medo de confrontar uma realidade corrente que verdadeiramente não corresponde.

Sim. Como a conversa entre Flora [personagem de Isabella Rossellini] e a arte, que permanece na ilusão. Os filmes são muito conectados, embora muito diferentes, mas são, de qualquer forma, partes da mesma tapeçaria.

Há uma conexão profunda: o que fazemos com o nosso passado? Podemos destruí-lo, como fazem os tombarollis, ou podemos gelificar o passado, congelá-lo, como faz também Flora, que deseja que o passado não seja passado, porque quer pensar na sua filha amada como ainda estivesse viva.

Também existe uma outra perspectiva, que é a da Itália [personagem de Carol Duarte]. O passado como algo que pode ser reabilitado, transformado, as ‘coisas’ abandonadas - como a estação que aparece no filme - podem converter numa outra ‘coisa’, uma casa, por exemplo. Ainda é possível imaginar outras soluções que não sejam nem a destruição, nem o bloqueio... e nem a santificação do passado.

Acho muito curioso que tenha escolhido dois atores que não são italianos, o Josh O'Connor, que é britânico, e a Carol Duarte, que é brasileira. Porquê esta opção? Ouvi dizer que quando descobriu o Josh O'Connor, reescreveu o personagem especialmente para ele.

Reescrevi o personagem porque, inicialmente, ele era muito mais velho, porque é uma personagem em que tudo nele é sem esperança, e normalmente associamos a juventude à esperança. Quando encontrei o Josh compreendi que é um ator sem idade, e que Arthur funcionaria como alguém jovem e mesmo assim, mantendo nada esperançoso. É uma pessoa incrível, com o qual queria muito trabalhar, agora, já não consigo imaginar o filme sem ele.

Quanto à Carol Duarte, a personagem não precisava ser estrangeira, mas o problema é que a única pessoa no mundo que poderia fazer esse papel é a Carol. Confesso que não queria uma brasileira, mas ela, com a sua própria identidade e nacionalidade, tornou-se perfeita. Procurei italianos, franceses, enfim, de todas as nacionalidades, essa era uma questão que não me importava, porque Itália é como uma uma clochard do cosmo. Pode vir da lua, não importa. Podia vir do meu país ou de outro, não importa. Foi com a Carol que deparei-me com essa feminilidade de clochard do cosmo que procurava. 

Quando encontrei-me com ela via Skype, foi amor à primeira vista. De repente, soube que só ela poderia fazer a personagem, e julgo que compreendi isso antes dela. É uma personagem muito difícil de compreender, porque, inicialmente, é quase como uma aranha, depois vira flor. Tem uma transformação muito forte e, sobretudo, é uma pessoa icónica. Mas quando se lê no papel, uma mãe de dois filhos o qual esconde os filhos e que não tem tecto, morando provisoriamente … e meio clandestinamente na casa de uma senhora e age como se precisasse de lições de canto, soa trágico. No princípio, ela imaginou uma pessoa trágica e não, essa personagem é cómica. Então, fomos descobrindo essa personagem e chamamos a Itália de nossa filha.

Voltando à decisão de Josh O’Connor, o facto de ser estrangeiro serviria para que o prisma sobre esta Itália fosse de fora, a de um estrangeiro?

Estipulei que o Arthur teria que ser estrangeiro. Porque foram os estrangeiros, no princípio, tanto para o bem quanto para o mal - mas sobretudo para o bem - aqueles que mudaram o olhar dos italianos sobre a sua própria História e das suas ruínas. Todo o processo arqueológico, por exemplo, na Itália como na Grécia, começou por via da chegada de muitos estrangeiros que olhavam com uma perspectiva diferente a estes países e à sua arqueologia. Eles viam algo que as pessoas sempre tinham diante dos olhos, mas que não davam importância. Então, o estrangeiro é fundamental na descoberta dos nossos tesouros.

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La Chimera (2023)

E acho que isso continua até hoje. Quem somos sem estrangeiros? Nada, apenas pessoas sentadas sobre um tesouro, olhando sem realmente ver. Naturalmente, os tombarolis aproveitaram essa mudança de olhar sobre a própria História, mas os estrangeiros foram importantes na história arqueológica da Itália, trazendo uma perspectiva positiva. Foram eles que iniciaram o desejo de descobrir o passado. Como tal queria prestar uma homenagem a todos esses jovens de Inglaterra, da Alemanha, do Grand Tour, que entretanto chegavam à Itália. Queria que a personagem fosse oriunda do Norte da Europa, para representar isso.

A sua figura tem algo de cómico também, quase digno de slapstick, é esguio, de pernas longas, de andar desajeitado, parece quase Buster Keaton ou um Jacques Tati equivocado ...

Sim, também é uma pessoa muito trágica, porque está fechada no seu sofrimento, mas tem uma pequena evolução de demonstrar um lado cómico do heroi trágico.

O que separa o trágico e o cómico é a perspetiva?

Sim, a questão de perspectiva está presente em todos os meus filmes.

Quanto aos etruscos: elemento que se revelou muito presente na sua obra. Já "As Maravilhas" tínhamos a personagem do pai que referia quando podia o espírito dos etruscos. E em “A Quimera” esse povo, apesar de serem “arqueologicamente violados”, são mencionados como uma alternativa histórica de Itália. Há uma sequência em que uma personagem quebra a quarta parede para provocar o espectador, afirmando que se os etruscos estivessem mais tempo em Itália do que os romanos, seriam uma sociedade diferente, uma sociedade não-patriarcal.

Então, em "As Maravilhas", contei como as pessoas, nos anos 90, começaram a vender a ideia dos etruscos, até o “ar” deles vendiam … uma ideia bizarra. Isso ainda não aconteceu em Portugal, de momento ainda vendem casas, mas quem sabe, pode ser que daqui uns tempos façam perfumes - "ar de Alfama" - e vendem desalmadamente.

Em "As Maravilhas", falo sobre quando, depois de vender os objetos, só restava vender a ideia. Mas "A Quimera" é sobre os objetos, é anterior. É o momento em que se descobrem os artefactos, e de que o mundo é materialista, não comercial a ideias. Não sei se os etruscos eram matriarcais. Não sou arqueóloga. É claro que uma das ideias sobre os etruscos é sobre uma sociedade, pelo menos segundo o que nos contam os romanos, onde na aristocracia, homens e mulheres estavam no mesmo nível. Mas não sabemos a realidade. Só podemos saber através do que os romanos escreveram: "Incrível, vamos ao jantar na casa dos etruscos e as mulheres estão lá falando como pessoas normais." Eles estavam muito assustados com essa normalidade, com as mulheres sentadas à mesa com os homens a falar sobre os seus domínios, não como prostitutas, mas como senhoras. Para os romanos, isso era um pouco desestabilizador.

Mas o que pretendia com essa ideia era lembrar que o patriarcado, por exemplo, é uma escolha histórica, não uma condição natural do ser humano. Houve um momento em que escolhemos esse percurso, essa direção, e isso é um facto.

Gostaria que me falasse sobre a contribuição de Pietro Marcello [realizador de “Martin Eden”] em “La Chimera”?

O Pietro Marcello escreveu o sujeito comigo, no sentido que fizemos a pesquisa juntos, entrevistando tombarolis, porque ele também vem de uma região, Caserta, perto de Nápoles, onde havia um grande mercado de objetos arqueológicos. Não eram etruscos, mas de outras populações. Depois, decidimos que seria muito complicado abordar várias regiões, porque de manhã é Grécia, amanhã na Itália e por aí fora ... Cada região tem o seu passado para vender. Para mim, era mais fácil concentrar-me na minha região, no passado da minha região e também nessa população que admiro muito. E quanto ao Pietro, somos muito amigos.

E trabalharam juntos no documentário “Futura” (2021).

