Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Oscars 2024: depois das legislativas, o atómico

Hugo Gomes, 11.03.24

lcimg-4d78941b-0375-4b97-b7f0-1af69e903342.jpeg

Como costumo dizer no final de cada cerimónia - "Acabaram-se os Óscares, que regressa o Cinema" - este ano, simplesmente, não aconteceu... E não me refiro aos vencedores, obviamente, a gala de prémios foi a mais previsível desde que "Coda" (quem?) abocanhou a estatueta de Melhor Filme numa noite quente marcada à bofetada. Não, o motivo foram as eleições legislativas altamente disputadas que tiraram o sono a qualquer português. Depois disto, qual o interesse de ver "Oppenheimer", o "mais importante filme do século", como vozes em uníssono declararam antes da produção estrear, levar um punhado de "homens dourados" (com alguns bem discutíveis, "Montagem? Por favor", outros bem merecidos como Robert Downey Jr. enquanto ator secundário)? Contudo, como é tradição aqui no espaço, um comentário - meio ácido, aviso desde já - da noite que se fez para lá de Los Angeles a marcar a manhã de uma ressacada segunda-feira. Portanto, cá vai:

Como tinha afirmado, Nolan é o esperadíssimo vencedor, antevendo um circuito altamente previsível e homogéneo. Cillian Murphy sai sorridente em oposição de um "Maestro" tristonho e vazio (para um filme com uma realização daquelas merecia mais, mas nada neste mundo é justo). Emma Stone, a frankensteiniana criatura de "Poor Things" de Yorgos Lanthimos, faz uma rasteira a Lily Gladstone na categoria de Melhor Atriz, e na mais disputada categoria, a de atriz secundária, Da'Vine Joy Randolph de "The Holdovers" acena às derrotadas America Ferrara e Danielle Brooks. Outra categoria digna de nota é a de Filme Internacional, com o britânico falado em alemão "Zone of Interest" a sobrepor-se a "Perfect Days" e "The Teacher's Lounge", sacudindo alguns fantasmas do Holocausto e incomodando, como se percebeu no discurso de Glazer, o conflito israelo-palestiniano. E por fim, digno de nota, o nipónico e "underdog" "Godzilla Minus One" a triunfar na competição dos efeitos visuais, deixando para trás candidatos com potencial como "The Creator" e o terceiro "Guardians of the Galaxy", e (confesso, o prémio que mais felicidade me trouxe), a animação para "The Boy and the Heron" do nosso mestre Hayao Miyazaki.

E pronto, é isto. "Acabaram-se os Óscares, que regressa o Cinema"!

Os Melhores Filmes de 2023, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 27.12.23

Plataformas há muitas! Cada vez mais chorou-se pelas salas vazias e as telas projetadas sem companhia, mas é no encontro de 2023 que testemunhamos uma mudança neste paradigma da sala de cinema, anteriormente dominado pelo cinema “disneysco” e “super-heroesco”. As notícias de fracassos de box-office, à primeira vista, fariam qualquer adepto do cinema em sala arrancar cabelos e a gritar desalmadamente pela vida - ”se os super-heróis fracassam, o que mais poderia funcionar para conquistar espectadores?” - porém, a resposta fez-se pelo ciclo natural, Disney e os seus afilhados falham, dando a vez a outros fenómenos e a outros cinemas a dominar. 2023 foi o ano de “Barbenheimer”, a conjunção de memes de internet que rendeu milhões na estreia simultânea - “Barbie” e “Oppenheimer” - Greta Gerwig e Christopher Nolan a dupla esboçar sorrisos aos investidores, e a partir daqui, pequenos “milagres”, um cinema, talvez, mais adulto a fazer as delícias de “moviegoers”. 

Mas quanto ao Cinema? Digamos que se 2023 fosse resumida a vinicultura, seria uma boa colheita, a ser degustada e servir à temperatura ambiente como acompanhamento de um prato refinado. Sim, foi o ano em que o cinema estruturalmente e essencialmente se pensou e nele desviou-se a atenção do slogan “Cinema Morreu”, e substituiu-se pelo “Cinema está Vivo”. Victor Erice acreditou na sua “segunda vinda”, Nanni Moretti cedeu aos novos tempos (mesmo com um ar derrotado), Damien Chazelle codificou a fórmula da energia cinematográfica (o caos que gera harmonia), Bradley Cooper releu o classicismo e atribui-lhe roupagem a condizer, Wes Anderson castigou o realismo simulado e a imperatividade da continuidade (essa praga dos novos tempos) e Wim Wenders sugeriu que parássemos e contemplássemos o nosso redor. Por outras, o Cinema permanece à nossa volta, basta procurar, olhar e deliciar, os “velhinhos” da casa que teimam em vender o contrário fecharam há muito nos seus respectivos sótãos. 

Segue, sem mais demoras, os 10 filmes que o Cinematograficamente Falando … selecciona como os melhores do ano, respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) Falcon Lake

falcon-lake-image08.jpg

“Porém, a viagem é ela mesma corrompida, “Falcon Lake” deseja a sugestão como ninguém e nisso quebra a narrativa numa encruzilhada quase shyamaliana, depois disso o filme ganha um outro significado, uma outra visão, um outro efeito, o que nos leva ao grande dilema da nossa modernidade enquanto espectador - continuidade? Fortalecer ou enfraquecer?” Ler Crítica

 

#09) Killers of the Flower Moon

Killers-of-the-Flower-Moon-042723-03-b37cde6ff7a34

“A tempestade, o Scorsese “velho” porém estilizado e fora de horas, é exorcizada nestas recentes estâncias, possivelmente na busca de um derradeiro título, em “Killers of the Flower Moon”, se tudo correr bem não deterá esse papel, mas é o ritual de afirmação para com essas memórias que se contrapõe a um Scorsese “novo”, mais próximo para com o súbito desvanecer.“ Ler Crítica

 

#08) EO

eo1.jpg

Conta-se que Noomi Rapace, integrante do júri da edição de 2022 do Festival de Cannes, julgou em “EO” encontrar um realizador jovem no hino das suas vidas promissoras. Nada disso, Jerzy Skolimowski vai nos seus 85 anos, e com esta peregrinação exemplar, cita e recita o esperado filme de Bresson [“Au Hasard Balthazar”], remexe num cinema animalesco, de uma animalidade em contraposição da suposta e vendida Humanidade. Trata-se dessa refilmagem espiritual que cede à sua perspectiva e nos evidencia um filme fora do registo antropocentrista, e para resultar nele um Cinema puro que há um par de anos o russo Viktor Kossakovsky parece ter tecido - “Gunda”. O Cinema na pureza do seu lar, a Natureza como seu berço narrativo. “EO” não se equipara nessa pretensão, faz uso dessas iguais ferramentas. 