Sim, trabalhamos juntos e sempre discutindo. Acho que, para mim, é muito importante colaborar, não só com o Pietro, mas também com Jonas Carpignano, Francesco Munzi, e toda uma nova geração de realizadores. Talvez porque o cinema está mais frágil, e a luta não é entre nós.

Precisamos estar unidos, porque a batalha é para salvar as salas de cinema. Talvez uma geração mais velha tenha experimentado um cinema mais forte, com mais contrastes entre autores. Agora, pelo menos na Itália, sinto-me muito próxima de outros cineastas, e não só na Itália, como também do Miguel Gomes aqui em Portugal. Sinto-me muito feliz em partilhar ideias, em colaborar, se possível. De facto, quis incluir o Pietro no argumento, porque começámos a pesquisar juntos.

Acho que é muito importante para as pessoas verem que os realizadores podem colaborar uns com os outros. Antigamente, Fellini trabalhou com Rossellini, e eles trabalhavam juntos. O argumento de "Le notti di Cabiria" foi escrito pelo Pasolini... Eles estavam todos muito conectados e se ajudavam mutuamente. Às vezes, escreviam guiões sem saber quem seria o realizador. Achavam: "Você vai fazer ou faço eu." E depois, passou um tempo na Itália onde tudo era muito "este é o meu, este é o meu", com grandes contrastes.

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Isabella Rossellini em "La Chimera" (2023)

Foi bom referir-se a uma nova vaga italiana, que apesar da frescura artística e um proeminente olhar para o futuro, possuem evidentes  traços com o passado cinematográfico italiano. Não querendo impor influências, mas consigo identificar o realismo mágico e folclórico do Ermanno Olmi no seu cinema. 

Ah, sim!

Julgo que tem uma grande admiração pelo Olmi, certo?

Sim, sim, tenho muita admiração por Olmi, como também pelo Rossellini

Faz uma vénia indireta em trabalhar com Isabella Rossellini … [risos]

O cinema de poesias, neste momento dá-nos maior  liberdade política que o cinema de narração, o de prosa.

Digo isto porque sinto que houve uma ruptura no cinema italiano em termos geracionais. Recordo há uns anos de uma polémica trazida por Gabriele Muccino, que a culpa dessa quebra de legado foi de Pasolini, que houve a quebra da cultura e um “culto ao autor”. Mas sinto que na vossa geração há esse vínculo com o passado, trazer uma herança para a frente.

A herança não é só fazer o seu filme, mas o método de fazer o filme também.

Aproveitando a deixa, tem novos projetos?

Eu queria muito, mas estamos numa altura um pouco trágica na Itália. O que é difícil avançar com qualquer ‘coisa’ em Cinema. O certo, é que trabalhei cinco anos numa antologia de fábulas. 

Algo à semelhança de Boccaccio ou até do “Il racconto dei racconti” [da autoria de Giambattista Basile], que fora adaptado por Matteo Garrone?

Não, nada de mundo fantástico, mais próximo ao real. 

Sabes que o Ítalo Calvino fez uma recolha regional de todos os contos de fadas italianos? São contos populares das diversas regiões italianas, também fez um trabalho bibliográfico, e atrás dele está o trabalho que fizemos.

Queria muito uma antologia de contos de fadas, também para crianças, para o público de amanhã, porque é importante saber o que vão consumir os nossos filhos. Não só o que a nossa geração consome, mas também a geração do futuro. Mas agora não sei se será o meu próximo projeto, porque produzir isso não está fácil. Veremos.

Como vê a indústria italiana nos dias de hoje?

Nós trabalhamos muito com dinheiro público, e isso, para mim, é algo muito bonito. Desde o começo, desde o meu primeiro filme, quando soube que havia dinheiro público para trabalhar, pensei na grande oportunidade e na responsabilidade de restituir algo à coletividade. Agora, o governo cortou a maioria dos apoios públicos.

É possível trabalhar com dinheiro privado, mas isso traz um problema ético, porque o setor privado precisa vender algo.

É um pouco como o último filme de Nanni Moretti, no momento em que ele tenta vender o filme à Netflix e eles exigem um “momento WTF”.

Depois, naturalmente, sei que sempre trabalho com produtores independentes que protegem o meu trabalho. Mesmo quando fiz "Le Pupille" (2022) com a Disney, tive muita liberdade; ninguém me disse o que tinha de fazer. Então, é possível trabalhar com grandes companhias privadas e ainda assim ser-se livre.

Mas, ao mesmo tempo, gosto da ideia de trabalhar com o Estado, com o Ministério da Cultura, de ter interesse cultural no que fazemos, e não apenas como uma imagem para vender ‘coisas’, ser-se antes um projeto cultural. 

Neste momento, o projeto cultural da Itália está um pouco encalhado.

Falando com Rui Simões: "Qualquer realizador é político"

Hugo Gomes, 22.05.24

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Rui Simões

Falou-se numa maldição, um tormento trazido pelo filme “Bom Povo Português” (1980), um documentário sobre as promessas da Revolução com um grau de decepção ao PREC, que colocou Rui Simões de “castigo” nessa questão de subsídios e apoios à realização por mais de 20 anos. Tal “punição” é reavivada através da estreia de “Primeira Obra” (2023), a primeira e única longa-metragem de ficção concretizada pelo realizador de 80 anos, que depositou neste filme-cosmos as suas dores, pensamentos e reflexões acerca de um mundo que está a ultrapassar. O próprio assume durante a nossa conversa que decorreu nos escritórios da sua produtora Real Ficção, em Lisboa, ainda antes das comemorações dos 50 do 25 de Abril, data essa que estreará não só esta sua nova obra, com a enganadora enumeração no título, como também traria de volta às salas o seu “Bom Povo Português”, o tal filme-carrasco, mas que mesmo o seu orgulho cinematográfico. 

Nesta conversa com o Cinematograficamente Falando …, falamos abertamente do novo como do velho, da ficção como do documental, dos arquivos e das cerejas, de Revoluções a Cavernas de Platão. Rui Simões abriu as portas do seu mundo, sentamos e ouvimos.

Começo esta conversa com a questão sobre a génese de “Primeira Obra”. Como surgiu a ideia para este projeto?

Não sei se me lembro exatamente como surgiu a ideia, mas surgiu em reação ao facto de nunca ter sido aprovado em projetos de ficção no Instituto de Cinema, seja no ICA, no IPC, ou no ICAM. Em 40 anos de candidaturas que fiz sucessivamente todos os anos, chegando a fazer até duas por ano, o facto de nunca ter conseguido obter apoio levou-me, ao fim destes anos todos, a um sentimento de desânimo. Ao chegarmos a este período de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, pensei: “estou farto disto!”. Então, decidi escrever uma história relacionada comigo, porque, no fundo, já não tenho mais nada para contar, nem vale a pena tentar. Impediram-me de contar todas as histórias que queria realmente contar. Portanto, vou avançar um pouco da minha própria história. Nunca quis fazer um filme autobiográfico, sempre gostei de contar histórias sobre outros, mas sobre mim nunca pensei tal ‘coisa’. Nem memórias, nem nada do género. Mas, ao seguir por esse caminho, juntamente com a pessoa com quem trabalho regularmente na escrita, optámos por essa direção e com isso analisamos um pouco o meu percurso, os meus filmes, e o meu passado.

Escrevemos uma história inspirada num facto real: há uns anos, um jovem estudante de cinema na Sorbonne, descendente de portugueses, pediu-me para consultar os meus dossiês, os meus papéis, falar comigo, em suma, preparar o seu doutoramento em cinema. Achei interessante, pois já tinham sido feitos vários estudos sobre o meu trabalho, mas nenhum com essa perspetiva. Ele veio, instalou-se aqui, esteve durante muito tempo, depois foi embora, mas voltou. 

A partir desta história, inventámos outra, baseada na relação de um jovem [Zé Bernardino] que procura um velho cineasta da Revolução [António Fonseca], porque está interessado no cinema militante, comprometido, de causas. Esta é a sua especialidade, e é sobre isso que quer fazer o seu doutoramento, pelo que vem ter comigo para obter material para trabalhar e estudar. Ele escreveu uns textos que foram publicados, de que gostei bastante, e acabámos por construir esta história a partir da sua chegada a Portugal, onde procura o velho realizador que já não mora em Lisboa. E depois, numa sucessão de circunstâncias que misturam a realidade que vivemos hoje em Portugal, o meu próprio passado e a minha história, o jovem desvia-se enquanto faz este trabalho, apaixona-se por uma jovem de origem africana [Ulé Baldé], uma ativista ambiental que lhe mostra e faz descobrir o Rio Tejo, onde, de certa maneira, me refugiei após sair de Lisboa devido às situações difíceis, como o caso da ordem de despejo na produtora, as rendas muito altas, enfim, toda esta situação contribui para a construção de uma história.

O filme é a minha primeira obra autobiográfica. Ainda é estranho para mim, ainda não consigo assimilar bem o que fiz, mas está feito, e agora é seguir em frente.

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Primeira Obra (2023)

Vamos fazer algumas curvas e contracurvas até regressarmos novamente ao filme propriamente dito. Uma coisa curiosa nos créditos finais é que se encontra expresso que o argumento é da autoria de Sabrina D. Marques - realizadora de "Os Fotocines" (2021), filme que você produziu - com a ideia de Rui Simões e algum improviso. Poderia explicar-me isso?

É uma ideia minha, como normalmente são os trabalhos que faço com a Sabrina. A ideia é minha e depois passo para ela a tarefa de escrever o que quero. E ela faz isso muito bem. Gosto muito do trabalho dela, entendemo-nos muito bem, não é o primeiro filme que escrevemos juntos. Estamos a trabalhar num novo projeto que ela está a escrever neste momento, também baseado numa ideia minha. Assim como foi com o "No País da Alice" (2021), ideia da minha autoria que ela desenvolveu. No fundo, a Sabrina tem uma capacidade que eu não tenho, que é a de dialogar com os outros que leem. E essa capacidade é talvez a solução para o meu problema. Ela é como a minha médica de família. Consegue salvar-me da minha dificuldade em comunicar com quem analisa os projetos.

Nunca fiz um filme, seja documentário ou ficção, que não tivesse alguma forma de improviso. Embora numa longa-metragem tenhamos uma equipa muito grande, um plano de trabalho rigoroso e custos elevados, para mim fazer cinema não é propriamente seguir regras estipuladas. O improviso é fundamental, tanto na construção do filme como no trabalho com os atores. Todos os atores sabiam que tinham um guião, diálogos e uma história, mas aceitava e encorajava o improviso. Eles podiam transformar o que estava escrito com base nas suas próprias interpretações e experiências. Fiz isso com o Zé Mário Branco e com outros projetos também. Dou sempre espaço aos outros para contribuir com as suas ideias, desde que não sejam completamente contrárias ao espírito do projeto.

Os atores prepararam-se, estudaram o argumento, falaram comigo e até fizemos uma pequena residência na casa do Ribatejo, onde parte do filme seria rodado. A partir daí, o improviso era total. Eles não tinham obrigatoriamente de seguir os diálogos à letra. Podiam respeitá-los ou não, desde que capturassem a essência de cada cena. Algumas vezes, seguiam o texto, outras vezes usavam-no como inspiração para adicionar algo pessoal, e outras vezes, eu próprio sugeria alterações. O improviso foi uma constante durante todo o processo, até ao fim. E mesmo agora, ainda estamos a improvisar porque nunca estou totalmente satisfeito, estou sempre à procura de algo mais.

Já existe o cognome da "maldição do Bom Povo Português". Inclusive, na entrevista que deu à Esquerda.net, você expressou um desejo de não falar muito sobre isso. No entanto, durante a antestreia na Cinemateca, na primeira fila da sala Félix Ribeiro, onde estava sentado, encontrava-se ao meu lado, nada mais nada menos, que Fernando Matos Silva, um realizador contemporâneo seu que, durante muito tempo, também esteve, de certa forma, esquecido e a quem a Cinemateca dedicou um ciclo integral em janeiro deste ano, que esperamos que seja finalmente revisto. Tendo em conta este filme, a sua “Primeira Obra”, faço esta pergunta, um pouco direta: deseja, de certa forma, ser resgatado do esquecimento, se é que existe esse lado de esquecimento?

Eu acho que me fizeram um favor, porque sou muito positivo, normalmente, em tudo e na vida. Já passei por muitas coisas e, se não tivesse este espírito tão positivo, teria-me dado mal na vida. O que eu acho é o seguinte: o que me aconteceu é evidente que não foi bom. Mas também vejo isso como um prémio, um grande prémio. Como é possível alguém castigar-me desta maneira pelo mal que fiz, que foi fazer os meus filmes? Para mim, é uma medalha. Porque quiseram eliminar-me por receio daquilo que poderia vir a fazer. Portanto, para mim, é um prémio enorme. E é assim que compenso, porque, se não compensar assim, vou sofrer muito mais. E eu não quero, porque tenho a certeza que o trabalho que fiz foi honesto, exprimi aquilo que pensava, olhei para o que aconteceu em Portugal com o máximo de transparência e independência dentro do quadro que estávamos a viver, com as minhas opções também muito claras, sem as esconder. E tendo o poder tanto receio de me deixar continuar a pensar sobre o meu país, vejo isso como uma medalha muito grande, que me diz que, “quando fores velho, serás compensado por esta tua grande virtude, que foi resistires a todo o mal que te fizemos”.

Por isso, de certa maneira, acho que sou um cineasta feliz. A verdade é essa. Apesar de ter passado muitos momentos infelizes, devido ao facto de não ter trabalho e ter vivido de uma maneira muito dura todos estes anos. É evidente que isso paga-se com o corpo, com a família, com os filhos. Enfim, é uma vida de facto difícil economicamente, difícil sobreviver dessa maneira. Mas, em termos criativos, em termos profissionais, em termos de realizador, não. E aquilo que não consegui fazer como realizador na ficção, acho que consegui fazer como documentarista. E, além disso, consegui ser produtor, o que é um sucesso. A Real Ficção é uma produtora que se tem mantido ao longo de quase 40 anos de vida. Não é uma produtora gigante, mas é uma produtora que tem uma linha coerente e que vai fazendo aquilo que acha que deve ser feito. E, nesse aspecto, não nos podemos queixar, porque a produtora tem bastante mais sucesso, talvez, do que eu em termos de funcionamento. Damos oportunidade a muitos jovens, que é algo que gosto também. Temos a nossa linha de trabalhar com os países de língua portuguesa e desenvolver as relações com esses países.

Extraindo do seu personagem alter-ego em “Primeira Obra”, considera-se um cineasta da Revolução? 

Sim.

still22028129-1.jpgPrimeira Obra (2023)

No filme, o jovem “pupilo” em conversa com o cineasta “mestre”, este último afirma afirma que todo o cinema é político, inclusive as grandes produções. O entretenimento é também uma política ao serviço da produção.

Claro, tudo é político. Qualquer gesto, qualquer ação que envolva financiamentos, concessões, contrapartidas, responsabilidades, atitudes, expressões artísticas, tudo isso é político. Qualquer realizador é político. Não considero que os realizadores sejam ignorantes. Considero que sabem exatamente o que estão a fazer. Uns optam por fazer apenas entretenimento porque é isso que gostam e que os satisfaz. Outros escolhem temas mais preocupados com a sociedade, outros ainda se dedicam à vida animal e à ecologia. Enfim, acho que tudo é sempre político. Mesmo quando algo não parece político, é político. É como quem não vota: ao não votar, também está a fazer uma escolha política.