 

#07) Asteroid City

film_Asteroid-City.jpg

“Terminou! A música anuncia o final, de costas voltadas para o proto-vilarejo que empresta o nome à película, os créditos finais começam a rolar, um papa-léguas, curioso pássaro testemunhante das peripécias ali fabricadas, balança no ecrã, fazendo ”pirraças” a quem vai gradualmente saindo da sala. Aos que ficam, a sua dança vitoriosa vira recompensa. Não quero abandonar este filme, não consigo de todo abandoná-lo. Rastaparta ao realismo!” Ler Crítica

 

#06) Perfect Days

Sub2_Perfect_Days2023-MASTER-MIND-LTD.webp

Wim Wenders também está, como é claro e sucinto, a envelhecer, não é o realizador de antes (e quem poderá ser na verdade?), pegando nesta curta de encomenda - uma aclamação pelos banheiros públicos da capital japonesa - transformou-a numa longa em perseguição à sua própria sombra, a metáfora de reconhecer o inalcançável. A vida é de curta estadia, aproveitar o que dela contêm, os “pequenos prazeres” de dia a dia, ou simplesmente devagar e devagarinho, receber cada raio de Sol uma benção, um “perfect day” cantarolando pelo esperado single de Lou Reed. Soa-nos conversa motivacional, pois soa, mas garanto-vos que a obra nada tem de desbaratamento inspiracional, porque não passa de uma filosofia quotidiana constatada, o yang ao lufa-lufa e do sucesso enquanto objetivo vivente, pregado vezes sem conta pelos falsos-ídolos do Ocidente.” Ler Crítica

 

#05) Afire

8dd925c114d78c225b5b34b0e1f95219b1-afire.webp

O protagonista (Thomas Schubert) não é de fácil empatia, mas banha-se dela porque nos sentimos identificados com a sua negada emancipação, das troças do destino ou do bloqueio que o atingem enquanto maldição vindo de Deuses embusteiros. O novo filme de Christian Petzold é um magnetismo a fantasmas, seja Paula Beer em evocação da musa petzoldiana perdida (Nina Hoss, saudades tuas), seja a aura malapata deste scrooge escritor que parte para o litoral na tentativa de completar o seu romance. Soa-nos remédio-santo para assumir uma mediocridade, personagens que fazem isso merecem a ala mais elevada do Além celestial, contudo, mais do que a inteira consciência desse feito (que nunca se materializa), “Afire” é um jogo cruel, castigador deste narcisismo autodestrutivo, chegado por vias de apólices, essas epifanias ardentes e misteriosamente cadavéricas. Recorro a esta obra como um “livro aberto”, a proeza de conseguir ligar-nos aos desprezíveis, logo, incompreendidos protagonistas. 

 

#04) Babylon

bab23499r4.jpg

“Quanto ao nosso contacto com “Babylon”, a sua reação dispar é um sintoma de como Damien Chazelle acertou na mouche, odiar o seu lado “monstruoso” é natural e fortalecedor ao seu conceito, deslumbrar com ele é de igual forma. Um risco de produção, acentuada numa indústria que atravessa a sua crise identitária (não confundir com outras identidades). Julgo que não teremos outro filme assim durante um longo período … Obrigado Chazelle, por mostrares que és o melhor dos dois mundos!” Ler Crítica

 

#03) Il sol dell'avvenire

il-sol-dellavvenire-2023-nanni-moretti-recensione.

“Já em “Il sol dell'avvenire”, o criado filme aproxima-se do quotidiano de Nanni (Moretti sendo ele mesmo, quem mais?), envelhecido, cansado e à sua maneira reacionário, incapaz de lidar com as transformações que a sua vida experiencia uma e outra vez. Talvez é nesse intuito que aqui o filme muta, já não é mais um espelho de quem não consegue “olhar de frente” para o trajeto da sua existência; é antes uma determinação e quiçá uma superação.” Ler Crítica

 

#02) Tar

Chen-Todd_Field.jpg

“Contudo, este jogo de duas faces instala esse efeito de dupla interpretação, onde cada um vê consoante a sua sensibilidade, como nos fizeram crer, felizmente “Tar” é uma espécie de palimpsesto, duas melodias na mesma nota sem com isto ser necessariamente uma questão de leitura ou de perspetiva, ou diríamos melhor, numa inquisição de perguntas e não de resposta. O Cinema não tem obrigação de responder a nada, por isso quem procura decifrar a autenticidade do seu simbolismo perde instantaneamente o seu efeito aqui.” Ler Ato I, II, III

 

#01) Cerrar los Ojos

cerrar-los-ojos-pelicula-victor-erice-jose-coronad

“Um despertar com contrariedade, porque é no encerrar os olhos que o Cinema vive. É no fechá-los que voltamos a Acreditar. Victor Erice acredita, acreditou e acreditará, a sua persuasão leva-nos a acreditar também.” Ler Crítica

 

Menções honrosas: Knock at the Cabin, Nação Valente, Nayola, Maestro, World War III, Sur L’Adamant

Hoje é o teu primeiro dia ...