Como em “American Pastoral” do Philip Roth: “tudo é político, até lavar os dentes é político.

Exatamente, depende de que escova se usa, com que produto se lava e de que maneira se faz a limpeza. E ainda resta saber se tem dentes ou não. [risos]

Aproveitando isso, como o relançamento de "Bom Povo Português" no dia 25 de abril, que carga simbólica espera trazer nesses 50 anos de comemoração?

Quer dizer, a minha decisão de revisitar o "Bom Povo Português" e reprogramá-lo para o dia 25 de abril foi planeada e pensada, assim como igualmente a “Primeira Obra” no 25 de Abril. Embora o filme esteja pronto há um ano, pois teve uma apresentação pública numa sessão especial no IndieLisboa. Na verdade, para mim, aquele filme comemora os meus 80 anos. Foi filmado antes de os ter, mas já tem 80 velas na ficção, embora, na realidade, ainda não os tivesse completado. Mas é um filme de ficção, e gosto destes cruzamentos entre a realidade e a ficção. Gostava que este filme estreasse quando já tivesse 80 anos e estivesse a comemorar, tal como comemorei na Cinemateca, com a antestreia. Portanto, tudo isso faz parte do meu pacote: 25 de abril, 50 anos de carreira e 80 de vida. E a partir daqui, mesmo que não faça mais nada, já posso me dar por satisfeito. Mas, claro, não estou satisfeito. [risos]

Noto no “Bom Povo Português” um lado de decepção com o caminho da Revolução.

Sim, é o oposto de “Deus, Pátria, Autoridade” (1976), que é um filme que ainda tenta integrar-se, ser útil ou contribuir para que a Revolução vá mais longe. As revoluções são períodos momentâneos, nunca duram muito tempo. As revoluções duram o tempo que cada povo é capaz de fazer rodar a esfera, mas ela para em dado momento e começa outra rotação. Mas a rotação da revolução, eu já sabia que tinha um prazo. Não sabia qual, não conseguia prever, mas a minha distância, por viver na Bélgica e estar exilado lá há muitos anos, permitia-me olhar para este país com grande distanciamento. Quando voltei, achei tudo fantástico, mas não acreditei completamente. Nunca acreditei. Só que não podia partir desse ponto de vista; tinha que partir do ponto de vista de que ia contribuir para que as coisas acontecessem.

Por isso, "Deus, Pátria, Autoridade" é um filme muito militante, muito didático. Eu até lhe chamo primário, de certa maneira, mas é um filme...

… muito otimista também.

Sim. É um filme que ainda vai a tempo, porque ainda cria situações muito fortes de ruptura. Lembro-me das greves que foram feitas para que "Deus, Pátria e Autoridade" passasse na televisão. Por exemplo, a Sorefame [Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas] e a Lisnave pararam simbolicamente de trabalhar para pressionar a exibição do filme. No entanto, não conseguiram, porque o Governo não autorizou. Apelaram ao Presidente da República, que na altura também achou que não devia ser exibido, e a RTP também não autorizou. Mas o facto de não terem conseguido não significa que não tenham lutado. O filme continuou em movimento.

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Bom Povo Português (1980) / Foto.: Memoriale Cinema Português

Posso afirmar que "Deus, Pátria e Autoridade" é o meu maior sucesso enquanto realizador. Embora "Bom Povo Português" seja o meu filme mais importante, "Deus, Pátria e Autoridade" foi o mais bem-sucedido. Foi visto em todo o país, em todo o lado, até em pequenas aldeias, projetado nos muros das igrejas, nas paredes das igrejas, e sei lá onde mais. Havia imensas cópias a circular. Beneficiei dos circuitos militantes da altura, que se aproveitaram para mostrar o filme e fazer o seu trabalho militante, fosse qual fosse o partido.

O filme situa-se numa espécie de fronteira e não rompe com nenhum partido político de esquerda. Todos os partidos marxistas estavam, de certa maneira, a coabitar com o que está em "Deus, Pátria e Autoridade". Até o Partido Socialista não se opunha, era tolerante. Talvez, por esse motivo, o filme perca em termos criativos, mas ganha em termos militantes. E essa era a minha intenção. Queria perder o lado de autor para ganhar no lado militante e ativista, e ainda conseguir contribuir para que a Revolução fosse mais lógica. Acho que "Deus, Pátria e Autoridade" foi muito útil, apesar de só ter estreado em 1975, quando a Revolução, aparentemente, já tinha terminado. Mas não é verdade, ela continuou até definhar, até as pessoas se marginalizarem e realizarem que estavam numa nova era.

"Deus, Pátria e Autoridade" tem essa forma, enquanto o "Bom Povo Português" é diferente. Foram feitos ao mesmo tempo, mas cada um com um propósito distinto. O propósito de "Bom Povo Português" não surgiu logo de imediato, mas, perante o que estava a sentir e a realidade que estava a filmar, achei que havia uma ideia na cabeça das pessoas, na nossa cabeça. A prova é o 1º de Maio de 1974, com aquela massa humana de milhões de pessoas.

Bem representada em “As Armas e o Povo” (1975) … 

Exatamente, está bem explícito nesse documentário a unidade e união das pessoas que se libertaram do fascismo e dessa prisão totalitária, e que estavam todos juntos com uma ideia em mente. O que eu quis fazer foi mostrar que havia uma ideia na cabeça dos portugueses, especialmente nas correntes mais politizadas e nas pessoas mais conscientes da política. Queria mostrar que essa ideia começou a crescer, crescer, crescer, e depois, em dado momento, morreu. Para mim, em determinado momento, consegui sintetizar e dizer: isto é o nascimento, crescimento e morte de uma ideia.

Demorou tempo até chegar lá. Comecei o filme de uma maneira caótica, como mostro na “Primeira Obra”. A primeira sequência que montei chamava-se "Caos", porque eu não sabia como pegar no filme, não sabia o que ia agarrar. Portanto, tive que construir uma história de ficção, no fundo. Estes filmes documentários, quando se fala que o “Rui Simões não pode fazer ficção porque é documentarista”, não faz sentido. Eu não fiz documentários, fiz 30 ficções com aspectos documentais, porque ninguém sabe se a revolução é do "Bom Povo Português" ou de outra coisa qualquer.

Esta é que ficou, mas ninguém pode dizer que construiu, em cinema, a História da Revolução ao vivo. Tudo o que há são fragmentos. "1º de Maio" é um fragmento de um dia. O filme é um fragmento desse dia. Outros filmes são fragmentos de lutas, seja nas fábricas, seja nas ruas, seja onde for …

… “Torre Bela” (1977)?

Torre Bela” é um fragmento, é uma ocupação muito específica. O filme é construído e montado desde o princípio até o fim pelas pessoas que estavam lá a filmar, a organizar, pela minha equipa. Não é uma equipe que vem 50 anos depois de fazer um filme sobre o 25 de Abril. Não é isso. Quando vejo esses filmes, vejo-me porque me acho ridículo em tudo isso, o que nos leva a ter cuidado com o que se faz.

Por isso, para mim, não me custa nada ser considerado o cineasta da Revolução. Assumo isso perfeitamente. Paguei o preço, é verdade, porque acho que isso tem um preço, mas também esse preço me permite dizer exatamente isso. Sim, fui um cineasta da Revolução!

Há ironia no título “Bom Povo Português”?

Sim, exatamente. O título "Bom Povo Português" é irónico e encerra em si muitos significados. António de Spínola utilizou-o de uma maneira específica, e eu utilizo-o de outra. Busquei essa frase de Spínola num discurso que ele fez no Alentejo, onde, de certa forma, tentava comunicar com o povo, chamando-o de "bom". Mas é evidente que o que ele estava tentando fazer era mobilizar as pessoas para a sua causa. Portanto, quando eles chamam o povo de "bom", as coisas ficam caricatas na boca deles, inclusive. E ao pegar nesse título, há toda a ironia que se pode imaginar, mesmo sem ver o filme. 