Hugo Gomes, 16.12.23

08_perfectdays_2023-master-mind-ltd.jpg

Dentro deste caldo ocidental impregnado num capitalismo feroz, a “salvação” é vendida na disciplina, na ambição ou na aprendizagem gerida pela nossa resistência, milésimas dicas e truques hoje apoderadas pela classe “coach” (estes tutores da competição frenética e charlatães), são contrapontos com a sua antípoda, esses ensinamentos orientais, sobretudo japoneses, de consolidar a vida e contentar-se com os seus frutos suculentos, e nunca esperando algo mais adocicado. Muitos de nós ouvimos repetidamente, e talvez em jeito de troça, esse termo denominado ikigai, a busca do propósito vivente, ou de outro ponto, o wabi sabi, o de lidar com as imperfeições envolto, resignar a elas como nossas. 

Ao ver o último filme de Wim Wenders - “Perfect Days” - no qual me uno ao coro do “melhor trabalho do realizador alemão desde o longínquo [inserir latitude-título]”, deparo-me com essa imperfeita assunção, daí a lenta jornada de Hirayama (um sensibilizado Koji Yakusho, um dos ‘musos’ do cinema de Kiyoshi Kurosawa), homem dado e dedicado à sua própria rotina, não pretendendo mais do que a ‘mediania’ aí oferecida. De meia-idade, longe das promessas que a sua existência usufrui, limpa casas de banhos públicas por Tóquio adentro, ouve música através das suas estimáveis cassetes, alimenta-se nos mesmos ‘barrancos’ e presta-se às mesmas companhias mesmo que ele seja um homem lacónico (a verborreia persiste nesse desperdício que o nosso protagonista parece evitar a todo o custo), lê um livro todas as noites até os seus olhos se cansarem, cuidas das suas plantas, pequena vida com o carinho preciso e nutrindo um afecto inesgotável. Hirayama optou pela estabilidade, e para isso descarta qualquer projecção, qualquer objetivo, qualquer cobiça, mira o céus, as folhas “dançantes” nas árvores graças às prazerosas brisas que também desfruta, observa o seu redor, os desconhecidos que passam sem rasto, sob um olhar carinhoso, sem malícia, sem inveja. 

Nós, espectadores, somos convidados a esse recatado mundo, do eremita da mais populosa cidade por metro quadrado. “Perfect Days” é o “viver o momento”, frase feita de psicólogos e desses ‘malditos’ coaches em modo remixado e em loop, só que despido de qualquer “sonho capitalizado”, Hirayama ensina-nos a ser gratos pelo que conseguimos, o simples respirar, e em consequência sentir. É um filme de sentimentos, como é óbvio, embebido, e entranhado na sua serenidade zen. Wim Wenders parece seguir essa “escola de vida” com uma ternura inabalável. Porém, não nos quedamos pelo equilíbrio duradouro. Pouco a pouco, o ciclo ritualístico do protagonista começa a diferenciar-se: ora o colega fala-barato o faz desviar da rota, ora a sua sobrinha surge sem avisar, ora o seu cantinho de degustação gerido pela figura-gueixa alcunhada de “Mãe” (Sayuri Ishikawa) não abre portas naquele exacto momento, pequenas mudanças que por pouco faz Harayama duvidar da subsistência da sua então construída “fortaleza”. Mas a lição, longe da moralidade barata, é apenas constatação do óbvio - nada se mantém intacto; a mudança é inevitável. Edifícios erguidos e certo dia desabados cujo vazio observado e questionários pelos anciães ocasionais: “O que estava aqui? Já não me lembro. É o preço da velhice”. 

9890dc0_1685028685983-4-pic.jpg

Wim Wenders também está, como é claro e sucinto, a envelhecer, não é o realizador de antes (e quem poderá ser na verdade?), pegando nesta curta de encomenda - uma aclamação pelos banheiros públicos da capital japonesa - transformou-a numa longa em perseguição à sua própria sombra, a metáfora de reconhecer o inalcançável. A vida é de curta estadia, aproveitar o que dela contêm, os “pequenos prazeres” de dia a dia, ou simplesmente devagar e devagarinho, receber cada raio de Sol uma benção, um “perfect day” cantarolando pelo esperado single de Lou Reed. Soa-nos conversa motivacional, pois soa, mas garanto-vos que a obra nada tem de desbaratamento inspiracional, porque não passa de uma filosofia quotidiana constatada, o yang ao lufa-lufa e do sucesso enquanto objetivo vivente, pregado vezes sem conta pelos falsos-ídolos do Ocidente. No fim de contas, Wenders regressa a Ozu, o seu ídolo, não à sua arte de filmar, mas à sua arte de entender o seu redor - “A felicidade não se espera, cria-se” - debitado por Chishū Ryū em “Late Spring” (1949), a encarnação espiritual deste luminoso Koji Yakusho

Oh, it's such a perfect day

I'm glad I spent it with you

Oh, it's such a perfect day

You just keep me hanging on

Lou Reed

 

Táxi!!

Hugo Gomes, 25.11.23

cs88kouz4ea41.jpg

Like Someone in Love (Abbas Kiarostami, 2012)

Johnnycab_Main.jpg

Total Recall (Paul Verhoeven, 1990)

AGmqCQw8YGv1kyhzmb6yVMb26NeRLQ.png

Night on Earth (Jim Jarmusch, 1991)

0dee7814df17af838a71aca56f443f6d.jpg

The Fifth Element (Luc Besson, 1997)

collateral_001.jpg

Colateral (Michael Mann, 2004)

1313948.jpg

They All Laughed (Peter Bogdanovich, 1981)

Taxi-Driver-2.webp

Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976)

8a8QjNv3Ziqc2tGjRmq34VEqMjq-1200-1200-675-675-crop

Taxi (Gérard Pirés, 1998)

descarregar.jpg

Taxi (Jafar Panahi, 2017)

taxijack.jpg

No Táxi do Jack (Susana Nobre, 2021)

helpme.webp

Scrooged (Richard Donner, 1988)

a_taxi_driver_main_copy_-_h_2017.webp

A Taxi Driver (Jang Hoon, 2017)

92de35_58cd4a7bc91b46a08d609cde242271f2~mv2.webp

The Day After (Hong Sang-soo, 2017)

Sem título.jpg

It Must be Heaven (Elia Suleiman, 2019)

i641731.jpg

The Bone Collector (Phillip Noyce, 1999)

01-2884.jpg

2046 (Wong Kar-Wai, 2004)

HT_Still.jpg

Happy Together (Wong Kar-Wai, 1997)

234144_1345973.jpg.1500x1002_q95_crop-smart_upscal

In the Mood for Love (Wong Kar-Wai, 2000)

"Mestres Japoneses Desconhecidos III": no cinema nipónico, o destino prega partidas ...