E faz um paralelismo com a Caverna de Platão nesse seu filme …

Para que o “bom povo português” possa deixar de ser o “bom povo português” e se tornar apenas o povo português, ele precisa justamente de ser iluminado por essa luz que é o conhecimento, o saber, de forma ser capaz de evoluir. Com isso sair do fundo da caverna da escuridão e, ao chegar cá acima, não ficar encadeado e evoluir. É todo um jogo que não sou capaz de explicar como me surgiu. Os filmes constroem-se de uma maneira muito complexa e muitas vezes não sabemos por que é que vamos buscar este ou aquele elemento. Não sei se na altura, por alguma razão, estava a ler Platão; penso que não. Não sou propriamente apaixonado por Platão nem um estudioso, mas talvez tenha pensado naquilo ao lado do mito, por alguma razão, por alguma dúvida, por alguma coisa que tinha ali uma solução para poder explorar ou procurar essa solução.

Os mitos também servem para alguma coisa, porque fazem parte da nossa cultura. E este mito é muito forte, e Platão é um filósofo muito forte, com a sua maneira de pensar e de exprimir o seu pensamento. E isto partia da ideia também de que achava que o povo português era pouco... Não é cego, mas que não conseguia ver além de uma certa situação. Portanto, aquela representação do cego também ajudava a transmitir o mito da caverna e a dar esta ideia de que era preciso ir mais longe para poder ter mais cultura, mais informação, mais educação, mais saber, para poder fazer uma revolução mais completa e não ser enganado, que é o que acontece nestas revoluções. Estas revoluções, no fundo, param porque o povo está cansado daquele modo de vida; é cansativo estar sempre em revolução. O povo também tem direito a descansar um pouco e a olhar para a televisão. E por isso, se calhar, aquela ideia surgiu-me para dar certo impulso às pessoas, para que estas possam fazer um esforço e entender na plenitude da sua realidade. Penso que é isso.

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Deus, Pátria, Autoridade (1976)

50 Anos depois: saímos da caverna, ou continuamos nela?

Estamos menos na caverna, isso é um facto. Acho que houve uma evolução muito grande. Os jovens têm hoje em dia uma preparação muito maior do que nós tínhamos na altura; vejo isso pelos meus filhos mais novos, estão muito bem preparados para enfrentarem uma sociedade que é muito mais difícil do que era no passado. Neste momento, é muito mais complicado, tudo é mais complexo, e por isso também estão mais bem preparados, porque precisam de estar para enfrentar estes tempos presentes e os que estão por vir no futuro. De certa maneira, tenho a opinião de que nunca iremos sair totalmente dela, porque haverá sempre este contrapeso. Temos mais formação, sabemos mais, estamos melhor, evoluímos, já não há tantos analfabetos, já não há tantas crianças a morrer, já não há fome, enfim, já não há uma série de coisas nefastas do antigo regime. Mas surgiram novos desafios, por isso acredito que isso nunca terá fim. É tudo relativo. Estamos num estado, os suecos estão noutro, eles construíram a sua própria versão do "bom povo", não será da mesma maneira, nem com os mesmos tipos de atores e personagens.

Se eu tivesse que fazer agora o "Bom Povo Português", não iria buscar as velhinhas do Norte, todas vestidas de preto. Seria outra coisa qualquer. Na verdade, não quero pensar nisso, não quero fazer nada agora.

Na ante-estreia do seu filme na Cinemateca, como também a sua apresentação no IndieLisboa, mencionou, e reforçou aqui nesta entrevista, que não gosta particularmente deste filme [“Primeira Obra”].

Estou proibido de dizer isso [risos]. A minha equipa, os meus amigos, a minha família, todos os meus filhos acham disparatado eu dizer isto. Não é que “não goste” seja a palavra certa. Simplesmente, não estou contente com o que fiz, mas também não sei fazer de outra maneira. Por outro lado, quando vejo, parece-me bem, mas depois fico na dúvida. Nunca antes tinha tido tantas dúvidas em relação a um filme. Por isso, não consigo falar muito sobre ele, porque há pessoas que me dizem coisas como "é o melhor filme da tua vida", outras que não me dizem nada, percebo logo que não gostaram. Sei perfeitamente que outros acham que é um pouco longo, entre outras críticas. E é assim que os filmes são. Acredito que vou enfrentar uma avalanche de críticas, mas não me preocupa. Aliás, a crítica já há muito tempo que nem sequer escreve nada sobre os meus filmes, ou muito pouco, ou são poucos os críticos que ainda me acompanham.

Não estou preocupado com isso. Preocupa-me mais a opinião do público em geral, do público mesmo. Como irão eles olhar para este filme, que não segue a linguagem convencional do cinema? Alguém disse-me: "Gosto muito da forma como o filme começa, pensamos que vamos entrar numa história e de repente já não sabemos onde estamos, estamos por todo o lado e a história que estávamos a seguir já não está lá, torna-se outra coisa". Fiquei assim: "Pois é, é verdade, mas é isso que eu gosto". Outros dizem: "Está sempre a abrir e a fechar coisas, até ao fim é cansativo, parece que está sempre a fechar histórias, e não sei o quê". Cada pessoa vê de maneira diferente, eu acho. E acho que os filmes deste género demoram tempo a ser compreendidos e a ganhar estatuto. Gosto muito mais do filme hoje do que gostei quando o mostrei pela primeira vez [no Indielisboa de 2023]. E a realidade, todos os dias, dá-me mais razão em relação ao filme que fiz. Acredito que, quando estrear, estará no ponto. [risos]

E para finalizar esta conversa, falou-me à pouco de um possível “novo projeto”. Pode-me falar dele?

O novo projeto é um bocadinho inspirado no que está a acontecer hoje no mundo. É uma visão, é um filme de ficção científica, de certa maneira. Portanto, não tem nada a ver com a realidade, é uma construção completamente ficcional. É uma invenção de espaço, um mundo irreal, fabricado, construído em estúdio, com personagens que não são reais também. No fundo, é um submundo, onde as pessoas se isolam, saem da realidade para procurarem no passado e nos arquivos o que falhou para que as coisas não tenham tomado outro rumo. Elas dedicam-se apenas a este estudo, não têm convívio com o exterior, que apenas lhes chega através dos canais televisivos, tudo construído por inteligência artificial. A realidade é este movimento, este grupo de pessoas que vai construindo, sem nenhum contato físico com a realidade, trabalho de pesquisa, de desenvolvimento de ideias, mas que também têm os seus próprios conflitos e têm uma heroína, uma mulher, Vera.

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Primeira Obra (2023)

Sim, ela chama-se Vera, o qual também será o título do filme. Vera de verdade. Vera de veritas, é bom. A construção é muito complexa e tenho muitos arquivos. Sempre foi um sonho meu, o de montá-los, fazer deles um documentário. Este arquivo foi construído maioritariamente nos 22 anos em que não trabalhei, pois além dos 40 de ausência de ficção, houve 22 em que não fiz nada, nem ficção, nem documentário. Estes anos foram mesmo assim, e falo sobre isso no filme, justamente, na primeira hora. 

Estes 22 de 80 anos vão de 1980 a 2002, onde me vi obrigado a procurar um outro mundo, uma outra vida. Isso levou-me para uma aldeia em Sintra, onde as rendas eram mais baratas, agora são caríssimas, mas na altura eram muito baratas. O Penedo, hoje é luxo, na altura era apenas para miseráveis, para os refugiados da cidade. Há aqui uma certa inspiração deste novo filme, no passado que vivi também, e nesses 22 anos, trabalhei para outros produtores, realizadores, ou com outras pessoas, seja como assistente de realização, por exemplo, de António Pinto Vasconcelos, numa série que ele fez internacionalmente, ou como assistente de realização de um realizador chileno, ou assistente de realização de um belga, que filmava na Lixeira, ali na Amadora.

Tive de trabalhar em lugares subalternos, onde me aceitavam para trabalhar, visto que como realizador não podia. Fui diretor de produção do Animatógrafo durante muitos anos, sobretudo para as produções francesas, aproveitando a vantagem da língua. Depois, também trabalhei como assistente de motorista para uma pessoa americana ligada à família Coppola, em Cascais, era uma função bem paga, devo dizer. Já tinha sido motorista quando era jovem, na escola de cinema, motorista de atores e atrizes, e era uma função que queria voltar a desempenhar. 

Estes anos foram de escritório, mas, apesar de tudo, andava sempre numa caminhada pequena, amadora. E fui filmando coisas. Tenho centenas de horas de gravações. São armários cheios de cassetes. Estão ali cheios [aponta para os armários], cheios, cheios, cheios, cheios, de tudo e mais alguma coisa. Portanto, todo este material eu queria documentar. Fazer algo em relação a esses 22 anos. Apresentei este projeto, intitulou-se "As Imagens são como as Cerejas", mas infelizmente não foi selecionado.

Patrick Wang: "Faço muitos dos meus filmes sem saber se haverá um próximo."

Hugo Gomes, 20.05.24

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Patrick Wang em "In the Family" (2011)

O segredo mais bem guardado do cinema independente americano”, lê-se na sua mini-biografia impressa no catálogo de programação do terceiro “Outsiders”. Patrick Wang é o grande convidado, não só para ministrar um workshop na Universidade das Belas Artes, em Lisboa, como também para apresentar ao público lisboeta os seus últimos três filmes (se considerarmos o seu “The Bread Factory” em duas obras distintas), tentando angariar olhares de quem contempla uma “raridade” dentro de um cinema que tem-se demonstrado criativamente, como visualmente, cansado e gasto.

Realizador, argumentista, produtor, ator, dramaturgo, escritor e tradutor de poesia russa e polaca, Wang é um homem de mil ofícios que vive sob os sabores e dissabores da sua paixão pela arte, cinema sobretudo e sublinhado. Tendo estreado com a longa-metragem “In the Family” (2011), o qual protagoniza, sobre a luta de um homem em conseguir a custódia do filho do seu companheiro, entretanto falecido devido a um acidente rodoviário, um drama de quase três horas de duração que fora rejeitado por mais de trinta festivais de cinema, maldição quebrada pelo surgimento por uma crítica positiva que o depressa alavancou, até à concretização de uma segunda obra - “The Grief of Others” (2015, adaptação de um livro de Leah Hager Cohen) - novamente dominado pelo luto e a forma como os demais personagens reagem perante esse pesar. 

Mais arrojado e ambicioso é “The Bread Factory” (2018), sobre um coletivo artístico-cultural numa antiga fábrica de pão, recheado de personagens extravagantes e atípicas, que confrontam com a sua própria extinção. Um épico cómico-trágico com o seu quê de caricatural e pseudo-antológico, dividido em duas partes, todas elas remetendo à relação das pessoas, que Wang sempre manifestou carinho, pela arte e os seus fins.

Patrick Wang revela nestas obras, para além da sensibilidade notável, um olhar técnico que desafia a própria condição de cinema independente norte-americano, apostando numa estética, essa linguagem por vezes perdida pela voraz vontade de filmar de muitos, e servi-la como essencial ferramenta à compreensão das suas histórias, e acima disso, de como as personagens sentem, sem nunca vergá-las aos “rodriguinhos” da sua aparente indústria.

Nesta conversa, que começou com queixas ao tempo chuvoso e frio de uma Lisboa que ainda não se deixa aventurou na anunciada Primavera, Patrick Wang falou sobre as suas paixões, as suas artes e as forças, possivelmente “invisíveis”, que o fazem continuar num mundo cinematográfico por vezes desmotivador. É cinema no coração...

A sua visita à cidade de Lisboa não se prendeu apenas com o Festival Outsiders, o qual está a ser homenageado, mas também com uma masterclass que ministrou na Universidade de Belas Artes, intitulada "Seeing Actors". Começo por lhe perguntar sobre essa iniciativa: o que espera dela, quais foram os objetivos e as pretensões?

Foi realmente uma experiência enriquecedora. A Universidade permitiu-me escolher o tema. Tinha acabado de trabalhar num novo filme e portanto num novo elenco e estava a refletir bastante sobre atores, pois tenho uma grande paixão por eles. Acredito que há certas coisas que, estranhamente, não são ensinadas na Escola de Cinema sobre performances e como lidar com os intérpretes, foram relações que aprendi em parte ao iniciar no teatro e pela minha experiência enquanto ator no início da minha carreira. Também aprendi simplesmente ao fazer filmes, o que considero uma das minhas razões para prosseguir nesta área: continuar a explorar novas formas de observar atores, como a câmara os percebe, e como pode capturar uma performance. Mesmo com a vasta quantidade de filmes que temos hoje, com toda a evidência acumulada, acredito que ainda há muito mais por descobrir e executar.

Lembro-me de uma entrevista sua onde expressou amor pelos atores. Acho curioso, contrastando com outros cineastas, muitos deles europeus, que manifestam o oposto desse sentimento. Recordo o catalão Albert Serra, que afirmou numa entrevista [na À Pala de Walsh]: “Para mim, é uma desgraça tão grande que existam estas pessoas no mundo. Era preciso liquidá-los.” No seu caso, nos seus filmes, os atores não são tudo - e já chegaremos a esse ponto - mas são a cerne do seu cinema.

Sim, bem, acho que os atores acabam por se tornar nas personagens. Se amas as pessoas, talvez não tenhas de amar todos os atores, mas é essencial amar aqueles que estão a dar vida a essas personagens. Quando os atores conseguem fazê-lo realmente bem, com grande compaixão e compreensão sobre como as pessoas pensam, trabalham e operam, sobre o que escondem e o que mostram, os problemas que enfrentam, é simplesmente belo de assistir, e ensina-nos muito sobre nós mesmos.

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The Bread Factory: Part Two (2018)

Como escolhe os atores para os seus filmes? Que critérios usa?

Os padrões que uso para o casting são um pouco diferentes. Às vezes, encontro um ator que conheço e que sei que consegue desempenhar o papel. Nessas situações, peço-lhe diretamente para fazer o papel, pois conheço o seu trabalho e sei que é bom o suficiente para o que preciso, facilitando assim o processo de casting ao eliminar uma peça do puzzle. No entanto, na maioria das vezes, gosto de conhecer novos atores. Uma das minhas coisas favoritas no casting é desafiar constantemente as minhas expectativas. Posso começar com uma ideia pré-concebida de como um ator deveria ser ou do tipo de ator que procuro. 

Contudo, quando um ator se apresenta, submetido por um agente ou manager, frequentemente me surpreendo e penso: "Isto não é nada do que eu esperava. Estarei errado? Por que razão tinha esta expectativa?" Ao questionar essas suposições, o processo de casting amplia a minha compreensão. Mesmo que inicialmente eu ache que aquele ator não se encaixa, esta reflexão permite-me entender melhor o porquê. Outras vezes, percebo que não havia realmente um motivo válido para não considerar aquele ator ou o seu background, o que expande as possibilidades de como vejo a personagem.

Houve algum episódio em que durante a escolha do elenco parecia acertada, mas durante as filmagens, o encaixe das personagens não era o que esperava?