Hugo Gomes, 08.11.23

MixCollage-09-Nov-2023-12-37-PM-9767.jpg

A trilogia confirma-se! A The Stone and Plot desafia os espectadores portugueses a mais um ciclo de “Mestres Desconhecidos do Cinema Japonês”, com “novas” e inéditas três obras a (re)descobrir, uma trindade de propostas que vem delinear a fissura entre o clássico nipónico e a sucessora “nova vaga” repleta de rebeldia e “crueldade”. Uma iniciativa que tem trazido até nós obras-primas (esquecidas) e preciosidades vindas da cinematografia fundada sob o Sol Nascente, enriquecendo esta cinefilia por vezes reduzida aos previsíveis cânones. Morikawa, Nishimura e Shimizu, são os “recém-chegados”, mais três nomes para memorizarmos!

 

Sound in the Mist (Hiroshi Shimizu, 1956)

IMPRENSA 3.png

Hiroshi Shimizu, realizador desde os tempos mudos, é o “romancista” desta história intermitente, “saltando” de ano para ano, partilhando em todos esses delineados capítulos o mesmo local e estação.

É em dias do Equinócio de Outono que “Som do Nevoeiro” (”Sound in the Mist”) revela o seu enredo de desencontros: um professor de botânica parte para o remoto da montanha, numa isolada habitação na companhia da sua amante. Ambiente rodeado por um denso nevoeiro que se assimila a uma silenciosa e simultaneamente endurecedora testemunha, os olhos "invisíveis" para um romance adúltero que, tal como a natureza da neblina, desvanece, certa vez, sem rasto aparente. É na passagem desses períodos temporais, respeitando o tempo e o espaço, que ambos os ex-amantes povoam as memórias, traídos por um destino trocista que entardece e adia o esperado reencontro.

É um filme de acasos, pilares de um fado que se vai construindo até culminar num falso-clímax. Um romance ao nível dos clássicos hollywoodescos pela sua atração pelo gravitas e pelo seu platonismo romântico. Shimizu, por si só, relembra através do enevoado horizonte, fantasmas e espectros embusteiros, rindo por detrás da orla florestal das suas partidas aos seres completados mas nunca consolados. Tragédia dinamitada, cuja queda do seu pano nos guia, memorialisticamente, por “contos de lua vaga”, neste caso, por contos que só a Lua do Equinócio poderá narrar.

 

The Gambling Monk (Shogoro Nishimura, 1963)

EEY-PVpUcAA6fNL.jpg

As amoralidades trazidas em “O Monge Apostador” - a primeira longa-metragem de Shogoro Nishimura, realizador convertido, mais tarde, num dos fundadores do estilístico género-tofu "Roman Porno" - incentivam ao abandono da espiritualidade e aos seus "rodriguinhos" que esta narrativa poderia emanar por mera dedução. A história de um professor de ensino médio (Shôichi Ozawa) que após a notícia da morte do seu irmão, assume os "negócios de família", apresentando-se acidentalmente nesse papel de "monge fúnebre". Contudo, a entidade divina encontrada reside nas corridas de bicicletas nas quais aposta, cedendo com isso a um vício infernal que descarrila toda a sua jornada convicta.

Escrito por Shôhei Imamura e Nobuyuki Onishi, "O Monge Apostador" revela-se progressivo ao abordar temas tabus como o aborto e o incesto, sugerindo, por vias de um erotismo repreensivo e repreendido, as "sementes" da eventual cruzada de Nishimura em futuros anos. Neste monge de título, cujas façanhas não o iluminam para um trilho religioso, deparamo-nos com um percurso de "loser" como manda a bitola americana, mas o seu 'falhado', tragicamente 'falhado', é um símbolo de uma decadência oriental, contagiada pelos vícios ocidentais, embrulhados numa falsa espiritualidade e num jogo de acasos mórbidos. 

A sequência final, que julgamos ser a redenção, com o protagonista logrado por ares messiânicos, em palcos improvisados, como pregador perante os seus “peixes”, cujo sermão, nada mais, nada menos, vítima dessa cedência identitária, a troca dos santuários budistas pelos viscosos ciclos da religião da importada "modernidade" da ala vencedora. Sim, falamos de guerra, porque é nela, nas suas frustrações e impotências, que nascem narrativas destas, ácidas e igualmente humanas. Mesmo que a ridicularização desse estado seja a base dessa arte.

 

The Tragedy of Bushido (Eitarô Morikawa, 1960)

The Tragedy of Bushido.jpg

A grande obra-prima desta trilogia! Filme único (e único filme) do cineasta Eitarô Morikawa, integrado num movimento incentivado e implodido pelo seu próprio estúdio, a tendência de criar um novo cinema japonês, porém, cargo que a Shochiku [estúdio] arrependeu-se por inteiro devido a embaraços político-sociais que os filmes produzidos apresentavam. Dessa vaga, Nagisa Oshima persiste como o estandarte, enquanto que “A Tragédia de Bushido” (“The Tragedy of Bushido”) é condenado a uma indiferença. 

Novas vagas, ou novos cinemas, integram um movimento de ruptura com as bases clássicas, seja estético ou temático, confundindo-se como gestos ativos e de rebeldia contra o cânone da época. Oshima, muito crítico em relação à cinematografia nipónica, concretiza o seu “Contos Cruéis da Juventude” (“Cruel Story of Youth”, 1960) e o muito incontestável “Night and Fog in Japan” (seria a “pedra no charco” desta relação do estúdio Shochiku com o 'hub' criativo que estava a formar) no mesmo ano, enquanto que Morikawa 'atira-se' ao género jidai-geki, só que é desse passado feudal, decretado como alvo de antigos rituais, manifestando-se como uma máscara que “disfarça” um dedo inquisitório da contemporaneidade político-social e, mais uma vez, a Guerra como motor de todas as frustrações e revoltas. 

Aqui, seguindo o milenar ato do seppuku (ou hara-kiri), suicidio de honra cometido por samurais após a morte do seu senhor, integrado no código de bushido, o comprometimento voluntário (ou não) a esse derradeiro ritual. E na queda do seu Senhor que a “Casa” (leia-se clã) indicia levar a cabo tal “tradição”, sendo que as forças hierárquicas elegem o irmão mais novo de Nobuyuki (Miki Mori), Iori (Junichiro Yamashita) para o fazer, como uma demonstração do poder em voga e sistemático. Porém, o jovem, mesmo aceitando a “tarefa”, sente-se hesitante; o seu irmão encarregado de lhe atribuir o “sacrifício” é inteirado num dilema moral e até emocional, até porque será o próprio que dará o “golpe misericordioso” para pôr fim ao sofrimento.

ThumbJpeg.jpg

Eitarô Morikawa dirigido os seus atores

Contudo, existe um terceiro vértice do triângulo - se não fosse "A Tragédia de Bushido" num trágico trio amoroso - a cunhada do "rapaz" (Hizuru Takachiho) que se oferece para desvirginá-lo, para que este conheça o calor vindo do corpo de uma mulher antes da sua partida para o "outro mundo". Mas a caridade não se limita a esta oferta a um sentenciado à morte; também é uma revelação de sentimentos escondidos e inibidos perante os poderes impostos. A consolidação desse amor, entre corpos desnudados em praias fluviais, banhados pela Lua, transmite uma sensualidade romântica, como se fossem os últimos amantes da Terra, e que só a Natureza seria testemunha daquela união, o casamento carnal entre juras de amor e promessas de juventude eterna.

De seguida, a execução, de um lado o irmão mais velho, o impotente Senhor do seu destino, com katana empunhada, apontada ao pescoço do seu “caçula”, que por sua vez tem o sabre pronto no abdômen, pronto para desferir a sua autopunição, desventrar-se enquanto tributo à hierarquia. A decupagem aqui emanada: entre rostos hesitantes, demorados e silenciosamente implorando por um milagre, dois irmãos entre a espada e os velhos costumes, a força injetada nas mesmas, leva os dois a um confronto intrínseco e invisível ao “olho humano”. A cadência dos planos marca o ritmo de um relógio-bomba, o tempo está a esgotar, o fim daquela situação acontecerá de qualquer maneira se não for um solicitado Deus Ex Machina para impedir este reprodução de “Caim e Abel”, e tal manifesta-se sob a forma de Lei. No entanto, a “Tragédia de Bushido" é um filme de dilemas entre dilemas, o término de um automaticamente sucede-se por outro, como se a vida fosse por si só a punição suficiente. O que fazer com aquele romance? Com aquela oferta amorosa da cunhada? Aí o trio, trágico à partida, será resolvido num teatral e alusivo seppuku.

Eu vou morrer, mas este lago e estas montanhas não vão mudar. Permanecerão sempre aqui”, lamenta Iori na presença da sua cunhada antes da execução formal. No entanto, é um lamento de quem aceitou o destino sem resistências, subserviente a leis arcaicas, preservadoras dos poderes instituídos, leis que a juventude ignora quando jovem, mantendo-se fiel ao saudosismo e a sociedades decadentes. É através deste olhar, deste pesar, deste fardo cruel e fatalista, de uma juventude 'estrangulada' por velhos ciclos, que “A Tragédia de Bushido” se aproxima da sua vontade jovial, ou diria mesmo, de uma eventual nova vaga, uma ruptura com uma progressão. É o lamento de uma geração encurralada entre a derrota e a negação.

Arranca o 13º Encontros Cinematográficos: "um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade."

Hugo Gomes, 10.08.23

97Ssf4hRHLat2N7NPZfN50oKPAl.jpg

Paradise Alley (Sylvester Stallone, 1978)

A proposta é a seguinte: a 40 km da fronteira com Espanha, mais precisamente na cidade do Fundão, realiza-se um seminário para cinéfilos com o intuito de ver, discutir, debater e apreciar o Cinema, seja através de filmes variados, modernos, clássicos, cultos e ocultos. Trata-se de um seminário anual que chega à sua 13ª edição, um número associado à má sorte para os supersticiosos, mas à sorte para aqueles para quem o Cinema é uma religião única e absoluta. Referimos, sim, aos Encontros Cinematográficos, que acontecerá de 11 a 14 de agosto, na Moagem do Fundão. 

Este ano, o evento prestará homenagem à animação portuguesa, na sua fase ascendente e resgatada, e as primeiras imagens da obra (ainda em fase de montagem) “Senhora da Serra”, de João Dias (editor de alguns trabalhos de Pedro Costa), que remete-nos a lendas oriundas do interior português, com especial atenção ao misticismo da Gardunha. Além disso, o Serge Daney será o signo destes quatro dias, não apenas pela apresentação do livro "Perseverança" (editado em português pela The Stone and the Plot), mas também porque será o ponto de partida para a exibição de dois clássicos amados por este crítico e eterno cine-amante: "Hiroshima Mon Amour" de Alain Resnais e "Paradise Alley" ("O Beco do Paraíso") de Sylvester Stallone.

No entanto, não revelaremos mais detalhes sobre o programa desta intensa peregrinação cinéfila, deixaremos isso para o programador Mário Fernandes, nesta conversa que traz à baila surpresas e destaques deste “encontro entre cine-amigos”.

Na 13ª edição e com uma perspetiva / retrospectiva, o que podemos esperar dos novos Encontros Cinematográficos, para onde se direcionam e quais são as ambições deste evento?

No essencial, dar a ver um cinema diferente de uma forma diferenciada: um Encontro na verdadeira acepção da palavra, assente na partilha e não na competição. Todas as edições são naturalmente diferentes, mas creio que o maior desafio para o futuro será manter o nosso espírito identitário ou linha editorial: «posicionados ao lado dos que resistem, dos que fazem do ofício um acto de amor, dos que divergem da unanimidade premiada, das “anomalias” dos pequenos e grandes gestos cinematográficos.» [Catálogo da XI edição dos Encontros Cinematográficos, p. 6].