Claro, há sempre surpresas, mas acho que a razão pela qual digo isto é que, na sessão de casting, algumas pessoas querem ver a performance final. Elas querem ver o que achamos que vamos obter no fim. Para mim, não importa tanto o quão próxima a atuação do ator está da performance final. O que realmente me interessa é como eles entendem a personagem e como trabalham comigo. Quando estamos na sala de casting, gosto de experimentar dar direções e observar como respondemos uns aos outros e como nos movemos juntos. De certa forma, essa dinâmica é o que mais me importa, porque, mesmo que a atuação inicial esteja longe daquilo que espero para o final, se nos conseguirmos mover juntos rapidamente e de forma eficaz, sei que podemos alcançar o objetivo. Como me concentro na nossa capacidade de trabalhar juntos, em vez de no ponto de partida do ator, acabo por ter menos surpresas, pois já sei que conseguimos colaborar bem.

Além disso, também és um ator. Recordo que foi o protagonista do seu primeiro filme, “In the Family”. Nesse caso, pergunto que procedimentos e desafios tem em dirigir a si próprio?

É engraçado. As pessoas não acreditam quando falo sobre isso. Fiz um teste a mim mesmo: gravei as cenas e depois revi. O processo que acabei de descrever, onde dou direções e observo como os atores respondem e trabalham comigo, permitiu-me ver como eu próprio mudava com as minhas instruções. Perguntei-me se conseguiria mudar algo que não estivesse a funcionar. E isso é muito importante. Fiquei satisfeito com os resultados.

Acho que a parte mais importante foi o ensaio intensivo. Ensaiava comigo mesmo durante meses antes de ver qualquer outro ator como parte do filme. Durante esses ensaios, fiz muitas gravações de áudio. No início, fazia gravações de vídeo, mas percebi que isso seria contraproducente, pois iria focar-me demasiado nos detalhes visuais e tentar controlar tudo. Com o áudio, conseguia ouvir uma performance honesta. Essa foi uma maneira mais simples e eficaz de ensaiar e garantir que estava no caminho certo e que a performance soava autêntica.

Fiz desta última pergunta um gancho para o seu primeiro filme. Sei que já lhe questionaram imensamente sobre a sua distribuição, o facto de “In the Family” ter sido recusado em mais de 30 festivais de cinema.

Quando saiu a crítica no New York Times e começamos a distribuição nos EUA, já tínhamos sido recusados em 30 festivais. Mas depois disso, as pessoas leram o artigo, souberam dos festivais e pediram-me para submeter o filme. No final, fomos rejeitados por cerca de 70 festivais. Ainda houve muitas rejeições. Acho que isso é bastante comum para a maioria dos realizadores. É triste porque, com tantos festivais existentes, deveria haver espaço para muitos tipos diferentes de filmes. No entanto, parece que grande parte da programação dos festivais é baseada na seleção de outros festivais. Vemos muitos dos mesmos filmes em muitos destes eventos. A capacidade de pensar e programar de forma independente é rara. Acontece, mas é rara.

Ou seja, aqui a importância do crítico de cinema como curador?

Sim.

Mas em algumas dessas rejeições recebeu uma justificação do porquê?

Talvez outro aspecto triste seja que, devido ao grande volume de filmes e realizadores, o meu filme teve que ser recusado, mas nunca ouvi o porquê.

Infelizmente, não só nunca se ouve as razões, como muitas vezes nem sequer se recebe uma resposta pessoal. Mesmo que alguém tenha respondido pessoalmente e eu tenha enviado o filme pessoalmente, nunca mais ouvirei falar. E isto acontece a tantos realizadores. E é, de certa forma, compreensível. Há muitas pessoas com quem lidar e escrever essas notas requer muita energia. Mas ao mesmo tempo, acho que é um aspecto frio e desnecessário de como lidamos uns com os outros. 

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The Grief of Others (2015)

Mas a partir do seu primeiro filme, e tendo adquirido um nome no cinema independente norte-americano, a seleção em festivais tornou-se mais fácil? 

Pensei o mesmo. Imaginava que ficasse um pouco mais fácil, mas é muito estranho, na verdade não fica. Por exemplo, no meu último filme, “The Bread Factory”, não conseguimos uma estreia em festival. Tal como nos meus filmes anteriores, passei cerca de um ano à procura de um festival para exibi-lo, e não consegui encontrar nenhum. Então, tive que organizar a estreia por minha conta. E foi muito difícil.

Acho que responder à negatividade é sempre desafiador. E, de certa forma, questiono o quão útil é. Por exemplo, há toda uma história de um romance ou um poeta que nunca foi publicado. Será que realmente aprendemos muito ao olhar para cada editora que os rejeitou? Ou será que devíamos dar mais valor às pessoas que nos apoiaram ao longo do caminho? Aquela editora ou aquela pessoa que promoveu a obra de arte fora do sistema, apenas por paixão pessoal? Acredito que os meus filmes sobreviveram dessa forma. É um zelo, um diálogo, uma preservação ditada por apenas alguns indivíduos. É por isso que esses apaixonados existem e continuam, e espero que o façam por muito e muitos anos.

Mesmo com a experiência dura do “In the Family” nunca “baixou os braços”, e o resultado é essa segunda longa-metragem, “The Grief of Others”.

Comecei a pensar sobre o luto enquanto estava a viajar, na digressão do “In the Family”. Portanto, quase que passei de um para o outro. Este é um dos temas de “The Bread Factory” eventualmente, é que assumimos que as coisas continuam. Como um realizador vai continuar a fazer o seu trabalho? Um artista vai continuar a fazer o seu trabalho, mas é muito... não se sabe estas coisas. Lembro-me de ficar muito frustrado porque dentro da família, um crítico ou alguém dizia: "Oh, não consegui rever isto ou prestar atenção a isto. Verei o próximo." E neste mundo, não se sabe se haverá um próximo. Faço muitos dos meus filmes sem saber se haverá um próximo. Por um tempo, houve um próximo que apareceu de certa forma ao fazê-lo. Mas essa forma é essencialmente eu gastar todo o meu dinheiro e eventualmente ficar financeiramente nas lonas.

Gostaria de destacar a sequência final de "The Grief of Others". É verdadeiramente notável, se me permitir expressar assim. Fiquei imensamente satisfeito ao testemunhar não apenas um desfecho temático, mas sim um desdobramento mais visual, quase cinematográfico, da trama. É algo genuinamente revigorante e, a meu ver, bastante raro nos dias de hoje, especialmente no cenário dos filmes independentes americanos, o qual parecem seguir a fórmula o qual chamamos de "fórmula de Sundance". No entanto, o seu filme demonstra que é possível não apenas trabalhar com estética, mas também explorá-la de maneira criativa e artística ao serviço da história. Não se trata apenas de mostrar que a produção “não tem dinheiro”, como muitos fazem, mas ter aprumo visual.

Portanto, questiono de uma forma subjetiva, para si um filme deveria priorizar mais a estética do que a narrativa, ou o oposto?

Sim, eu concordo. Acho que gosto que possam ser ambos porque, de certa forma, os meus filmes são muito narrativos. Venho de uma tradição teatral. Sou um dramaturgo à moda antiga em muitos aspectos. Mas também não seria interessante para mim se não houvesse questões que não consigo responder no início, questões estéticas às quais não sei a resposta e quero explorar. Essa é toda a razão para fazer o filme. E acho que existem dois tipos, de uma forma muito ampla, dois tipos de pessoas que se envolvem no cinema, as pessoas que amam o cinema e apenas querem fazer parte dele. Amaram o cinema toda a vida. Amam os filmes que saem. Há muitas. E eu amo o cinema, mas em grande parte são filmes do passado cujas estéticas e interesses caíram em desuso de certa forma. E faço filmes principalmente porque sinto algo a faltar. E acho que parte do que está em falta é essa exploração estética. Podes fazer a mesma versão da coisa que pode ser muito vistosa e pode dizer às pessoas, “Oh, estou a prestar atenção a estes elementos estéticos”, mas não estão a questionar a estética, e não são particularmente emocionantes para mim. 