Ao tentarmos definir os Encontros Cinematográficos, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

Diria que os Encontros Cinematográficos são essa comunhão, não apenas entre cinéfilos. Podemos defini-los como um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade.

Celebrando o centenário da animação portuguesa, que nos últimos meses ganhou destaque, em grande parte devido à nomeação para o Óscar de "Ice Merchants" de João Gonzalez. No entanto, nem sempre foi assim, uma vez que já foi considerada um subproduto do cinema nacional. Sem questionar se concorda ou não com esta depreciação, acredita que são necessárias mais iniciativas como esta para promover e divulgar este tipo de produções? O que mais acha que deve ser feito?

O cinema de animação começou por ser uma das vanguardas cinematográficas por excelência, em linha com as vanguardas artísticas do início do séc. XX, pelo menos era esse o entendimento do Henri Langlois, que nunca teve qualquer problema em programar filmes de animação ao lado dos maiores filmes da vanguarda francesa, por exemplo. Talvez tenha sido ele o primeiro a perceber a relação visceral entre o cinema de animação e a pintura, a música, a dança, o desenho, etc. Muitos animadores são, na verdade, extraordinários artistas, além de cineastas de corpo inteiro. Desde o Émile Cohl, o Picasso da animação, ao Theodore Ushev. No caso português, penso que o filme do João Gonzalez foi fundamental para o cinema de animação recuperar uma certa “carta de nobreza”, pelo menos em Portugal, onde há grandes talentos, com um universo muito próprio e muito poético, desde o Abi Feijó ao Nelson Fernandes, entre muitos outros. Seria perfeitamente possível programar blocos de filmes de animação na televisão em horário nobre…  Falta-nos o Vasco Granja!

maxresdefault.jpg

Ice Merchants (João Gonzalez, 2022)

Olhando para a programação, não apenas deste ano, mas também dos anos anteriores, constatamos que existe muita produção portuguesa que não tem tido divulgação nem distribuição em grande parte do país. Os Encontros Cinematográficos têm a intenção de quebrar essa barreira, realçando um cinema independente (um dos poucos no nosso panorama 'industrial') ou de criar um polo criativo-artístico?

Um dos objetivos dos Encontros é, de facto, resgatar do esquecimento ou dar visibilidade a importantes obras e autores, muitas vezes fora dos circuitos comerciais ou festivaleiros. Assim tem acontecido com várias obras e realizadores do cinema português. Chegámos mesmo a organizar ciclos paralelos, como os Filmes Proibidos, onde programávamos filmes portugueses censurados pela ditadura política ou económica ou, mais genericamente, pela ditadura da estupidez. Talvez a grande (re)descoberta nos Encontros tenha sido um dos mais belos filmes de sempre, “O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra. O filme foi aqui exibido várias vezes, desde 2011, com a presença da realizadora. Escrevemos vários textos sobre o filme, entrevistas para o nosso catálogo, etc.. Para nós era inconcebível que pouca gente conhecesse essa maravilha. Como a própria Manuela Serra reconheceu em entrevistas recentes, agora que o filme já circulou pelo país e pelo mundo, foi fundamental a persistência dos Encontros Cinematográficos.

Em relação à programação desta 13ª edição, o que destacaria, seja em termos de filmes ou convidados? E já agora, sobre a recente reavaliação da carreira de Sylvester Stallone, que José Oliveira considerou um autor numa crónica do jornal Público no âmbito dos Encontros Cinematográficos?

Além do bloco dedicado ao cinema de animação, com as presenças de grandes realizadores (Abi Feijó, Regina Pessoa, João Gonzalez, Nelson Fernandes e Bruno Caetano), destaco a estreia do filme “Senhora da Serra”, de João Dias, um filme belíssimo e surpreendente, que transforma a Serra da Gardunha num palco giratório onde se debatem as grandes questões universais, como numa tragédia grega. E o filme “Terra que Marca”, de Raul Domingues, um dos grandes filmes portugueses dos últimos anos, de imensa poesia telúrica, concreto e abstracto, absolutamente extraordinário, único. 

Pela raridade, o épico terreno “Uma Aldeia Japonesa: Furuyashikimura” ("A Japanese Village", 1984) de Ogawa Shinsuke. Quanto ao filme “O Beco do Paraíso”, julgamos que será uma boa revelação para muita gente. É mais um filme que urge descobrir e talvez ajudar a derrubar o preconceito que existe em relação ao Stallone. O grande músculo de Sly é mesmo o coração e, no caso deste filme, conseguiu uma realização totalmente à altura das personagens, com momentos de grande emoção. Foi, de resto, um filme muito importante para cineastas tão diferentes como Carax ou Tarantino, que escreveram sobre ele. No fundo, ao programá-lo, continuamos o esforço de recuperação de realizadores pouco consensuais, como quando organizamos retrospectivas de Michael Cimino ou Sam Peckinpah

Para lá dos filmes e dos realizadores, os excelentes convidados que irão conversar sobre os filmes, a apresentação do livro do Serge Daney (outro admirador de “O Beco do Paraíso”), a caminhada na Serra da Gardunha, o concerto dos Blue Velvet.  

cropped-Senhora-da-Serra_2_peq-1.jpg

Senhora da Serra (João Dias, 2023)

A importância de iniciativas cinematográficas como esta, realizadas fora das metrópoles como Lisboa e Porto.

Em 13 edições, sem apoio do ICA e com a paixão e dedicação de 3 ou 4 voluntários, a importância dos Encontros Cinematográficos é manifesta: 192 convidados de nacionalidades diferentes, 200 filmes exibidos e discutidos, 13 catálogos com textos inéditos e entrevistas aos realizadores convidados, um livro de celebração do 10º aniversário, diversas colaborações, lançamentos de livros, concertos, exposições, exibições especiais para a população escolar, projecções descentralizadas, extensões anuais na Cinemateca Portuguesa, vários artigos nacionais e internacionais a elogiar o trabalho desenvolvido e um número crescente de participantes com algumas sessões esgotadas nos últimos anos.

E, claro, a qualidade dos convidados que têm passado pelos Encontros Cinematográficos do Fundão: Victor Erice, Pedro Costa, Billy Woodberry, Manuela Serra, Pierre-Marie Goulet, Andrea Tonacci, Peter Nestler, Miguel Marías, Chris Fujiwara, Luís Miguel Cintra, Virgínia Dias, Pablo Llorca, Adolfo Luxúria Canibal, Bruno Andrade, Patrick Holzapfel, Andy Rector, Mercedes Álvarez, Rita Azevedo Gomes, Pierre Léon, Vítor Gonçalves, Paulo Faria, Manuel Mozos, Mike Siegel, entre muito outros.  E, sem dúvida, os Encontros também contribuíram para a fixação de cineastas no concelho do Fundão, como o próprio João Dias, realizando nesta região muitos dos seus filmes que depois viajam pelo mundo.

 

A entrada é livre. Ver toda a programação aqui.

O Lugar da Mulher é na realização! Arranca o 2º Screenings Funchal Festival

Hugo Gomes, 01.06.23

Collage Maker-01-Jun-2023-10-45-PM-5934.jpg

Iniciado em 2017, o Screenings Funchal é uma iniciativa cinematográfica madeirense que visa enriquecer esse panorama no Funchal. Até à data, foram mais de 200 filmes exibidos, oriundos de mais de 30 países, contando obras-primas, cultos, redescobertas ou êxitos improváveis, tudo em nome do cinema e a sua arte de partilhar e de ver o Mundo, sistematicamente em todos os fim-de-semanas. 

Contudo, o evento sucedâneo deu origem a um festival, uma mostra cinematográfica fora do âmbito convencional do que se predomina ser festival de cinema. Ciclos temáticos que não só vieram para fortalecer a proposta em si como também criar pontes imaginárias unificadoras da ilha com o cinema, seja lá qual for, longe dos catálogos mainstreams e supra-vendidos que preenchem multiplexes no continente. À chegada da segunda edição o Screenings Funchal Festival (do dia 2 a 24 de junho), seguimos numa pequena viagem pelo cinema assinado no feminino; de Vera Chytilová, a “mãe da Nova Vaga checoslováquia", a Kinuyo Tanaka, a sensação nipónica na distribuição portuguesa deste ano, com paragens em Kelly Reichardt, na consagrada e irreverente Chantal Akerman e a promissora Eliza Hittman. Mulheres, e além disso, cineastas a conhecer ou revisitar, gestos e olhares para além da delicadeza e da serenidade. 

Para conhecer melhor este festival, o Cinematograficamente Falando … conversou com Pedro Pão, programador, dando luzes à programação, aos propósitos, aos desafios e mais que tudo, ao Cinema [toda a programação poderá ser consultada aqui].

Visto que o Screenings Funchal é uma iniciativa que corresponde a sessões correntes em quase todos os fim-de-semanas, o que difere este intitulado Screenings Funchal Festival da periódico evento que os cinéfilos do Funchal estão habituados?

Na nossa actividade regular semanal, trabalhamos essencialmente com obras com distribuição portuguesa. O Festival Screenings Funchal além do número superior de filmes exibidos (8 em vez de 4), permite-nos construir uma programação com menos “restrições” e trabalhar com distribuidoras internacionais se houver necessidade disso e ter cá convidados que possam contribuir para o enriquecimento da experiência cinematográfica e de certa forma minimizar, mesmo que por breves momentos, a nossa condição ultraperiférica.

Este Screenings Funchal Festival posiciona-se na casa feminina, numa mostra que compreende cinco cineastas / realizadoras. Quais foram os critérios de seleção das oito obras e das suas protagonistas?

A primeira parte da seleção definida foi o ciclo. Dada a frequência pouco habitual do festival, um ciclo parece-me dar alguma coesão ao mesmo e minimizar de certa forma o espaçamento existente entre as sessões. Soube o ano passado que a The Stone & The Plot ia exibir em Portugal o ciclo da Kinuyo Tanaka e pareceu-me importantíssimo não só que as obras viessem ao Funchal mas que fossem o pilar central desta edição e que se usasse a promoção adicional à disposição para promover estas obras e chegar ao maior número de pessoas possível. Ajudou que o feedback do público tivesse sido muito positivo quando exibimos o ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos I

Um dos critérios principais é exibir filmes que não tenham estreado no Funchal e nesta segunda parte da programação procurei que os filmes cumprissem isso e que comunicassem de certa forma entre si e com o ciclo. Acho que em todos os filmes há um olhar feminino sobre questões que me parecem extremamente pertinentes e que apresentam uma abordagem única (sem falar na óbvia qualidade artística das obras) pelas suas autoras. Apesar das limitações da programação, procurei tematicamente ter diversidade e universalidade nas lutas das protagonistas, achando importante que essas lutas não se restringissem a uma época específica. Procurei algum distanciamento temporal entre elas. Começamos na década de 60 com “Daises” e acabamos em 2020 com “Never Rarely Sometimes Always”. 

daisies.jpg

Daisies (Vera Chytilová, 1966)

Uma das coisas que gostaria de conseguir transmitir é a sensação que há muito trabalho a fazer. Noutro formato teria sido possível pensar as coisas de outra forma, mas neste e em torno destas obras da Kinuyo Tanaka pareceu-me fazer sentido assim. Vamos ver como corre e qual será o feedback do público.

O festival apresentará 4 obras de Kinuyo Tanaka, e receberá o investigador Miguel Patrício [para apresentar a palestra intitulada “Quem és tu, Kinuyo Tanaka?”], que foi um dos responsáveis por trazer o integral da cineasta nipónica ao circuito comercial nacional. Gostaria que me falasse destes gestos que vão além da distribuição convencional, e enquanto coordenador de um festival, os desafios que estes filmes (e outros) possuem para vingar nas telas além do ambiente de festival de cinema?