São apenas mais uma versão de algo. Estou muito mais interessado, penso eu, em coisas, mesmo que não sejam novas na história da arte e do cinema, são novas para mim, e sentem-se muito novas nesta situação.

Mas voltando àquela cena final do “The Grief of Others”, por via de uma sobreposição, o filme foi filmado em película?  

Super 16, sim.

Imagino a dificuldade …

Sim. A montagem é toda digital, o que ajuda. Mas sim, filmámos isso em película. O primeiro filme foi o único que filmei digitalmente, mas finalizei em película. Portanto, há algumas cópias nesse formato que as pessoas podem ver. E os outros dois filmes - “The Bread Factory” - também são Super 16, mas um Super 16 muito diferente do “The Grief of Others”

Essa sobreposição a que referes é muito mais psicológica. Alude a uma memória. E assim, a densidade da cor e a película são muito diferentes. O contraste também o é, enquanto em “The Bread Factory”, é muito sólido. É sobre um mundo muito tangível, num mundo real, digamos. E por isso tem muito mais contraste, muito mais saturação. Para ostentar essa solidez.

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The Grief of Others (2015)

Recordo numa entrevista você ter mencionado o cinema de Roy Andersson em relação a “The Bread Factory”. É uma influência direta? Já agora, está atento ao cinema europeu?

Acho que muito do cinema que adoro vem da Europa. Algumas são coisas muito típicas, ou pelo menos mais típicas, talvez no passado. Acho que Bergman caiu um pouco em desuso, mas vindo de um contexto teatral, mas ainda assim procurando algo tão cinematográfico na forma como ele vê os atores e como inventa imagens. 

Mas também adoro alguns cineastas francófonos como o Jacques Tati, e principalmente o René Clément. Ele fez filmes maravilhosos como o “Plein Soleil” e o “Le Félin”, que  inglês é chamado “Joy House”, e também fez alguns filmes muito interessantes em inglês. O que gosto no seu cinema é que parece estar a inventar algo apenas para o momento, apenas para o que o drama precisa. Definitivamente sentiu-se assim em “Plein Soleil”, e sentiu-se assim em tantos outros dos seus filmes, como “Is Paris Burning?”. Acho-o muito interessante. E Tati gostava dele também. Promoveu bastante a sua carreira.

Quanto ao Tati, "Playtime" é uma obra-prima, mas adoro "Traffic". Normalmente, quando pensas em Tati, pensas na comédia, pensas nas imagens. O que adoro em "Traffic" é que é sobre esta exposição de carros. Tu levas esta caravana para a exposição. O tempo todo, estás tão preocupado em chegar à exposição. No final, perdes-a. É uma bela lição espiritual nisso, a coisa que pensavas ser tão importante, e essa coisa toda centrada no comércio e tudo o mais, na verdade não tem tanto valor assim. A diversão que tens ao longo do caminho e o esforço que fazes, isso sim, é o que devemos valorizar.

De certa maneira, depois da referência encontro relação de Roy Andersson, principalmente a sua quadrilogia dos Vivos, com o seu díptico “The Bread Factory”, há uma descostura, quase sketches que tanto de hilariante como de cruel e triste. Contudo, deixa-me aproveitar para fazer uma questão que se encontra dentro do filme. Na parte um, não sei se recorda, há uma realizadora que ministra uma masterclass de cinema para as crianças, e menciona que sempre chora ao fazer filmes. [risos] É muito difícil fazer filmes? É um processo muito doloroso?

Acho que grande parte da vida é difícil à sua maneira, e cada pessoa tem o seu dia mais difícil, que será o seu próprio dia mais difícil. Mas sim, houve muitas dificuldades novas que desconhecia até começar a fazer filmes. E, de certa forma, sou grato por elas, porque me ensinaram muito e me deram uma resiliência que sinto que me permite lidar um pouco melhor. É apenas um pequeno esforço físico, então não há muita dificuldade material ou física necessariamente associada. Mas há muitas coisas que temos de aceitar emocionalmente em relação ao mundo. Não estava totalmente preparado para isso no início, mas acho que agora estou muito melhor.

Isso faz-me recordar um escritor que me disse numa entrevista, que para ele a escrita é um processo demorado, solitário e por vezes, isso mesmo, doloroso. 

E o que ofereces a ti mesmo. Lembro-me que havia Jamie O'Neill, que escreveu o livro "At Swim, Two Boys". Ele tinha passado 20 anos a trabalhar neste romance. E alguém perguntou-lhe: “Qual é o teu próximo romance?”. Pelo que ele respondeu: “Não entendes. Esse romance foi o meu coração. Não se cria outro coração da noite para o dia”.

Ou seja, isso é uma indireta para não lhe perguntar sobre próximos projetos? [risos]

Tenho dificuldade em não pensar em novos projetos. É doloroso porque são difíceis de concretizar. Mas acho que me sinto sortudo porque há novas questões, novas ideias, novas coisas que sempre me fascinam. Há uma parte de mim, mesmo que me desencante, e muito, com a indústria, que está sempre a pensar no que fazer a seguir e como fazer algo novo.

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The Bread Factory: Part One (2018)

Outra faceta sua é a tradução de poesia, russa e polaca. Arseni Tarkovski, o pai do cineasta Andrei Tarkovski declarava - "A poesia não se traduz." Como foi trabalhar com isso? Foi algo que encontraste como vocação durante a pandemia?

Apenas surgiu de um desejo muito simples de ler. Os tradutores de literatura são sobretudo motivados por um ato de paixão. É porque não há uma verdadeira indústria para isso. Basicamente, apaixonas-te e dedicas a tua vida a algo. Depois, se tiveres sorte, consegues um contrato para um livro em algum momento.

Revisitando novamente “The Bread Factory”, há uma personagem de um poeta que desmaia de emoção, e ao redor dele é ouvido uma expressão algo condescendente: “é um porta, está morto de fome”. [risos]

Para mim, foi muito prático no início com a poesia. Estava a aprender uma nova língua, e a poesia tem menos palavras. Portanto, é uma tarefa de tradução mais fácil, e estás a prestar atenção às palavras, o que também é agradável. E havia toda uma geração de escritores russos do final do século XIX ao início do século XX que eram todos poetas antes de mais nada. Se passassem para contos ou romances, todos eram poetas antes de mais nada, e era apenas uma vocação assumida. Depois, sempre ouves que muitos desses escritores do século XIX tinham uma grande ocupação em traduzir do grego ou do latim ou até de outras línguas para a sua língua materna. Nunca entendi muito bem por que é que isso importava e o que isso significava. Depois, acho que quando comecei a traduzir novamente porque queria ler, havia tantos poetas em que estava interessado que não estavam traduzidos. E assim tens apenas de o fazer tu próprio, ou não há mais ninguém. E aprendi tanto nesse processo. Muitas pessoas têm dito que a tradução é a forma mais profunda de leitura. E o que foi interessante é que, enquanto estava a traduzir, senti exatamente isso.

Lembro-me de, com o primeiro livro que publiquei dos poemas de [Ivan] Bunin, estar a falar com alguém que era o perito em Bunin, e que tinha escrito muitos livros sobre ele, que lamentou: “é uma pena que ele não tenha estado aqui para ver este livro”. Pareceu-me tão estranho, porque senti que tinha estado a viver com ele durante meses enquanto estava a trabalhar na tradução. E senti que, de certa forma, tinha a sua aprovação e apoio, enquanto há outras citações que tentei traduzir, e consigo sentir algo a bater-me na mão e a impedir-me: “Não quero nada contigo”, e como tal não consigo. Quero dizer, tecnicamente não há nada que eu não deva ser capaz de fazer, mas não consigo porque parece que “eles” não querem. É uma coisa de espírito.