Só posso (tentar) responder a esta questão refletindo sobre a situação particular da região. Não me sinto habilitado a tentar responder acerca desses desafios em Portugal Continental apesar de ter uma ideia de como as coisas correm por aí. Não temos festivais a “roubar” público às salas porque a realidade local é outra. Quando os festivais que já existiram no Funchal tinham antestreias, os filmes regra geral não estreavam cá depois.

Simplesmente não havia espaço para cinema, excepto animação e blockbusters. Durante algum tempo, por exemplo o Madeira Film Festival que decorria uma semana por ano, era a única hipótese de quem queria ver este cinema poder fazê-lo. Um dos desafios principais é fazer com que as instituições locais repensem a forma como pensam o cinema. Aqui parece-me que primeiro se pensa no impacto económico, depois no turístico, depois ainda virá certamente o educativo e o social (a arte pela arte parece-me ser um conceito alienígena por estas bandas) antes de se pensar no impacto cultural. Creio ser essencial que certas instituições (que têm poder/dever para apoiar, dinamizar e divulgar) comecem a ver o cinema como um acto de cultura e isso infelizmente não me parece que seja o caso.

Mas ainda assim no que diz respeito a desafios, acho que temos é de olhar ao espelho. Continuo a achar que o grande problema é a falta de curiosidade do público. Acho que há um grupo pequeno de pessoas a trabalhar muito para distribuir filmes fora dessa distribuição convencional, tal como há um grupo pequeno de críticos a trabalhar muito, a escrever e a fomentar discussões muito importantes sobre estas obras e que do outro lado há uma enorme massa de pessoas que só quer ver aquilo que conhecem e aquilo que já viram e que não parecem minimamente cientes das discussões que este cinema tem para oferecer.

A importância de eventos cinematográficos deste género fora, além das metrópoles, do Portugal continental?

A insularidade é uma coisa tramada, e não duvido que seja equivalente ao que ocorre fora das grandes cidades no resto do país. Um madeirense ir a um festival de cinema tem custos astronómicos. É um luxo. E por vezes não tem hipótese de ver os filmes de outra forma. E acho que não devia ser assim. O streaming devia ser um último recurso, ou um complemento, e nunca a única solução possível. Acho importantíssimo e perfeitamente exequível que houvesse articulação entre entidades locais e alguns desses festivais de forma a que se tornasse mais fácil para os madeirenses (e todos aqueles de certa forma isolados geograficamente) de acederem a esses eventos, por exemplo através de extensões. E tenho a certeza que haveria público, se as coisas fossem feitas com discernimento, em locais onde estivessem garantidos conforto e qualidade de projecção e onde se colocasse em primeiro lugar o impacto cultural das iniciativas e não deixando o imperativo económico dominar. Acho que esse investimento teria repercussões brutais a todos os níveis.

parasempreumamulher01.jpg

The Eternal Breasts / Para Sempre Mulher (1955)

Ambições para o futuro? Quais outros signos a explorar em eventuais novas edições do Screening Funchal Festival?

Conseguir mais apoios do que temos seria muito benéfico e iria permitir eventos com outros formatos (cineconcertos por exemplo) e trazer mais realizadores e outros convidados que pudessem enriquecer de alguma forma a oferta existente, porque esse contacto faz-nos falta e acho que é importante. Não sei, no entanto, se poderia classificar esse desejo de uma ambição para o futuro. É que já lá vão 6 anos e o reconhecimento ao que tem sido feito nestes anos geralmente vem de fora. Temas a explorar? Anteriormente referi a falta de curiosidade e como reação a isso, estou constantemente à procura de algo que provoque uma reação (boa ou má) nas pessoas. 

Gostava de num futuro próximo me focar no género de terror, que me parece ter muito má reputação em Portugal (incluindo na própria crítica), e mostrar que é um género com uma grande variedade e riqueza cinematográfica, como todos os anos o festival MOTELx bem nos mostra. Para o ano, havendo uma 3º edição do festival gostaria imenso de dedicar um ciclo ao John Waters. Estou convencido que o “Pink Flamingos”, em exibição articulada com as escolas secundárias, universidade e decisores políticos pode ser a chave para despoletar não só uma renovação de público em massa aqui no Funchal como para nos desbloquear novas formas de apoio financeiro.

Lamentos e lamentos ...

Hugo Gomes, 19.05.23

vin-diesel-fast-x-official-trailer-1676044591.jpg

Na manhã de segunda-feira, antes do visionamento de imprensa de “Fast X”, alguém que costuma presença neles (sinceramente nem sei se é jornalista ou o que faz na vida, se calhar é só mascote) dirige-se ao enviado do Público, com dedo em riste, reclamando sobre o fraco destaque do seu jornal perante filmes como aqueles que iríamos ver a poucos minutos. “Só querem saber de ciclo de japonês sei lá o quê [óbvia alusão à Kinuyo Tanaka], e esquecem dos filmes que as pessoas realmente querem ver”. Perante as provocações deste ser, o representante do jornal do P vermelho aponta para o cartaz gigante com Vin Diesel estampado e responde: “Estes filmes já estão vendidos antes de sequer estrear”.

Como podemos ver, 90% dos órgãos de comunicação falam de “Velocidade Furiosa”, de Daniela Melchior (das enésimas entrevistas exclusivas) e como Portugal deve-se sentir “orgulhoso” por integrar a trama de um produção hollywoodesca e bilionária. Ninguém quer saber do resto, como Cannes, onde só notícias de Johnny Depp e Indiana Jones parecem preencher as grelhas mais genéricas. Porquê de não passarmos disto?

Relembro de um ano, 2018 para ser preciso, em Cannes, na fila para ver “já não sei o quê” (em homenagem ao ser do parágrafo acima), em que ouvia a conversa de dois distribuidores que comentavam a qualidade do, na altura, último filme de Jafar Panahi ["3 Faces"], até que um deles lamenta: “Estamos aqui a ver estes filmes, muitos deles maravilhosos, e o Mundo só quer saber e falar de ‘Infinity War’.

Lamentos e lamentos ... é a vida! O romantismo do Cinema é resiliente, o mercado é outra ‘coisa’.